O dia em que a União Europeia acabou — 22 de Setembro de 2022

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 17/03/2023)

A História é em boa parte pontuada pelos acontecimentos que marcam o fim de uma dada ordem política. O império Romano findou em 476 quando o bárbaro Odoacro foi nomeado rei de Roma e enviou as insígnias imperiais ao imperador Zenão do império do romano do Oriente. O antigo regime feudal europeu terminou com a tomada da Bastilha, a emergência da Inglaterra como potencia mundial, a passagem de uma potência continental para uma marítima começou com a derrota de Napoleão em Waterloo, o fim do império britânico aconteceu com a independência da Índia, o início do império americano ocorreu com o lançamento das bombas nucleares no Japão e com o dobrar do cerviz do imperador a reconhecer a derrota perante a devastação.

A União Europeia, uma entidade que vinha desde o final da II Guerra a fazer o seu caminho mais ou menos autónomo, reconhecendo que a Europa deixara de ser o centro do mundo em boa parte pelas suas guerras civis — duas guerras mundiais só no século XX — e que seria sensato aceitar um equilíbrio de poderes entre os europeus, defrontou sempre um inimigo concreto: os Estados Unidos. Vários dirigentes americanos perguntaram ao longo dos anos o que era isso da Europa, se tinha telefone. Os Estados Unidos nunca aceitaram uma entidade política soberana europeia! E é esta recusa de aceitar a soberania da União Europeia e de cada um dos seus estados que determina e explica a política americana desde as primeiras tentativas de criar mecanismos de integração política, social e económica, a CECA, o Mercado Comum, a CEE. Quanto a deixar que a soberania europeia dispusesse de um aparelho militar que sustentasse as suas políticas, nem pensar! A relação dos EUA com a Europa foi sempre de tipo colonial! Como o foi no Médio Oriente e na América Latina. Os Estados Unidos assumiram o estatuto de soberanos mundiais. Agitaram perigos, inventaram inimigos, ocuparam territórios.

Que os Estados Unidos tenham lançado um poderoso bombardeamento de manipulação a bramar que a Rússia invadira um país soberano (no caso liderado por uma oligarquia que eles lá haviam colocado) faz parte do modo de exercer o poder totalitário: o que é permitido ao senhor não o é ao servo! Também faz parte do principio da invasão do Oeste americano, tem a tem a força estabelece a lei. Os EUA penduraram no seu peito a estrela do xerife! Não são acusações, nem julgamentos morais, são factos!

A aceitação do facto teve e tem como consequência que os europeus se habituaram à servidão. Nenhum político europeu chega a um lugar relevante se não jurar fidelidade ao Padrinho. A Mafia também é um bom modelo para caraterizar as relações com a América. Esta “rendição” europeia teve a qualidade de fazer os europeus considerarem os serviços domésticos uma atividade nobre e o abanar das orelhas um gesto de afirmação. Os Estados Unidos mandam os europeus olhar para a ponta do dedo e os europeus olham para a ponta do dedo. As leis que impõem aos outros não se lhes aplicam. Nem os conceitos. A soberania é um dos conceitos com que eles humilham os europeus, como o dono de um cão faz atirando um pau para ele ir servilmente buscar e trazer-lhe à mão. Para os Estados Unidos, Cuba, Granada, o Chile, o Brasil, o Iraque, o Afeganistão, a Líbia não têm direito a soberania. São invadidos ou sabotados. Já a Ucrânia foi elevada à qualidade de soberania absoluta e inviolável.

Mas, ainda assim, os europeus foram encolhendo os ombros e disfarçando, considerando que estávamos a assistir a perversidades de uma potencia colonial sobre colónias, vizinhos turbulentos. Os europeus recorriam ao seu material genético colonial e atribuíam essas atitudes a um dever de civilização a povos do Terceiro Mundo.

A 22 de Fevereiro de 2022, os europeus, os que ainda não têm o cachaço completamente calejado pela canga, viram o império arrombar-lhes a porta da soberania sem um com licença! (A velha reflexão de Brecht: vieram buscar os judeus e eu não era judeu, depois os comunistas, depois os democratas… e agora entraram-me em casa!)

