O Problema da Habitação — uma questão bíblica e um revelador da ideologia dominante

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 24/09/2023)


Lusa 29 Jan 2020: O número de pessoas em situação sem-abrigo aumentou nos últimos anos em mais de um terço dos 35 países da Organização Para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), incluindo Portugal. De acordo com o relatório, a taxa de sem-abrigo (medida como uma parcela da população total) aumentou na Austrália, no Chile, em Inglaterra, França, Islândia, Irlanda, Letónia, Luxemburgo, Países Baixos, Nova Zelândia, Portugal, Escócia, Estados Unidos e País de Gales.

O problema da Habitação em Portugal é exatamente igual ao problema da Habitação dos outros países europeus. E tem a mesma raiz que o problema da Saúde, o problema da Educação, o problema da Segurança Social, o problema da precariedade do trabalho e da desigualdade salarial. E vai resolver-se com a mesma solução dos Estados Unidos, a potência líder da nossa civilização e modelo político: milhões de sem abrigo, sem domicílio fixo, a viver na rua ou em autocaravanas!

O problema é o capitalismo — um problema que Adam Smith, o seu pai fundador, logo levantara ao alertar para as formas de desumanização que a competição entre os mais fortes e os mais fracos produziria e que apenas seriam resolvidas pela moral. Adam Smith era profundamente religioso e a moral é um valor de ocasião!

O atual problema da Habitação é um revelador da instabilidade estratégica resultante da emergência de novos poderes que obrigam os Estados Unidos a impor o seu modelo civilizacional aos estados vassalos. O Estado Social Europeu é muito caro e os recursos são necessários para os aparelhos militares. Entre os canhões e manteiga a escolha são os canhões e a inflação para os pagar.

O final da II Guerra Mundial gerou a partilha do mundo pelas superpotências vencedoras e uma das medidas tomadas pelos Estados Unidos para manterem as grandes massas em oposição ao socialismo e ao comunismo foi a utilização de partidos sociais, os partidos sociais-democratas e democratas cristãos que receberam parte dos fundos destinados aos sistemas repressivos para serem utilizados em políticas sociais de educação, habitação, de saúde, de segurança social. Os partidos sociais-democratas e democratas cristãos são um produto do capitalismo e da estratégia dos EUA para a Europa Ocidental. Não foi por existir uma política pública de apoio social que os bens sociais deixaram de ser um produto no mercado e no arsenal da guerra fria. O estado de bem-estar é uma mercadoria eleitoral que vale enquanto rende submissão voluntária e ilusão de liberdade.

Entre os bens sociais, a habitação esteve sempre entregue na totalidade ao sistema financeiro, ao coração do capitalismo, à banca, ao longo do seu ciclo de produção — do terreno, ao empréstimo para a empresa construtora, ao empréstimo ao promitente comprador. O europeu médio, satisfeito pelas benesses de uma reforma, de um tratamento da doença tendencialmente gratuito, com férias, com escola grátis, esqueceu-se que para habitar ficava endividado até ao resto dos seus dias, democraticamente dominado pelos banqueiros, votasse em quem votasse, lesse o que lesse, dissesse o que dissesse!

O fim da ameaça do comunismo tornou desnecessário continuar a pagar aos europeus para eles não aderirem ao comunismo — ao socialismo sob qualquer graduação. As crises que afetam agora todos os serviços públicos — julgados até agora direitos europeus — são frutos do fim da URSS.

A União Europeia, a partir da implosão da URSS, tem sido o veículo de transição da Europa para a economia liberal pura e dura . O BCE é um dos instrumentos principais para conduzir esse processo restauracionista e fazer o enterro da ilusão de liberdade e bem-estar. Para a imposição do regime neoliberal em vigor desde sempre nos EUA.

A recuperação da Rússia como superpotência militar e cada vez mais como superpotência económica, com grande superfície, baixa densidade populacional, grande riqueza de matérias-primas, a emergência da China, da Índia ameaçaram a supremacia americana e obrigaram a um cerrar de fileiras a todo o custo, a começar pelo desmantelamento do estado social europeu. A guerra quente na Ucrânia, a guerra fria com a China, as disputas regionais pela conquista da fidelidade da Índia (ou da não hostilidade) e as guerras regionais em África são nós da mesma rede.

