De comissão em comissão, até à decomposição

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 24/06/2022)

Miguel Sousa Tavares

Nunca o Estado teve tantos funcionários como agora. Nunca teve tantas receitas fiscais como agora. Nunca o peso dos impostos no PIB foi tão alto como agora. Nunca teve tantos médicos e tão poucos doentes no SNS, pois cada vez há mais utentes a fugirem para o privado. Nunca teve tão poucos alunos para os professores que tem. Nunca teve tantos licenciados e tantos investigadores. Nunca teve tanto dinheiro europeu à disposição — tanto que nem consegue aplicá-lo. Nunca teve o privilégio de estar tão endividado e pagar juros tão baixos graças ao programa de compra de dívida do BCE. Nunca teve tantos turistas que nem consegue recebê-los. Nunca teve tantos abacates, olivais e amendoais superintensivos, ao ponto de estar na iminência de já não conseguir regá-los. Nunca atraiu tanto investimento estrangeiro para o imobiliário, graças aos golden visa e ao regime fiscal dos estrangeiros residentes — tanto que já não há trabalhadores para a construção civil.

Quem é que se importaria de governar um país assim?

Porém, embalado por esta história de sucesso para enganar tolinhos, o Governo de António Costa habituou-se à ideia de não ter que governar. Durante seis anos foi distribuindo esmolas aos pobres e fatias do Orçamento aos parceiros de esquerda com o único objectivo de se manter no poder mantendo tudo como estava. Foi atirando dinheiro para cima das crises e sacudindo o pó dos problemas para debaixo dos tapetes, com os olhos unicamente focados no próximo horizonte eleitoral. Nada do que era grave e importante o fez estremecer ou, menos ainda, mover: o Inverno demográfico, a desertificação, a seca climática mais alarmante de ano para ano, a ruptura iminente dos serviços de saúde, a bandalheira na educação, o laxismo e despesismo na Administração Pública, a ineficiência da justiça, a brutalidade fiscal, a emigração dos melhores e mais jovens quadros do país. Entreteve-se antes a fazer flores com as “causas fracturantes” tão caras ao BE, os animaizinhos do PAN ou os “avanços” do PCP. Estranhamente, porém, o resultado desses seis anos de governação à esquerda foi haver mais pobres, mais doentes sem médico e sem assistência de saúde ­digna, mais alunos sem professores, mais portugueses sem possibilidades de habitar nas cidades e uma classe média chulada até ao osso. Mas, como ele diz, e com razão, os portugueses gostaram ou não viram alternativa melhor: deram-lhe uma maioria absoluta, o que teve pelo menos a vantagem, julgámos nós, de o livrar das âncoras de arrasto.

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

O problema é que o método se entranhou no homem ao ponto de se ter tornado a sua forma de vida. António Costa é uma espécie de primeiro-ministro à hora ou ao dia: trabalha numa hora para sobreviver até à hora seguinte, trabalha durante o dia para enfrentar o “Jornal das 8”, hoje em Lisboa, amanhã em Bruxelas, em toda a parte e em lado nenhum, falando de tudo e tudo deixando pendente, saltando de assunto em assunto tão depressa e tão convictamente que cria a impressão de que tudo o que ficou para trás já ficou resolvido. Mas depois, subitamente, rebentam as crises e estoiram de podres os problemas, e Costa, o génio da conjuntura, fica aos papéis. Ele e a sua gente.

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O caso da saúde é exemplar. Durante dois anos encheram-nos os ouvidos com elogios ao SNS, que tão boa conta tinha dado do recado durante a pandemia. Mas para debaixo do tapete empurraram-se coisas como os números chocantes do absentismo médico durante a pandemia, o facto de practicamente terem cessado todos os outros cuidados médicos no SNS não relacionados com covid ou de ter sido necessário chamar um homem das Forças Armadas para pôr de pé um plano nacional de vacinação eficaz. E, sabendo-se que uma vez terminada a emergência covid o SNS teria de retomar tudo o que tinha ficado por fazer, despejou-se dinheiro a rodos e pessoal sobre o sistema, mas sem planeamento, sem organização, sem força política para enfrentar os lobbies do sector, as suas manhas e batotas instaladas e de todos por demais sabidas. O que se passou nos feriados de Junho, com os médicos obstretas todos de fé­rias e as grávidas sem assistência nos hospitais do SNS, foi uma vergonha inimaginável, a que a incompetência larvar da ministra respondeu segundo o método Costa: um “plano de contingência” para a conjuntura de ruptura e uma comissão para estudar como é que ela deve gerir a pasta que supostamente anda a gerir há vários anos. E a mesma receita foi aplicada à crise nos aeroportos, que também ninguém podia prever, e aplicada à conjuntura de seca no país — essa prevista de ano para ano, mas soberbamente ignorada pela ministra da pasta.

