Defender “esta” Europa, para nosso azar!

(Hugo Dionísio, in Facebook, 10/02/2023)

Na reunião que levou este súbito multimilionário – agora 50% mais rico do que no início do conflito que opõe a NATO à Federação Russa, de acordo com os últimos Pandora Papers -, foi possível ouvi-lo afirmar que “é esta Europa que defendemos no campo de batalha”.

Perante o regozijo do batalhão composto por funcionários, capatazes e outros quadros intermédios do aparato político-corporativo que compõe a cúpula do poder da EU – encabeçado pela sua zelosa CEO Úrsula Von Der “Lata” -, o comediante sem graça proferiu o seu vulgar discurso, como sempre carregado de chavões propagandísticos, tão mais vazios quanto mais cheios estão os seus bolsos, devido ao papel execrável que desempenha.

Confrontado com a insuficiência de recursos e apoios para fazer face à sua defesa “desta” Europa, o comediante lá vai assumindo uma tónica catastrofista que não joga minimamente com o tom triunfalista de quem dizia, em Setembro passado, que não perderia mais um metro quadrado que fosse para o inimigo.

Em passo acelerado para completar a destruição do terceiro exército que a NATO lhe coloca ao dispor (o 1.º foi logo no primeiro mês; o 2.º foi no verão passado; o terceiro está a ir agora), e insistindo na chacina de centenas de milhares, às mãos de um exército que decidiu provocar e combater, o comediante promovido a presidente, pelos poderes oligárquicos pró-ocidentais, desdobra-se em reuniões pedindo tudo o que dispare qualquer coisa, velho ou novo, funcionando ou não.

Lembro que a derrota do exército privado que tem ao seu dispor, montado com o dinheiro dos impostos dos europeus e americanos, longe de ser inesperada, era há muito anunciada. Só uma avaliação arrogante, auto-indulgente, imbecil e realizada por gente seguidista sequiosa de agradar aos seus chefes, poderia levar alguém a pensar que a Federação Russa é um país susceptível de se deixar vencer no campo de batalha. Tal como os EUA ou a China, a Rússia é um daqueles colossos orgulhosos da sua pátria e história, que prefere perder milhões dos seus filhos a sucumbir a um qualquer poder estrangeiro. A história demonstra-o à saciedade.

Foram e são muitos os que o disseram desde o início, foram e são muitos, os que hoje o passaram a assumir, foram e são muitos os que disseram que a retirada de Kharkiv, não era uma derrota da Rússia, era o início do fim do exército da NATO na Ucrânia. A retirada tática de Kherson, apresentada pela Ucrânia como vitória, para além das dezenas de milhares de soldados mortos, que se esmagaram, em vagas sucessivas contra o muro defensivo então montado, representou o ponto em que, o lutador, assenta bem os pés no chão, para passar ao assalto final. Na imprensa corporativa quase ninguém o constatou…

Hoje, perante os avanços diários da Rússia em toda a frente, começa a ser indisfarçável o tom derrotista, que denuncia o desespero. Foi esse desespero que o comediante levou a Bruxelas. O que faz todo o sentido, pois ao fazê-lo, assume-se finalmente por conta de quem esta marionete mandou para guerra centenas de milhares de jovens, filhos da classe trabalhadora, enquanto os seus fugiram para “esta” Europa, que lhes franqueou as portas, entrando por elas adentro todo o tipo de representantes das estruturas sociais criminosas que são características de um dos países mais corruptos do mundo. “Esta” Europa recebeu-os de braços abertos! Os trabalhadores ficaram a combater e a morrer por “nós”! É o conto que agora nos é contado!

Mas que Europa diz o comediante defender, no campo de batalha?

Coloca-se a questão de se saber se a Europa que é defendida no campo de batalha será, sequer, uma Europa que valha a pena ser defendida. No fundo, devemos perguntar se esta Europa, não será tão indefensável, quanto o mandatário belicoso contratado será incapaz de a defender. Se não estarão, os dois, bem um para o outro.

Começamos logo pela própria escolha do campo de batalha – o território ucraniano -, como sendo o terreno escolhido para a defesa “desta” Europa. Esta escolha representa, em si mesma, a imagem da razão última, pela qual, “esta” Europa não pode, não deve, nem sequer merece ser defendida! É que não foi “esta” Europa quem escolheu esta batalha; não foi “esta” Europa quem escolheu este campo de batalha! “Esta” Europa não escolhe, decide ou produz, por vontade própria, muito menos, dos seus povos. “Esta” Europa é apenas um instrumento de vontades alheias. Merkel e Hollande bem representam “esta” Europa quando confirmaram o papel execrável que lhes foi encomendado, e que tão honrados se sentiram em cumprir, mesmo contra a vontade dos povos europeus, ucraniano e da Federação Russa.