Os EUA impuseram à Europa o envolvimento num conflito com a Rússia a pretexto da gravíssima ofensa da soberania da Ucrânia, um Estado cujo regime eles criaram. Para impor essa intervenção entenderam conveniente dar uma lição de domínio ao mais importante estado europeu: a Alemanha. Atacaram a soberania da Alemanha (um aliado), destruindo-lhe uma infraestrutura essencial, que o estado alemão havia decidido construir e, mais ainda, porque estava no caminho, atacar a soberania de outro estado europeu, a Suécia, realizando uma sabotagem nas suas águas territoriais e, mais ainda violando a soberania europeia e o seu modo de vida, causaram deliberadamente um desastre ambiental de dimensões desconhecidas e que ninguém, nem os serviçais locais, os ribeirinhos do Mar Báltico, se atrevem a reclamar, nem num murmúrio.

Todas as pessoas e todas as entidades recebem o tratamento que deixam que lhes façam. Os dirigentes europeus, no caso o chanceler alemão e a presidente da Comissão Europeia, se tivessem uma gota de caráter teriam respondido a Joe Biden quando ele proibiu a entrada em funcionamento do gasoduto Northern 2, a 7 de Fevereiro de 2022, na Casa Branca, na cara de um servo chamado Sholz e este pobre diabo alemão ficou mudo – como o genro que vive à conta da mulher e apanha um raspanete do sogro -, e a soberania europeia ficou como o gasoduto: em estilhaços. Perante esta abdicação (humilhante) nenhum dos grandes atores da cena internacional terá, doravante, qualquer consideração pela UE.

A irrelevância europeia, que se traduz também em negócios, em criação de riqueza, em participação nos grandes projetos do futuro foi a enterrar com o senhor Sholz a fazer de gato pingado e a dona Ursula a fazer de beata que lê os responsos fúnebres.

O que se esperava que alguém que fosse mais que uma lesma dissesse a Biden seria: É um assunto que me diz respeito. Eu também não me pronuncio sobre a exploração que o seu governo faz de petróleo no Alasca, nem das consequências da produção através das rochas oleosas. A Alemanha respeita a soberania dos EUA e exige que os EUA respeitem a nossa soberania. Elementar.

Há poucos dias, numa visita a Washington, a senhora que faz em Bruxelas o papel de moço de recados que Zelenski representa em Kiev agradecia a Biden ele ter mandado para a Europa o gaz e o petróleo resultante do caríssimo processo de fracking que substituiu o barato russo, esquecendo-se de dizer que ao dobro do preço e a que custos ambientais!

A União Europeia, entidade soberana, com alguma autonomia no mundo terminou quando uma unidade da US Navy’s Diving and Salvage Center colocou os explosivos C4 junto ao pipeline, em águas territoriais suecas. Sabe-se hoje através da recente publicação da investigação do jornalista Seymour Hersh que o planeamento da operação começara nove meses antes: «A decisão de Biden sabotar os pipelines foi tomada depois de nove meses de reuniões secretas no Conselho Nacional de Segurança em Washington para definir a melhor maneira de atingir o objetivo. Desde sempre a questão não foi SE a missão deveria realizar-se, mas como a realizar sem evidências flagrantes dos autores.»

Interrogado sobre as consequências de uma crise de energia na Europa, o ministro Americano dos negócios estrangeiros, Blinken, respondeu: “Foi uma tremenda oportunidade para de uma vez por todas afastarmos a dependência dos europeus da Rússia!” Mais recentemente, Victoria Nuland, uma oficial da CIA que coordenou o golpe em Kiev que levaria Zelenski ao poder, a que declarou perante as dúvidas do embaixador americano a propósito da posição europeia: «Quero que a U E se foda!» e é hoje subsecretária de estado, expressou a sua satisfação pelas notícias da sabotagem do pipeline. “ A Administração está muito feliz por saber que o Nord Stream 2 é agora um bocado de ferro velho no fundo do mar!”

É com estes sérios defensores da soberania dos outros estados que estamos a defender a soberania do Zelenski na Ucrânia.

A União Europeia está no mesmo fundo do mar e nas mesmas condições do ferro velho do Nord Stream 2.