O método do Governo é simples: um plano de contingência quando as coisas chegam a um ponto de ruptura e uma comissão para estudar os problemas que não se sabem ou não se querem resolver

E é assim que vamos indo. Temos um Governo com maioria absoluta e um PRR que tudo há-de resolver, mais a ajuda compreensiva do BCE. E temos, do outro lado, uma pacífica oposição, que veio para “acabar com o socialismo” mas sem pressa nenhuma de começar a fazê-lo ou, ao menos, de ter uma ideia que seja antes dos idos de Julho, onde o recém-eleito líder espera que o congresso do partido lhe forneça algumas pistas sobre o que fazer. As férias estão à porta e, embora os portugueses andem zangados, a pandemia e a Ucrânia ainda funcionam como desculpas. Portanto, é deixar andar e, se as crises rebentam, planos de contingência para cima delas; se tudo parece sem solução e se percebe que os problemas são mais fundos, comissão com eles. O círculo vicioso repete-se, sempre igual: problema-comissão-esquecimento-explosão. É assim com tudo: novo aeroporto de Lisboa, preparação para os incêndios, SIRESP, situação dos imigrantes asiáticos nas estufas do litoral alentejano, caminhada para o abismo da TAP, caos no sector ferroviá­rio, venda da Efacec, injecções de dinheiros públicos no Novo Banco. Nada se resolve, nada se fecha, nada avança. Tudo está em estudo, entregue a uma comissão, a aguardar um parecer, um decreto regulamentar, uma decisão de um tribunal arbitral ou a transposição de uma directiva comunitária.

A única coisa que parece perturbar a sério António Costa é a adesão à UE dos três candidatos apadrinhados pela NATO: a Ucrânia, a Geórgia e a Moldávia. Mas não pelo facto de eles serem conhecidos por albergarem algumas das piores máfias do crime organizado (a que piedosamente agora se chamam “oligarcas”), mas sim porque eles podem rapar no “bolo” dos dinheiros europeus, e isso mexe directamente com os nossos interesses estratégicos.

De facto, aquilo a que pomposamente poderíamos chamar o “desígnio nacional” resume-se a duas coisas: continuar a receber eternamente ajudas da Europa e continuar a receber cada vez mais turistas estrangeiros, mesmo que depois demorem horas a conseguir sair dos aeroportos. Tudo o resto não existe, dá muito trabalho a resolver e é uma canseira só de pensar nisso. É que para isso seria preciso abandonar os estudos, os pareceres, as comissões, e começar a decidir. Mas decidir é, em si mesmo, um problema: gera contestação e resistências, cria inimigos, acarreta riscos, pode fazer perder votos — veja-se o caso de Macron em França: perdeu a maioria absoluta porque se atreveu a defender uma ténue subida da idade da reforma, que é a mais baixa do mundo, enquanto Le Pen e o demagogo sem freio Mélenchon ganharam milhões de votos a prometer descê-la ainda mais, para os 60 anos. No ponto em que as coisas estão, eu votaria num partido ou num candidato que me dissesse: “Portugal tem cinco ou seis problemas urgentes para resolver. Nos próximos quatro anos eu prometo resolver apenas dois. Mas esses vou resolver.” Depois viria alguém que resolveria mais dois e outro que resolveria outros dois: em 12 anos, teríamos resolvido os principais problemas do país. É muito tempo? É, mas pensem bem: só o problema do novo aeroporto de Lisboa está há 40 anos para ser resolvido.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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Não vale tudo

(Alexandra Leitão, in Expresso Diário, 29/04/2021)

Agora que toda a sociedade se vira para o Estado (e bem) para que resolva a crise pandémica e também a crise económica e social pós-pandémica, o momento favorece e valoriza este debate [sobre o papel do Estado]. A discussão acontece em cima de factos concretos, o que força os argumentos ao teste da realidade, isto é, ao que isto realmente significa no Serviço Nacional de Saúde, na escola pública, nos apoios que a segurança social tem multiplicado.


