Morte à Inteligência em Kiev

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 03/10/2023)


A vitória nas eleições da Eslováquia de um político que desafina do coro da União Europeia sobre a guerra na Ucrânia revelou os fedores e as nódoas das roupas interiores da apregoada democracia que a Europa diz defender. Os perfumes e os desodorizantes das senhoras e dos senhores de Bruxelas e Frankfurt bem tentam abafar o cheiro a podre que sai dos sovacos e coxas de uma democracia a uma só voz, que toma banho sem água, mas canta como se estivesse num duche, onde há uma verdade oficial e não há lugar para interrogações. Os ministros europeus, reunidos em conclave em Kiev em 2 de Outubro, após mais uma viagem de comboio (devem ter direito a passagem com desconto para passageiros frequentes — commuters, em inglês, que é a nossa língua de negócios), já estão a construir nas suas oficinas de manipulação a cruz onde o herege eslovaco vai ser crucificado, a acender-lhe uma fogueira, ou a preparar-lhe uma primavera democrata e a garantir aos seus cidadãos: Estamos unidos, Ucrânia ou Morte! Ou: Morte à Liberdade e à Inteligência.

Em 12 de Outubro de 1936, faz agora oitenta e sete anos, que durante o ato de abertura do ano letivo no salão nobre da Universidade de Salamanca, em resposta a um dos oradores que criticou a Catalunha e País Basco, qualificando-os de “anti Espanha”, o general franquista Millán-Astray terá gritado: “Viva la muerte!” Uma das descrições da cena conta que o filósofo Miguel de Unamuno, o reitor da universidade, até ali em silêncio, se levantou e pronunciou um discurso onde surgem as frases dramáticas e que ficaram para a História como verdadeiras: “Este é o templo da inteligência e eu sou o seu sumo-sacerdote. Vencer não é convencer. Para convencer há que persuadir e para persuadir necessitaríeis de algo que vos falta: razão e direito na luta.” Millán-Astray terá respondido «Morra a intelectualidade traidora! Viva a morte!» Segundo alguns historiadores terá ainda gritado: “Morte à inteligência!

A reunião de Kiev — que se realiza como um show off para demonstrar aos europeus simples de espírito que tudo está bem e em ordem, que as tropas democráticas da Europa não deixam sair ninguém da forma e, principalmente, os contribuintes europeus não deixarão de pagar os negócios que se fazem a coberto dos obuses, Leopards e dos drones!

O que está em causa na reunião dos ministros dos negócios estrangeiros da UE não é o apoio da União Europeia à guerra contra a Rússia encomendada ao regime de Zelenski — essa é uma decisão tomada e de consequências ainda não contabilizadas, nem interiorizadas, é uma amputação sem possibilidade de regeneração — mas sim uma questão de essência civilizacional: o direito dos povos e dos estados decidirem dos seus interesses, de se expressarem democraticamente e de as suas decisões serem respeitadas pela comunidade internacional de que tanto se fala quando convém! As ameaças mais ou menos explícitas à Eslováquia — veremos o que vai acontecer, afirmou Borrell, o mastodonte na sala dos cristais, são uma ameaça a todos os democratas. São uma ofensa à inteligência e à razão. São uma repetição do grito de Millán-Astray, de viva a morte, mesmo que seja a morte dos valores pelos quais vale a pena morrer, principalmente esses!

A reunião de Kiev é um velório onde não haverá ninguém que lembre aos gatos pingados que já Platão, em Fedra, considerava que a diferença entre o filósofo (o que pensa) e o tirano estava justamente na visão completa e livre das ideias do primeiro em oposição à visão condicionada, à cegueira, do segundo. Em Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio sobre a Lucidez Saramago expressa a mesma ideia. A nossa palavra “ideia” tem sua origem grego idea, que possui o radical do verbo “ver”. O grupo da UE em atividade missionária em Kiev quer-nos cegos e sossegados, com a cabeça vazia, catapléticos!


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O Problema da Habitação — uma questão bíblica e um revelador da ideologia dominante

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 24/09/2023)


Lusa 29 Jan 2020: O número de pessoas em situação sem-abrigo aumentou nos últimos anos em mais de um terço dos 35 países da Organização Para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), incluindo Portugal. De acordo com o relatório, a taxa de sem-abrigo (medida como uma parcela da população total) aumentou na Austrália, no Chile, em Inglaterra, França, Islândia, Irlanda, Letónia, Luxemburgo, Países Baixos, Nova Zelândia, Portugal, Escócia, Estados Unidos e País de Gales.