Os problemas da Habitação têm causas conhecidas e estudadas. Alguns números portugueses:

– 22,7% das famílias vive em casa arrendada.

– Das 77,3% famílias que habitam casa própria, 31,2% tem encargos bancários. — 46,8% das 77,3% famílias proprietárias não paga encargos. As razões são várias — ou são mais velhas e já pagaram, ou são as proprietárias maioritárias de habitações tipo vivenda e não de apartamento em propriedade horizontal, ou são empresários que as colocam como imóvel da empresa, ou estão registadas numa praça offshore.

– Um outro vetor do problema da Habitação é o seu custo, que subiu 9,9 % no ano 2020 relativamente ao ano anterior, muito acima da inflação: basicamente custo do terreno, custo dos materiais e custo do dinheiro. Além da especulação.

O governo, qualquer governo europeu, poderia atacar o problema da Habitação por várias frentes, entre outras:

– Impondo limites aos lucros dos bancos. Limites de juros, de comissões. Esses limites teriam reflexos nas prestações mensais e também no preço das habitações, pois diminuiriam os encargos dos construtores! Mas seria atacar o coração do sistema: os bancos. A começar pelo neoliberal BCE da senhora Lagarde que é uma senhora por conta dos grandes poderes, que esteve no FMI, onde se senta agora uma senhora búlgara! Todas por conta do domínio do dólar como moeda de troca mundial e de um sistema social de baixo custo, conseguido pelo individualismo e pelo desprezo dos direitos dos seres mais fracos, de uma percentagem oficialmente admissível para as sociedades ditas desenvolvidas de 30 a 40% de elementos abaixo dos limites da pobreza! Não há governo europeu que se atreva a ir contra o patrão americano! Os sem-abrigo não votam!

– Impondo limites às Câmaras Municipais para urbanizar em terrenos de reserva e, principalmente, abandonar a transferência orçamental automática de acordo com as licenças de construção emitidas. Impedir ou limitar a construção não habitacional! Mas isso seria alienar a cumplicidade das autarquias e perder os cabos eleitorais que os autarcas também são. Não se ganham eleições com essa gente contra! Essa gente, como afirma o Isaltino — quer obra!

– Impedindo a compra de casas de habitação a não residentes permanentes (uma proposta sensata do BE! Logo deturpada pela comunicação social), mas isso seria afrontar os grandes fundos de investimento cotados nas grandes Bolsas. Quem se atreve?

Resta então, fazer de conta que se ataca o problema indo ao escalpe dos proprietários nacionais — a classe média com algum património — que detém as habitações onde vivem 22,7% dos arrendatários, que, numa percentagem significativa pagam rendas irrisórias que não dão para manter as casas. Aos inquilinos dá-se-lhe o placebo de uma moratória nos juros, mas terão de pagar os empréstimos aos bancos até ao último centavo!

De fora da resolução ficam os detentores dos grandes meios do capitalismo:

– o sistema financeiro, que controla os preços através do estabelecimento das taxas de juro que afetam o preço dos terrenos, da construção e das rendas;

– o poder dos grandes fundos internacionais, para quem os prédios são um investimento cego e sem fins sociais;

– o poder dos autarcas, que vivem dos Planos Diretores Municipais e das licenças de construção;

– os compradores estrangeiros com fundos em offshore e que nem aqui pagam impostos;

É este o sistema e são estes os bloqueios na habitação. Com a mesma raiz dos problemas na saúde pública, o SNS, sob fogo das estruturas sindicais como tropa de choque das empresas de saúde privadas, associadas às companhias de seguros; dos problemas da educação, atacado pelos interesses do ensino privado do pré-escolar ao universitário através dos mais de 10 sindicatos que por ali se movem.

Para efeitos de propaganda o problema da Habitação vai receber tratamento paliativo à custa dos tais proprietários de médios rendimentos que fornecem o serviço privado a 22,7% dos portugueses.

No restante não se toca, porque ameaça o coração do sistema.