O anúncio recente da abertura de um equipamento temporário para alojamento de estudantes filhos de trabalhadores da Administração Pública suscitou uma onda de comentários nas redes sociais e em alguns órgãos de comunicação social.

Começaria por uma breve explicação da medida: os Serviços Sociais da Administração Pública (SSAP) têm por missão a proteção social complementar dos trabalhadores da Administração Pública, incluindo, em certas situações, dos seus agregados familiares.

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Assim, a utilização de um imóvel que já era propriedade dos SSAP para um apoio destinado aos filhos dos trabalhadores públicos que cumpram os critérios pré-definidos, dos quais ressaltam os baixos rendimentos do agregado familiar e residirem a mais de 100 km, corresponde ainda às responsabilidades do Estado enquanto empregador. Não é um privilégio, é mesmo uma resposta social para quem mais dela necessita.

E é o cumprimento da função social do Estado empregador, que deve dar o exemplo de responsabilidade social que todos os empregadores (públicos e privados) devem assumir. É também liderar pelo exemplo.

Outra coisa – que decorre do Estado Social que defendo convictamente – são as responsabilidades do Estado para com os cidadãos em geral, trabalhadores públicos ou não, e que se traduz na abertura de residências para todos os estudantes no âmbito do Plano Nacional de Alojamento no Ensino Superior, com o qual os SSAP podem também colaborar. Não esquecendo que a medida agora anunciada também contribui para aumentar a disponibilidade do alojamento a estudantes em Lisboa, ao criar uma primeira alternativa para 47 estudantes.

Como já dissemos, continuaremos a trabalhar no sentido de criar soluções noutras regiões do país, recordando, no entanto, que esta medida se aplica exatamente a quem é de fora de Lisboa.

A explicação é esta e é simples. Mas o assunto que motivou tantas e tão acesas – e até injuriosas – proclamações não é este. É outro. É ideológico.

Contra a Administração Pública, contra os seus trabalhadores, contra o Estado.

O mesmo preconceito ideológico que alimenta decisões que inevitavelmente resultariam num Estado mais fraco, envelhecido e desprovido de massa crítica, forçando-o a contratualizar com os privados tudo o que é importante: na saúde, na educação, no apoio jurídico, no desenvolvimento de projetos … em tudo o que é relevante.

Vamos, então, à discussão ideológica. Agora que toda a sociedade se vira para o Estado (e bem) para que resolva a crise pandémica e também a crise económica e social pós-pandémica, o momento favorece e valoriza este debate. A discussão acontece em cima de factos concretos, o que força os argumentos ao teste da realidade, isto é, ao que isto realmente significa no Serviço Nacional de Saúde, na escola pública, nos apoios que a segurança social tem multiplicado. É mesmo com isto que pretendem acabar, deixando apenas ao mercado a solução para tudo? O mercado terá soluções para quem as quer e pode pagar… e os outros, o que lhes acontece?

Para os outros, o mercado também tem solução: que o Estado pague aos privados para receberem esses “outros”, como acontecia no modelo dos contratos de associação, que se multiplicaram entre 2011 e 2015, custando mais de 150 M€ por ano ao Estado, enquanto a escola pública definhava durante todo esse período.

Não tenho nada contra a discordância política. É saudável, é a alma da democracia, as sociedades ganham sempre quando a troca de argumentos convida ao pensamento e a políticas públicas bem calibradas e fundamentadas. Quem me conhece sabe que nunca viro a cara a esgrimir argumentos. É meu dever justificar as escolhas que faço enquanto ministra e responsável política.

Mas não vale tudo. Não vale o insulto e a injúria. Isso não é discutir, isso não é democracia, isso não é liberdade. É, aliás, o oposto porque tenta vexar o interlocutor. É um caminho que visa intimidar — não trocar ideias. Nos últimos anos temos assistido em todo o mundo aos resultados a que estas práticas nos conduzem: à xenofobia, ao racismo, ao populismo, à demagogia, ao ódio, à violência, ao totalitarismo.

Em política, como na vida, não vale tudo.

(Ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública de Portugal)


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E se houvesse menos Estado?

(Joaquim Vassalo Abreu, 04/04/2020)

Desde logo não teriamos o SNS que temos! A Saúde e o acesso aos cuidados médicos seriam assim tipo EUA: tem direito (proporcional) quem melhores seguros tem e quem não tem…pois…

Só que há aqui um pequeno pormenor que eu reputo de “pormaior”: Nenhum deles contempla Epidemias ou Pandemias!  Como ficaríamos então?