O problema da Habitação em Portugal é exatamente igual ao problema da Habitação dos outros países europeus. E tem a mesma raiz que o problema da Saúde, o problema da Educação, o problema da Segurança Social, o problema da precariedade do trabalho e da desigualdade salarial. E vai resolver-se com a mesma solução dos Estados Unidos, a potência líder da nossa civilização e modelo político: milhões de sem abrigo, sem domicílio fixo, a viver na rua ou em autocaravanas!

O problema é o capitalismo — um problema que Adam Smith, o seu pai fundador, logo levantara ao alertar para as formas de desumanização que a competição entre os mais fortes e os mais fracos produziria e que apenas seriam resolvidas pela moral. Adam Smith era profundamente religioso e a moral é um valor de ocasião!

O atual problema da Habitação é um revelador da instabilidade estratégica resultante da emergência de novos poderes que obrigam os Estados Unidos a impor o seu modelo civilizacional aos estados vassalos. O Estado Social Europeu é muito caro e os recursos são necessários para os aparelhos militares. Entre os canhões e manteiga a escolha são os canhões e a inflação para os pagar.

O final da II Guerra Mundial gerou a partilha do mundo pelas superpotências vencedoras e uma das medidas tomadas pelos Estados Unidos para manterem as grandes massas em oposição ao socialismo e ao comunismo foi a utilização de partidos sociais, os partidos sociais-democratas e democratas cristãos que receberam parte dos fundos destinados aos sistemas repressivos para serem utilizados em políticas sociais de educação, habitação, de saúde, de segurança social. Os partidos sociais-democratas e democratas cristãos são um produto do capitalismo e da estratégia dos EUA para a Europa Ocidental. Não foi por existir uma política pública de apoio social que os bens sociais deixaram de ser um produto no mercado e no arsenal da guerra fria. O estado de bem-estar é uma mercadoria eleitoral que vale enquanto rende submissão voluntária e ilusão de liberdade.

Entre os bens sociais, a habitação esteve sempre entregue na totalidade ao sistema financeiro, ao coração do capitalismo, à banca, ao longo do seu ciclo de produção — do terreno, ao empréstimo para a empresa construtora, ao empréstimo ao promitente comprador. O europeu médio, satisfeito pelas benesses de uma reforma, de um tratamento da doença tendencialmente gratuito, com férias, com escola grátis, esqueceu-se que para habitar ficava endividado até ao resto dos seus dias, democraticamente dominado pelos banqueiros, votasse em quem votasse, lesse o que lesse, dissesse o que dissesse!

O fim da ameaça do comunismo tornou desnecessário continuar a pagar aos europeus para eles não aderirem ao comunismo — ao socialismo sob qualquer graduação. As crises que afetam agora todos os serviços públicos — julgados até agora direitos europeus — são frutos do fim da URSS.

A União Europeia, a partir da implosão da URSS, tem sido o veículo de transição da Europa para a economia liberal pura e dura . O BCE é um dos instrumentos principais para conduzir esse processo restauracionista e fazer o enterro da ilusão de liberdade e bem-estar. Para a imposição do regime neoliberal em vigor desde sempre nos EUA.

A recuperação da Rússia como superpotência militar e cada vez mais como superpotência económica, com grande superfície, baixa densidade populacional, grande riqueza de matérias-primas, a emergência da China, da Índia ameaçaram a supremacia americana e obrigaram a um cerrar de fileiras a todo o custo, a começar pelo desmantelamento do estado social europeu. A guerra quente na Ucrânia, a guerra fria com a China, as disputas regionais pela conquista da fidelidade da Índia (ou da não hostilidade) e as guerras regionais em África são nós da mesma rede.

Os problemas da Habitação têm causas conhecidas e estudadas. Alguns números portugueses:

– 22,7% das famílias vive em casa arrendada.

– Das 77,3% famílias que habitam casa própria, 31,2% tem encargos bancários. — 46,8% das 77,3% famílias proprietárias não paga encargos. As razões são várias — ou são mais velhas e já pagaram, ou são as proprietárias maioritárias de habitações tipo vivenda e não de apartamento em propriedade horizontal, ou são empresários que as colocam como imóvel da empresa, ou estão registadas numa praça offshore.