Como defender “esta” Europa, numa batalha em que actua como mero fio condutor de um poder que não é seu? De um poder que não lhe pertence? De um poder que não controla, mas que, ao invés, por ele é controlada?

A Europa que o comediante diz defender é uma Europa sem ligação à vida real, não passando de uma superestrutura desconectada da vida dos povos que a compõem, apenas funcionando, entre ambos, uma ténue ligação unidireccional, posicionada de cima para baixo, estabelecida pelos órgãos de propaganda institucional a que chamamos imprensa. Se a imprensa transmite aos povos as pretensões dessa Europa, manipulando e construindo o consentimento social necessário (o que Noam Chomsky escreveu sobre isto!), tão pouco esta Europa admite que os povos, resistentes ao consentimento construído, possam ter uma voz no desenho e aplicação das suas ações. Não é a eles que esta Europa responde.

Esta Europa responde mais acima, como um qualquer director corporativo responde ao seu CEO, ou este, aos seus accionistas, aqui transformados na elite oligárquica que financia, emprega, enriquece e suporta, como funcionários bem qualificados – nas universidades e colégios mais caros que só o dinheiro pode comprar –, os directores que compõem “esta” Europa.

A Europa que muitos, enganadamente, pensam ver defendida nos campos de batalha do leste europeu, e que ontem o comediante disse defender, é a Europa que decidiu, sem qualquer discussão democrática, fazer todos os estados membros (com excepção da Áustria e Hungria) entrar em guerra com a Federação Russa. Num total desprezo pelas estruturas representativas nacionais, a cúpula da Comissão Europeia, um organismo sem base democrática, decide, em nome dos povos europeus, enviar biliões de euros de material bélico ofensivo que, directamente, nos coloca em guerra com os alvos finais de tais armas.

Não contente, é esta mesma Europa que decide que os nossos países, uma vez mais, sem qualquer discussão democrática, passem a ser usados como campos de treino para mercenários e emigrantes ucranianos, nesses territórios, colocando-nos como agentes directos do armamento, treino e envio de forças para o campo de batalha.

Esta Europa, sem ouvir o povo português, arrastou o nosso país para a guerra! Claro que, esta Europa é também a mesma Europa que no seu âmago tem governos que não a comprometem, que não a questionam, ou lhe impõem limites. Esta Europa é a Europa da desconsideração das soberanias, da independência e liberdade dos povos para decidirem do seu destino.

Acresce que, comportando-se como meros tentáculos “desta” Europa, como miúdos bem comportados numa escola militar com medo de umas reguadas do professor, os governos nacionais “desta” Europa são os mesmos que não dizem uma palavra sobre o facto de, principalmente, a partir 2014, sabermos que a Ucrânia é um país dominado por milícias paramilitares – agora transformadas em tropas regulares – de extrema-direita, e de se inspirar na doutrina, nos símbolos e na prática, na odiosa ideologia de Bandera, bem visível na profusão da simbologia nazi por todo o país.

E se silenciar isto tudo é extremamente complicado para gente – como Santos Silva que diz querer combater a extrema-direita -, esta Europa é a mesma que, enviando cada vez mais biliões de euros dos nossos impostos, nos diz, ao mesmo tempo, que temos de suportar o aumento das taxas de juro e a perda das nossas casas. Esta Europa, que o comediante diz defender no campo de batalha, convive optimamente com o crescente número de homens e mulheres sem-abrigo, que povoam as pontes e arcadas das nossas cidades mais ricas, enviando tanto mais dinheiro para a guerra, quanto mais o nega para o investimento público necessário, em habitação, saúde, segurança social ou educação.

E se, quando aprovam os inúmeros pacotes de “ajuda”, para uma guerra que visa proteger, não “a” Europa, mas “esta” Europa, não há défice que resista, quando se trata de responder aos graves problemas sociais que crescem de dia para dia, lá vem o Eurogrupo – mais uma estrutura oligárquica não eleita que manda nos ministérios das finanças –, dizer “cuidado com o défice”.

E não havendo défice que resista, também não há cativação ou contenção orçamental que não seja removida quando se trata de pagar biliões à Pfizer (cujos contratos se recusam a divulgar), construir altares megalómanos ou premiar os grandes grupos económicos com isenções e incentivos de toda a espécie, enquanto promovem a desregulação do trabalho, a precariedade e a manutenção dos salários em níveis inaceitáveis. É este o tipo de governo que vive “nesta” Europa.

Uma Europa que nos censura a comunicação social que não se limita a reproduzir os comunicados da NATO, Casa Branca ou G7, que persegue nas redes sociais e pratica a ideologia do cancelamento, contra todos os que têm a coragem de denunciar a sua corrupção moral, material e política.