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Do mesmo modo quando nos queriam impôr que as nossas Reformas fossem pagas num sistema variável, uma parte indexada aos nossos descontos para a Segurança Social e outra a Fundos e coisas mais…Como estariam elas agora, seus Liberais de pacotilha?

Nos incêndios: seriam todos os Bombeiros profissionais? Quem lhes pagaria? O Estado? O Estado que dizem que falhou? Mas com eles…Mas, com “menos estado”, quem se aventuraria a atear quinhentos fogos num só dia para depois virem dizer que o “ Estado falhou”?

Agora, por exemplo: as Reformas indexadas a Fundos diversos, nesta época e noutras ocasiões de autêntico “crash” , como ficariam? 

E os subsídios de a Desemprego ou Assistência Social, seriam à Americana?

E a Saúde perante esta Pandemia? À “la” Brasileira Bolsonariana?

“Menos Estado” sempre apregoaram apelando ao Estado quando mais necessitaram…é um clássico, grandes e eméritos “ Liberais” de pacotilha…

Mas não me esqueço de 2015 quando Passos apregoava a recuperação económica, esquecendo dramaticamente a situação da Banca, cuja resolução enviou para debaixo do tapete ( Novo Banco, Banif, Montepio, Caixa Geral de Depósitos), numa irresponsabilidade sem nome.

 Mas fazendo o que sempre outros fizeram é verdade, deixando sempre a responsabilidade para os vindouros, esses “ filhos da mãe dos vindouros”, como arremessou furiosamente o ZÉ Mário no FMI, defendeu, em pleno debate com António Costa, um corte nas Pensões de 600 milhões nas Reformas…

Deviam corar de vergonha, mas isso é atributo que nunca possuíram esses “Liberais” de pacotilha!

Felizmente que, logo a seguir, veio alguém que tudo enfrentou mas com Estado e absoluto sentido do mesmo, e que a tudo ocorreu e conseguiu equilibrar o que para eles, esses “ Liberais de pacotilha”, remédio não tinha ! Coisa que o “menos estado” nunca faria! Mas endereçaria para os mesmos de sempre o seu ónus: os Contribuintes…Mas baixando salários e pensões, a sua única imaginativa solução!

Mas há que recordar para ser justo e honesto : Mas que faria agora o “ Menos Estado” perante uma situação destas, a desta Pandemia, ainda por cima “democrática” pois não escolhe entre ricos e pobres, famosos e incógnitos, crentes ou não crentes, gordos e magros, magnatas ou refugiados, do sul ou do norte…? Que faria, afinal?

Cobraria milhares de EUROS por um teste como na sua sacrossanta América, onde nem os Seguros isso asseguram? Já sei: mandá-los-iam para o Público, o do “menos Estado” que, perante falta de receitas e dotações, seria depois apelidado de ineficaz…e de falhado! “ Liberais de pacotilha, fariseus de “ Trampa”.

Eu sugiro, finalmente, que os Marques Mendes, os Paulo Portas,  os José Júdice, os Gomes Ferreira e todos os que se apelidam “Liberais” nesta vida, esse enorme saco de gatos onde nenhum assume ser realmente gato e antes se acham onças, formem um governo…assumam responsabilidades…dêem o peito às balas, passem da retórica à prática e façam em definitivo o exame final, aquele do qual, não tenham dúvidas, não sairão com outro título, agora já não de   “Liberais de pacotilha” , mas de “ Liberais da “Trampa”! Nada de mais justo…

Mas esqueçam e ao mesmo tempo recordem:“ Esta vida“, como dizia Che Guevara, “não é para moles”! Mas é para Poetas, digo eu!

Pois como escreveu PABLO NERUDA: “Entretanto trepam os homens pelo sistema solar… Ficam pegadas de sapatos na Lua… Tudo se esforça por mudar, menos os velhos sistemas… A vida dos velhos sistemas nasceu de imensas teias de aranha medievais… Teias de aranha mais duras que os ferros das máquinas… No entanto, há gente que acredita numa mudança, que praticou a mudança, que fez triunfar a mudança, que fez florescer a mudança… Caramba!… A Primavera é inexorável!

Sim, a Primavera é inexorável!