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A cornucópia da abundância

(José Pacheco Pereira, in Público, 25/07/2020)

Pacheco Pereira

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Parece que vem aí muito dinheiro. Embora o custo desse dinheiro nestes dias seja muito indiferente a quase todos, dos de cima aos de baixo, esse dinheiro tem um enorme preço: o pouco que já sobrava de Portugal como país independente. O salto qualitativo deste dinheiro é a passagem de Portugal a um Estado dentro da federação europeia. Estado não no sentido de nação mas de “região”, länder, cuja política fiscal já era controlada a partir de Bruxelas e vai agora ter a sua política económica e social igualmente controlada. Essas políticas servem lógicas de “desenvolvimento” que correspondem aos interesses dos países do Norte da Europa e políticas, políticas puras, que deixam de ser controladas pelos eleitores portugueses e muito menos pelo Parlamento português, que é já, em grande parte em tudo o que é importante, uma ficção.

Precisávamos do dinheiro? Claro que sim, mas não a este preço. O princípio de que quem paga manda é uma receita para o desastre, vai alimentar o populismo, tornar indiferente em quem se vota, erodindo a democracia, e, se há lição que se possa tirar da História, é que dá sempre torto mais tarde ou mais cedo. Os novos estrangeirados que nos governam nunca levantarão um dedo, como se viu com a história dos corredores turísticos, em que temos que aceitar que a Espanha ou o Reino Unido possam ser “seguros” e o Algarve ou o Douro não, sendo que Portugal tem instrumentos para defender os seus interesses mas não os usa. Por exemplo, os acordos finais com o Reino Unido dependem dos votos dos países da União Europeia. Uma coisa é ser pequeno e fraco e outra é ser subserviente.

Depois há toda uma outra história com o dinheiro. O dinheiro não vem para um país que subitamente se tornou capaz, com uma varinha mais que mágica, ou que se transformou na Noruega ou na Finlândia. E se há coisa que se pode dizer desde já é que exactamente o dinheiro funciona contra a mudança, tende a solidificar tudo o que está mal.

É difícil imaginar-se que uma administração como a portuguesa, fortemente clientelar, que não premeia o mérito e a competência, com largos lençóis de patrocinato e corrupção, sem densidade e know-how para gerir tão importantes quantias, não vai desperdiçar muito do dinheiro que vamos receber. Deitar muito dinheiro em cima de uma estrutura débil não a torna forte e por isso não há que ter muitas ilusões.

Por outro lado, do discurso da “iniciativa liberal”, basta ver as filas de espera que todos os dias a imprensa económica noticia para se perceber como tudo se está organizar nos lóbis privados para o ir lá buscar. Agora toda a gente é “digital” e “verde”. O discurso legitimador destes lóbis é que o Estado vai desperdiçar este dinheiro – o que é verdade –,​ mas esquece que as últimas décadas da democracia são de uma história de corrupção, aproveitamento de ligações políticas, privatizações obscuras, salamaleques à corte dos políticos. Acresce que o nosso patronato não é particularmente competente, gere mal e considera que as empresas são uma extensão do seu cofre. Isto também não muda por intervenção divina.

Estamos condenados ao atavismo do desperdício e da corrupção? Condenados não estamos, mas há uma alta probabilidade de ser assim e mais vale ser realista do que iludido. Só acreditando em milagres é que deixará de ser assim. Podemos fazer alguma coisa? Pouco, mas alguma coisa é possível. No público e no privado há excepções. O que nos seria mais útil era identificá-las rapidamente e começar por aí, sem nunca esquecer que são excepções. Como o dinheiro é muito pode acontecer que ainda sobre algum para obras de mérito. E alguma probabilidade de que se consiga fazer algumas coisas estruturais do princípio ao fim. Podem vir a custar-nos o triplo do necessário, mas se ficar obra solidamente feita, não é mau.

Podia-se argumentar que tudo isto é um forte argumento para entregar o controlo do uso do dinheiro a estrangeiros, mais do que já existe e vai existir. Foi um dos argumentos dos “frugais”, que acham que podem dar lições de moral ao mundo. Não podem, e seria muito pior. Já que estamos na vergonha de pedir, seria pior ter que ouvir uma frase muito portuguesa dita aos nossos “pobrezinhos” por alguns próceres da caridade: “pegue lá esta esmola mas não gaste em vinho.”