– Um outro vetor do problema da Habitação é o seu custo, que subiu 9,9 % no ano 2020 relativamente ao ano anterior, muito acima da inflação: basicamente custo do terreno, custo dos materiais e custo do dinheiro. Além da especulação.

O governo, qualquer governo europeu, poderia atacar o problema da Habitação por várias frentes, entre outras:

– Impondo limites aos lucros dos bancos. Limites de juros, de comissões. Esses limites teriam reflexos nas prestações mensais e também no preço das habitações, pois diminuiriam os encargos dos construtores! Mas seria atacar o coração do sistema: os bancos. A começar pelo neoliberal BCE da senhora Lagarde que é uma senhora por conta dos grandes poderes, que esteve no FMI, onde se senta agora uma senhora búlgara! Todas por conta do domínio do dólar como moeda de troca mundial e de um sistema social de baixo custo, conseguido pelo individualismo e pelo desprezo dos direitos dos seres mais fracos, de uma percentagem oficialmente admissível para as sociedades ditas desenvolvidas de 30 a 40% de elementos abaixo dos limites da pobreza! Não há governo europeu que se atreva a ir contra o patrão americano! Os sem-abrigo não votam!

– Impondo limites às Câmaras Municipais para urbanizar em terrenos de reserva e, principalmente, abandonar a transferência orçamental automática de acordo com as licenças de construção emitidas. Impedir ou limitar a construção não habitacional! Mas isso seria alienar a cumplicidade das autarquias e perder os cabos eleitorais que os autarcas também são. Não se ganham eleições com essa gente contra! Essa gente, como afirma o Isaltino — quer obra!

– Impedindo a compra de casas de habitação a não residentes permanentes (uma proposta sensata do BE! Logo deturpada pela comunicação social), mas isso seria afrontar os grandes fundos de investimento cotados nas grandes Bolsas. Quem se atreve?

Resta então, fazer de conta que se ataca o problema indo ao escalpe dos proprietários nacionais — a classe média com algum património — que detém as habitações onde vivem 22,7% dos arrendatários, que, numa percentagem significativa pagam rendas irrisórias que não dão para manter as casas. Aos inquilinos dá-se-lhe o placebo de uma moratória nos juros, mas terão de pagar os empréstimos aos bancos até ao último centavo!

De fora da resolução ficam os detentores dos grandes meios do capitalismo:

– o sistema financeiro, que controla os preços através do estabelecimento das taxas de juro que afetam o preço dos terrenos, da construção e das rendas;

– o poder dos grandes fundos internacionais, para quem os prédios são um investimento cego e sem fins sociais;

– o poder dos autarcas, que vivem dos Planos Diretores Municipais e das licenças de construção;

– os compradores estrangeiros com fundos em offshore e que nem aqui pagam impostos;

É este o sistema e são estes os bloqueios na habitação. Com a mesma raiz dos problemas na saúde pública, o SNS, sob fogo das estruturas sindicais como tropa de choque das empresas de saúde privadas, associadas às companhias de seguros; dos problemas da educação, atacado pelos interesses do ensino privado do pré-escolar ao universitário através dos mais de 10 sindicatos que por ali se movem.

Para efeitos de propaganda o problema da Habitação vai receber tratamento paliativo à custa dos tais proprietários de médios rendimentos que fornecem o serviço privado a 22,7% dos portugueses.

No restante não se toca, porque ameaça o coração do sistema.

Há que promover os sem abrigo para resolver o problema da Habitação em Portugal e na Europa! Esse é o verdadeiro programa, o que resolve em termos capitalísticos o problema! Há que deixar 30 a 40% de população sem SNS e sem seguro privado para resolver o problema da saúde.

Ninguém se lembrou (não se quis lembrar!) que a alimentação também é um problema e que se morre mais depressa de fome do que de falta de um teto e nenhum governo se atreveu a decretar uma lei travão às grandes cadeias de distribuição. Isso seria ofender os grandes capitalistas! A SONAE, a Jerónimo Martins (que paga impostos na Holanda), a Auchan, entre outros. Gigantes que nenhum governo afronta, até porque dominam a comunicação social! Há que multiplicar o estado assistencial: Bancos alimentares, sopas do sidónio.