Há que promover os sem abrigo para resolver o problema da Habitação em Portugal e na Europa! Esse é o verdadeiro programa, o que resolve em termos capitalísticos o problema! Há que deixar 30 a 40% de população sem SNS e sem seguro privado para resolver o problema da saúde.

Ninguém se lembrou (não se quis lembrar!) que a alimentação também é um problema e que se morre mais depressa de fome do que de falta de um teto e nenhum governo se atreveu a decretar uma lei travão às grandes cadeias de distribuição. Isso seria ofender os grandes capitalistas! A SONAE, a Jerónimo Martins (que paga impostos na Holanda), a Auchan, entre outros. Gigantes que nenhum governo afronta, até porque dominam a comunicação social! Há que multiplicar o estado assistencial: Bancos alimentares, sopas do sidónio.

E os preços da Saúde, também terão lei travão? Nem pensar. Os Amorins, os chineses do conglomerado Luz, a Cuf, não podem ser incomodados!

É este o sistema global que o programa da Habitação revela. Se algum político disser que o vai resolver está a mentir ou quer-se suicidar!

Afinal, segundo a Sagrada Bíblia, Deus colocou Adão e Eva na situação de sem abrigo. Adão e Eva foram os primeiros sem abrigo. Cresceram e multiplicaram-se. O problema da habitação começou aí! Justiça Divina.

Declaração de interesses: sou proprietário de 50% do apartamento em propriedade horizontal em que habito e que está integralmente pago.


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Renomeie o mundo

(Por Batiushka in Reseauinternational.net, Trad. Estátua de Sal, 30/09/2023)

Diz-se que Nero tocou violino enquanto a Roma pagã, que ele próprio incendiou, ardia. Hoje temos a imagem do Presidente Putin a tocar o seu violino enquanto o império sucessor da Roma pagã (o Ocidente pagão) arde. A diferença é que não foi o Presidente quem iniciou o incêndio, foi esta Roma que começou a arder e que, além disso, recusou até agora qualquer ajuda russa para extinguir o incêndio que ela própria criou. 

Portanto, a Rússia não tem pressa em acabar com o incêndio na Ucrânia, pelo qual o Ocidente é inteiramente responsável. Deixe-a lutar: o inverno está a chegar e depois haverá as eleições nos EUA em Novembro de 2024, razão pela qual a elite ocidental egoísta não quer acabar imediatamente com o conflito ucraniano.

O Ocidente já foi forçado a abandonar a sua melhor esperança na Ucrânia, a da vitória, e a sua segunda melhor esperança, a de um “ conflito congelado ” ao estilo coreano. A libertação de toda a Rússia, a leste e a sul da Ucrânia, continuará, enquanto o resto será neutralizado e desnazificado, transformado num satélite inofensivo sem litoral. Depois disso, a Europa terá de adotar uma atitude muito diferente em relação a uma Rússia vitoriosa, bem como aos BRICS. Quanto aos Estados Unidos, terão de organizar a sua própria festa colossal de gangsters e banqueiros cor de fentanil. E é provável que esta união artificial reforçada pela violência se divida, por sua vez, e tenha de ser renomeada.

Mudando nomes de lugares

Deixando de lado o Ocidente pequeno, egocêntrico e em colapso, o resto do mundo já está a planear reformular a sua marca na era pós-americana. A Índia poderá em breve mudar seu nome do inglês “ India ” para o hindi “ Bharat ”. Esta é apenas a última de uma longa e lenta série de mudanças de nomes após a colonização. É completamente normal que os países sejam referidos pelos seus próprios nomes e não por nomes estrangeiros. A China será o próximo país a mudar de nome? Zhong Guo? Independentemente disso, mesmo sem esta última mudança, que daria ao BRICS+6 o nome polaco BRBZS, o BRICS+6 necessitará de um novo nome.

O processo de renomeação de países e colónias no mundo pós-ocidental está em curso há vários anos. Os antigos nomes coloniais são abandonados. Entre muitos exemplos, os mais conhecidos são talvez as mudanças de Pequim para Pequim, de Bombaim para Mumbai, do Sião para a Tailândia, do Alto Volta para Burkina Faso, do Zaire para a RD Congo, da Rodésia para o Zimbabué, da Niassalândia para o Malawi, da Do Sudoeste de África à Namíbia, da Birmânia a Mianmar, do Ceilão ao Sri Lanka e recentemente da Turquia a Turkiye. Contudo, os processos de desocidentalização e de nativização ainda estão longe de estar concluídos.