Sem ilusões, mas responsáveis por nós mesmos, vamos esperar que alguma coisa sobre de útil do festival de gastos. Já o que demos em troca de soberania e democracia, isso vai ser muito difícil de recuperar.


Três lições simples da guerra com a Huawei

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 29/05/2019)

Daniel Oliveira

O primeiro efeito da ordem executiva que proíbe o uso de qualquer material da Huawei, assinada por Donald Trump, foi a suspensão dos negócios da Google com a operadora chinesa. A Huawei perde acesso a atualizações do sistema operativo Android, e a próxima versão dos seus smartphones fora da China vai perder acesso a aplicações como o Google Play Store e o Gmail app. Não é machadada pequena e o braço de ferro ainda agora começou, com os chineses a mostrarem a calma que os caracteriza e que os levará muito longe. É claro que o argumento da segurança, na boca de Trump, é uma piada. Estamos perante uma guerra comercial das antigas. Ponto.

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Qualquer coisa que se queira dizer sobre esta guerra será imediatamente interrompida por uma homilia sobre o mercado global. Infelizmente, os beatos da liberdade económica não costumam estar presentes nas procissões pela liberdade de movimentos de humanos – aí pedem sempre realismo – e não ficam incomodados com a frieza da realpolitik quando se trata de invadir ou bombardear um povo. Pois eu vivo melhor com disputas em torno de aplicações de telemóveis do que com milhares de mortos e deslocados. Mas mesmo com o novo tabu, que trata qualquer medida protecionista como a antecâmara de um holocausto, atrevo-me a enumerar três lições que, para já, podemos tirar deste episódio.

Primeira lição: os Estados podem muito mais do que nos dizem. A ideia de que num mundo globalizado as nações nada podem é falsa. Claro que não podem todas, e isso é dos poucos bons argumentos em defesa da União Europeia: Estados juntos num bloco económico podem mais facilmente ditar as regras. Isso não obrigava a uma moeda única e não se pode dizer que esta Europa crescentemente desindustrializada faça grande coisa com o poder que tem. Usa-o para interesses que nos ultrapassam.

Esse é o debate que deveríamos ter feito no último mês. Seja como for, a ideia de que as grandes multinacionais esvaziaram os Estados de poder é falsa. Foram os políticos que o fizeram e, para o certo ou para o errado, podem recuperar esse poder rapidamente. Trump pôde.

Segunda lição: a conversa sobre a liberdade económica global é uma treta. A Huawei fundou-se, ganhou músculo e internacionalizou-se a partir de uma economia planificada, com liberdade económica limitada e tutelada e isso não a impede de competir com outras grandes empresas, a ponto de as pôr em risco. A concorrência faz-se a partir de patamares diferentes, com ambientes económicos diferentes, e está muitíssimo longe de ser um jogo de mercado livre. Isso é conversa sobre os amanhãs que cantam. O mundo mudou menos do que pensamos.

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Terceira lição: as potências mais relevantes que se confrontam pelo domínio económico são razoavelmente protecionistas, apoiam as suas empresas e têm estratégias industriais nacionais. O liberalismo deixa andar é para papalvos e custará bem caro a quem o adotar. Por isso mesmo é vendido por potências a países periféricos como se fosse a última Coca-Cola no deserto. Veja-se como a Alemanha se prepara para mudar as regras da concorrência dentro da Europa para poder apoiar os “campeões europeus” (leia-se “campeões alemães”) contra o perigo chinês. Muitos que aplaudem esta reviravolta estarão na primeira linha do apedrejamento de Trump por ter violado tão abertamente o mito do mercado global livre. É um mito.

O grande risco disto tudo? Se esta estratégia de Trump correr bem, o povo ficará mais feliz e virá com isto tudo o resto: perseguição às minorias, ataques ao Estado de direito, violação das regras democráticas. Se a reação ao expansionismo chinês, bastante protegido pelo Estado, devolver empregos aos norte-americanos ninguém vai querer saber do resto. É por isso que ou os democratas abandonam de uma vez por todas a lengalenga das inevitabilidades e recuperam o poder dos Estados, ou a democracia está condenada. Porque o que fica a dizer às pessoas é que é fundamental que elas escolham livremente quem as governa, para que os governantes eleitos lhes expliquem que, neste mundo global, nada podem fazer por elas.