E os preços da Saúde, também terão lei travão? Nem pensar. Os Amorins, os chineses do conglomerado Luz, a Cuf, não podem ser incomodados!

É este o sistema global que o programa da Habitação revela. Se algum político disser que o vai resolver está a mentir ou quer-se suicidar!

Afinal, segundo a Sagrada Bíblia, Deus colocou Adão e Eva na situação de sem abrigo. Adão e Eva foram os primeiros sem abrigo. Cresceram e multiplicaram-se. O problema da habitação começou aí! Justiça Divina.

Declaração de interesses: sou proprietário de 50% do apartamento em propriedade horizontal em que habito e que está integralmente pago.


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A guerra na Ucrânia e o fim do estado social europeu

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 04/07/2023)

Quem se submete aceita a lei do senhor. Os atuais dirigentes da União Europeia optaram por se integrarem na estratégia dos EUA e submeterem-se à sua ordem. Essa submissão não é apenas de ordem militar, é antes de tudo de ordem civilizacional.

A substituição do modelo social europeu do Estado de Bem-Estar teve inicio com Tatcher e os ingleses estiveram sempre na condução desse processo até ao Brexit e agora como os agentes dos EUA na condução das posições europeias quanto à guerra que aqueles travam com a Rússia na Ucrânia.

A destruição do estado social e sua substituição pelo individualismo neoliberal está em curso em toda a Europa com o ataque aos grandes sistemas públicos. Os primeiros alvos têm sido os serviços nacionais de saúde de cada Estado, seguir-se-ão os sistemas de previdência e segurança social e a escola pública.

Os ingleses sempre à frente. A Inglaterra assumiu a missão de fazer da Europa um Estado complementar e vassalo dos Estados Unidos. Isso significa não só a integração da Europa no sistema militar dos EUA, através da NATO, mas a importação do modelo económico e social do neoliberalismo reinante nos EUA.

A política iniciada no reinado de Tatcher culminou no êxito evidente da posição europeia na guerra, que levou ao corte de relações da U E com a Rússia, à elevação da China a inimigo e à integração da U E na estratégia do mundo unipolar dos EUA.

Este êxito da submissão da U E a estado vassalo dos EUA implica a adoção do seu modelo social, dos seus valores, do seu modo de o Estado se relacionar com os cidadãos.

Não é por acaso que o SNS português está sob ataque, como é visível na comunicação social, nem é um caso único, a degradação dos sistemas de saúde é generalizada, incluindo nos países nórdicos, assim como não é um acaso a degradação das pensões e outras prestações sociais, nem as “lutas” de professores em toda a Europa. Tudo sempre com a justificação dos direitos e da defesa dos bens públicos, um argumento que constitui um terreno movediço onde se conjugam boas causas com estratégias de destruição.

Os ingleses vão, como sempre, à frente.

Este é o excerto de uma entrevista do presidente da Associação dos Médicos Britânicos ao The Guardian.(Em Portugal a Ordem dos Médicos é parte do processo de destruição).

“A maioria dos médicos acredita que os ministros deste governo estão a destruir o NHS”, disse o o líder dos médicos britânicos (Associação dos Médicos Britânicos) o professor Philip Banfield. Também alertou que o serviço de saúde, que na quarta-feira completará 75 anos de sua criação, é tão frágil que pode não sobreviver até os 80 anos.”

Banfield disse que o NHS (SNS) está num estado de “declínio administrado” porque os governos recentes tomaram “uma decisão política consciente” de negar recursos adequados ou enfrentar a escassez de pessoal.” Acrescentou: “Foi uma decisão política consciente subfinanciar e subestimar o NHS como um bem nacional e a sua equipe — não apenas médicos, mas [funcionários] em geral. O resultado disso é que o NHS não sobrevive mais 75 anos. Eu ficaria muito surpreendido se o NHS na sua forma atual sobrevivesse nos próximos cinco ou 10 anos, ao ritmo a que está diminuindo.”

A União Europeia, de onde os ingleses saíram, decidiu o futuro do seu modelo social na Ucrânia, seguindo os ingleses. Está decidido.

Parece que haverá brevemente eleições europeias. Para decidir o quê?

Most doctors think ministers want to destroy NHS, BMA boss says

Philip Banfield says health service is in state of ‘managed decline’ and may not survive next ‘five or 10 years’


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