Considere termos como “Extremo Oriente”, “Oriente Médio” e “Oriente Próximo”. Todos esses termos são absurdos. Leste de quê? Do ponto de vista japonês, o que é chamado de “Médio Oriente” deveria ser chamado de “Médio Oeste”. Felizmente, estes termos já estão a desaparecer em favor dos termos geograficamente precisos “Ásia Ocidental” e “Ásia Oriental”, e o termo sem sentido “Oriente Médio” quase desapareceu. Claro, ainda temos o termo “Europa”. Isto é um problema porque a Europa não é um continente geográfico. Curiosamente, é o único “continente” cujo nome em inglês não começa e termina com a letra “A”.

Todos os outros continentes estão separados uns dos outros por oceanos. Sim, é verdade que um istmo muito estreito, cortado por um canal, liga a África à Ásia e, da mesma forma, a América do Norte à América do Sul. No entanto, a península europeia tem uma “fronteira” com a Ásia que se estende por milhares de quilómetros e a sua posição entre a Europa e a Ásia nunca foi clara. Isto porque a Europa é uma construção, uma divisão, um continente artificial. Chegará o dia em que abandonaremos completamente a palavra “Europa” e chamaremos esta região de “Noroeste da Ásia” ou simplesmente de “Eurásia”? (Etimologicamente, a palavra Europa significa simplesmente “o oeste”, assim como Ásia significa simplesmente “o leste”).

Em seguida vêm a Austrália e as Américas. Estes não são certamente “novos mundos” para aqueles que viveram lá durante dezenas de milhares de anos antes de os europeus os descobrirem e só recentemente os terem renomeado. O nome latino Australásia é gradualmente substituído por Oceânia. Talvez isso seja bom, mesmo que “oceano” ainda não seja uma palavra nativa. Mas e o nome Austrália? Como isso poderia mudar? Quanto ao nome anglo-holandês “Nova Zelândia”, ainda poderia ser substituído pelo nome indígena Aotearoa. Quanto às Américas, não parece haver nenhuma alternativa séria sobre a mesa. Ainda é estranho que dois continentes tenham recebido o nome de um cartógrafo italiano que nunca viveu lá e os visitou apenas brevemente. Alguns sugeriram “Brasília” para a América do Sul, mas de qualquer forma é uma palavra gaélica escocesa que significa “Grande Ilha”. Quanto à América do Norte, “Ilha da Tartaruga” parece uma escolha improvável. A questão permanece, portanto, sem resposta.

Depois há toda a questão do próprio termo “Ocidente”. Esta é novamente uma construção. A Europa deve ser o “Oriente Médio” visto de Nova Iorque, mas Nova Iorque deve ser o “Oriente Médio” visto de Los Angeles e a Europa deve ser o “Extremo Oriente” visto de Los Angeles. No entanto, se abandonarmos o eurocentrismo, que está no cerne do problema, e colocarmos o Japão no centro, então Nova Iorque estará no “Extremo Oriente”, a Europa será o “Extremo Ocidente” e a Austrália, da cultura ocidental, deverá ser o “Extremo Sul”. Um dia teremos que encontrar termos exatos.

Renomeando guerras e história

A renomeação das guerras é outro problema causado pelo eurocentrismo. Os exemplos mais óbvios são a Primeira e a Segunda Guerras “Mundiais”, que na verdade deveriam ser renomeadas como Primeira e Segunda Guerras Imperialistas Ocidentais. Há, no entanto, uma infinidade de exemplos mais recentes. A Guerra do Iraque deveria na verdade ser chamada de Guerra Anti Iraque, tal como as Guerras da Coreia e do Vietname deveriam ser rebatizadas de Genocídio Ocidental na Coreia e de Ocupação do Vietname pelos EUA.

Se recuarmos ainda mais na história, encontraremos o ataque não anunciado dos japoneses à Rússia, chamado de “Guerra Russo-Japonesa”. Uma vez que o Japão foi usado como representante do Ocidente para este ataque (tal como a Ucrânia hoje), deveria ser chamada de Guerra Ocidental e Japonesa contra a Rússia. Depois, no século XIX, temos o chamado “Motim Indiano”, corretamente chamado na Índia/Bharat de “a Primeira Guerra de Libertação”. A Guerra da Crimeia deveria ser renomeada como invasão anglo-francesa da Rússia. Quanto às “guerras do ópio”, seria certamente mais apropriado chamá-las de “genocídios britânicos na China”.

Há também a renomeação de períodos históricos. O que é a “Idade Média”? Na Europa Ocidental, há pouco acordo sobre o significado deste termo, muito menos sobre o absurdo da sua utilização para culturas não-ocidentais. O que podemos dizer com certeza é que os ocidentais que viveram entre os séculos XI e XV, por exemplo, não pensavam que viviam na Idade Média. E então, quando aconteceu o “Renascimento”? E o que é arquitetura “gótica”? Tantos nomes que apenas denunciam os preconceitos e a ignorância de quem os inventou, geralmente séculos depois de terem existido.

Outro exemplo é a estranha expressão “anglo-saxão”. Hoje, curiosamente, tende a ser usado para “anglo-americano”. De qualquer forma, não tem nada a ver com os povos germânicos que eram chamados de anglos e saxões. Eles nunca usaram o termo “anglo-saxão” para se descreverem. Eles foram chamados de “Inglês”. Não pronunciamos “Inglês”, como hoje, mas sim “Inglês”. Eles eram os verdadeiros ingleses. Os normandos (que na verdade foram os últimos piratas e invasores vikings) vieram atrás deles, depois os anglo-normandos.

Estes últimos eram formados por normandos e mercenários traiçoeiros entre os ingleses, que não tinham identidade, princípios ou crenças (viviam principalmente em condições urbanas e não na terra). Eles escolheram conformar-se com aqueles que têm poder e dinheiro, isto é, a nova classe dominante composta por aristocratas e comerciantes famintos por poder e dinheiro. Isto é chamado de “Estabelecimento” porque são invasores estrangeiros que “se estabeleceram” explorando e implicando habitantes locais covardes e sem princípios. E os anglo-normandos ainda hoje constituem o establishment do Reino Unido. Quanto ao povo, ainda hoje é chamado pelo establishment de “plebe”, palavra latina que designa gente comum.

Na Europa continental a situação é semelhante. Assim, os francos na maior parte do noroeste da Europa e os lombardos na Itália substituíram as populações indígenas. No que hoje chamamos de França, eles substituíram os gauleses, no que hoje chamamos de Alemanha, eles substituíram os Wends e os Saxões. Também aqui deveríamos falar de franco-gauleses, franco-saxões, lombardo-italianos como o establishment dominante.

Conclusão

O que está claro é que o mundo pós-ucraniano inaugura uma nova era, o mundo pós-americano. Este mundo acabará sendo muito diferente da era americana de 1922-2022 (descanse em paz – se você puder descansar em paz). Como será chamado? A era pós-moderna? A era pós-imperial? A era pós-ocidental? A era pós-bárbara? A era global? A era multipolar? A verdadeira nova ordem mundial?

Nós, que estamos no alvorecer de tudo isto, descobriremos os nomes nos livros de história do futuro, que ainda não foram escritos. Tudo o que podemos ter certeza é que muitas, muitas mudanças não estão apenas no horizonte, mas estão acontecendo aqui e agora, diante dos nossos olhos atônitos, desde 24 de fevereiro de 2022. Preparem-se para mais convulsões históricas.

Fonte aqui


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Afinal, o que diz Cavaco? Nada

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 29/09/2023)

Miguel Sousa Tavares

Eu sei que venho com algum atraso, mas era preciso corresponder ao repto de Durão Barroso: ler o livro antes de o comentar. E acontece que o livro é de tal forma aborrecido que duvido até que Durão Barroso, o seu apresentador, o tenha lido todo. Falo, obviamente, de “O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar”, a última obra do grande estadista Cavaco Silva que tanto entusiasmou a nossa direita, na medida em que tanto irritou a nossa esquerda. Mas sosseguem, uns e outros: não há quaisquer motivos para uma ou outra coisa.

Sobre Cavaco Silva, o homem e o personagem, o seu perfil ético, cívico e político, remeto para o artigo que Luís Aguiar-Conraria aqui escreveu há 15 dias e que eu não me importaria de ter assinado. Apenas realçaria o episódio da venda das acções do BPN, não cotadas em Bolsa, com um lucro de 300%, por decisão do presidente do banco e seu amigo pessoal, Oliveira e Costa. Tudo poderia ter ficado no domínio de um negócio entre amigos com dinheiros de um banco privado não fosse o caso de terem sido negócios desses que levaram o BPN à falência e obrigaram os contribuintes a pagar a conta. Que Cavaco Silva não se tenha perturbado com a revelação do episódio é uma coisa; outra coisa é que se tenha vindo gabar dele, afirmando ter sido a sua competência como professor de Finanças que o tornou possível e que nem mesmo alguém que nascesse duas vezes seria tão sério como ele.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Sobre Cavaco Silva e a sua lenda de estadista e “fazedor” é tudo uma questão de opinião. A minha, e sempre dita desde então, é que ele foi o primeiro-ministro a quem o acaso pôs nas mãos uma oportunidade única para mudar Portugal e desperdiçou a oportunidade. Herdou um país com contas postas em ordem por Ernâni Lopes e que, contra as suas dúvidas, entrara na União Europeia pela mão de Mário Soares. Encontrou paz so­cial e institucional, uma enxurrada de dinheiros como nunca visto e maioria para governar. E começou por vender a agricultura a Bruxelas por 600 milhões de contos, em dinheiro da altura, com isso desmantelando o mundo rural e dando início ao processo de despovoamento do interior que, entre outras coisas, hoje está na origem da grave crise habitacional dos centros urbanos. Depois fez o mesmo com as pescas, com a construção naval, com as minas e com as indús­trias transformadoras, declarando que Portugal iria viver da prestação de serviços. Apostou tudo nas estradas, para, como disse ironicamente Ribeiro Telles, “os espanhóis trazerem mais depressa os produtos agrícolas deles para os nossos supermercados”, e, em contrapartida, começou o trágico processo de desmantelamento da ferrovia, liquidando uma empreitada que exigira 150 anos de esforço da nação. Engrossou o Estado para a eternidade e, das “reformas da década” que diz ter feito, uma — a da Saúde — já fora feita antes, com a criação do SNS, e outra — a do financiamento da Segurança Social — foi feita depois por Vieira da Silva, sendo que todas as outras, a começar pela da Justiça, permanecem por fazer até hoje. Mas criou a lenda e esse foi o seu grande feito.

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Não admira que, ciclicamente, Cavaco se sinta tentado a escrever e acrescentar a sua biografia, não vão outros, como eu, deslustrá-la. É disso, mais uma vez, que, directa ou subliminarmente, trata este livro, dividido em três partes. Na parte do meio, ele, o ex-eurocéptico, canta loas à Europa, a cuja construção se amarra e descreve sem grande originalidade nem distanciamento: na Wikipédia há peças semelhantes mais interessantes. A terceira e última parte é composta por duas conferên­cias e sete artigos já publicados, entre os quais o “célebre” artigo sobre a Lei de Gresham, que ele estima um marco no pensamento político português, pois que o republica 19 anos depois “porque não parece ter perdido pertinência”. Os outros artigos, está bem de ver, são todos a bater no actual Governo e já por demais lidos e comentados. Resta, então, como original, a primeira parte do livro, que lhe dá título.

Para quem esperava de alguém que foi PM durante dez anos uma reflexão política profunda e meditada sobre o exercício do poder e a sua capacidade transformadora, as instruções de Cavaco são qualquer coisa de absolutamente indigente, variando entre o banal, o cómico e o ridículo.

Essa primeira parte é difícil de classificar, mas talvez se possa dizer que é uma espécie de manual de instruções para a Universidade de Verão dos jotinhas, em particular aqueles que aspiram a um dia virem a ser primeiros-ministros. Para quem esperava de alguém que foi PM durante dez anos uma reflexão política profunda e meditada sobre o exercício do poder e a sua capacidade transformadora, as instruções de Cavaco — a que ele chama “reflexões normativas” — são qualquer coisa de absolutamente indigente, variando entre o banal, o cómico e o ridículo. O que dizer da afirmação de que a escolha das pes­soas para o Governo “não pode ser feita na praça pública, para não prejudicar a aceitação dos convites”, ou que “o PM deve apresentar-se devidamente preparado sobre cada um dos pontos da agenda do Conselho de Ministros”? Mais cómicas são as afirmações de que “é mesmo muito provável que os ministeriáveis do partido estejam ansiosos que o telemóvel toque” ou que “as reuniões do Conselho de Ministros devem decorrer sem dispensa do formalismo necessário. Dentro da sala, os ministros devem tratar-se uns aos outros pelas respectivas designações oficiais e evitar informalidades excessivas e tratamentos por tu” (imaginem: “srª Ministra da Coesão Interterritorial, pode passar-me a água? Faça favor, sr. Ministro dos Transportes e Comunicações”). Mais a sério, é de reter a afirmação de que “o exercício de funções de chefe do Executivo é uma tarefa muito exigente”, quanto mais não seja porque é preciso manter sempre um olho vigilante no PR, pois que “a principal preocupação do PM no seu relacionamento com o PR deve ser a de evitar que o Presidente utilize os seus poderes para impedir o Governo de executar o seu programa e que tenha sucesso na sua acção”. Isto dito por quem exerceu ambas as funções é, enfim, uma reflexão carregada de sentido. Talvez mesmo a única. Porque o resto, se querem a minha opinião, não vale 17,75 euros e, sobretudo, o tempo perdido.

2 O que aconteceu na Madeira, isso, ultrapassa o ridículo para cair no domínio da total falta de decência. Um chefe de Governo que promete, jura, diz e volta a dizer que não governará se não lhe derem maioria absoluta e que logo, perante o insucesso, se enterra num pântano de malabarismos semânticos para tentar demonstrar que a palavra “não” dita por um político não significa o mesmo que a palavra “não” dita por uma pessoa de bem. E que, acto contínuo, começa a negociar um acordo para o sim com um partido que os madeirenses nem devem saber o que seja, com um programa de governo que mistura hotelaria com brócolos e subsídios ao turismo com subsídios à esterilização dos gatinhos. Um chefe do partido da oposição local que, tendo perdido 8 deputados em 19, longe de pensar em demitir-se, quer é saber se o chefe do Governo se demite, porque ele continua a ser “a alternativa”. É o dirigente nacional do principal partido da oposição que resolve ir cavalgar antecipadamente uma vitória regional que afinal o não foi, mas que canta vitória na mesma, sem se dar conta do ridículo a que se presta. Parecem garotos a brincar à política.

3 “Basicamente, sou uma puta. Ob viamente, o que eu quero é ter bens materiais, sentir a minha vida boa.” Esta frase, escutada e gravada pela PJ há dois anos, pertence a um dos arguidos da Operação Tempestade Perfeita e foi dita em conversa com outro comparsa nos negócios montados no Ministério da Defesa, e não só, para roubar o Estado português. Trata-se de dois directores de serviços, um cargo superior da Administração Pública, falando com o à-vontade de quem não esconde o que faz, o que quer e a total ausência de escrúpulos com que ac­tuam. Provavelmente, os seus processos acabarão prescritos, arquivados por falta de provas, amnistiados pela visita papal, e, até lá, eles continuarão a receber o seu ordenado, embora suspensos de funções, com o processo disciplinar a aguardar pelo processo-crime — ou seja, de férias pagas e prolongadas. Nada que os incomode, presumo. Todavia, pergunto: esta puta não terá pais, mulher, filhos que encarar? Alguns amigos ou conhecidos que o julguem honesto, o homem que lhe serve o café de manhã?

Esta puta vai andar por aí como se nada fosse, à espera que a justiça funcione e os outros se esqueçam dele? Não se vai internar voluntariamente na prisão ou num convento? “Basicamente, é uma puta”? Não, o que ele é é um chulo. Puta, ao pé disto, é uma profissão honesta.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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