Numa Europa em que, desde 2002, os salários cresceram em média 0,3%, mas os 1% mais ricos se apropriaram, no mesmo período, de mais de metade da riqueza produzida – enquanto assistimos a uma degradação, sem precedentes, das condições de vida -, ainda temos de assistir a uma escalada belicista, que pode acabar em nuclear, e que vem provocando a destruição e deslocalização da industria europeia, para engordar a elite de um país, que não se encontra neste continente, mas noutro.

Não, quem conhece a História e sabe que a Europa se reconstruiu, no pós-guerra, maioritariamente por ação da energia e matérias-primas baratas vindas da URSS e, mais tarde, da Federação Russa, processo iniciado na “guerra fria”, não pode acreditar que é a Rússia quem quer destruir o modo de vida europeu, quando tanto lucrava com ele. Quem destrói o modo de vida europeu é quem promove uma Europa, “esta” Europa, das divisões, dos blocos e das sanções.

E, quem promove “esta” Europa da pilhagem dos povos, dos seus próprios povos, é quem se diz português, espanhol ou italiano, mas tem o sonho de estudar nas melhores universidades americanas e inglesas, dando voz a um complexo neocolonial, de que, o que é estrangeiro, é que é bom. E fazem-no, sabendo que, só por ali, e mesmo só por ali, acedem à cúpula de poder “desta” Europa. Pois é “só por ali” que recebem os ensinamentos que os amestram como bem-comportados – e acríticos – moços de recados. O selo de qualidade dos “melhores” colégios, das mais “prestigiadas” universidades anglo-saxónicas e das mais bem-sucedidas corporações, equivale a uma mordaça, acompanhada de palas nos olhos. Faz… mas nunca questiones. E se questionares, nunca o faças acima… E, acima de tudo, nunca, mas nunca, questiones a narrativa! A narrativa constitui o fio condutor da acção… Apenas da acção. Porque o pensamento, “nesta” Europa, não existe! Uma vez mais, arrepiante a precisão de 1984 de Orwell!

A Europa que o comediante diz defender no campo de batalha, é uma Europa que só pode ser ali defendida, porque é “esta” Europa! Fosse outra Europa, a “nossa” Europa, e não haveria sequer necessidade de a defender. Porque os povos nunca querem guerra. E quanto mais vejo o regozijo daquela cúpula europeia com a revelação de que “estamos todos em guerra”, mais me convenço disto mesmo. Quem quer a guerra, nunca é quem nela morre!

Ora, por ser o que é, “esta” Europa não merece defesa possível. A “Europa” do comediante não é a Europa dos europeus, é a Europa dos grandes interesses.

Não admira, portanto, que apenas gente como ele, corrupta, vende-pátrias, traidora dos seus povos irmãos, traidor da sua língua (este traidor foi criado e cresceu a falar russo, perseguindo agora no seu país quem agora o fala), considere estar ali a defender tal Europa.

“Esta” Europa, é a Europa que nos oprime, é a Europa que nos mente, que nos censura e que nos desrespeita todos os dias. É a Europa que faz a guerra em vez da paz, que promove a discórdia ao invés da fraternidade, que divide para reinar!

O comediante está certo! É “esta” Europa que ele defende! Para azar do seu povo e do nosso!

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Não saiu chumbo nem tapezinha

(Daniel Oliveira, in Expresso, 27/12/2021)

Daniel Oliveira

A escolha era entre entregar o dinheiro a acionistas que não queriam investir do seu, sem ter poder executivo; deixar falir a TAP; ou salvar o hub, salvando a TAP. Só as duas últimas eram legitimas e tinham grandes custos e resultados difíceis de prever. O Governo escolheu a última. Os que vaticinaram o chumbo da restruturação pela Comissão Europeia ou uma “tapezinha” enganaram-se.


Quando a TAP foi renacionalizada – e não estou a falar da aldrabice de Pedro Marques, com a ajuda de Lacerda Machado –, o que estava em causa não era, antes de tudo, se a empresa ficava privada ou pública. Era se sobrevivia. E não estava em causa apenas ou sobretudo a subsistência da empresa, mas a existência de um hub em Portugal. Sem TAP não há hub, porque nenhuma outra empresa garante as condições para a sua existência.

A escolha era entre entregar o dinheiro a acionistas que não queriam investir do seu, sem ter qualquer poder executivo, e logo ver o que acontecia; deixar falir a TAP; ou salvar o hub, salvando a TAP. Só as duas últimas hipóteses eram legítimas e as duas teriam sempre grandes custos e resultados difíceis de prever. O Governo escolheu a última. Do meu ponto de vista, tendo em conta a centralidade que o turismo tem nas nossas exportações, fez bem.

Faltava a aprovação do plano de restruturação da empresa pela Comissão Europeia, necessário por causa dos efeitos que ele pode ter na concorrência (alfa e ómega da política económica europeia e uma das razões porque a Europa vai ficando para trás em relação a outras regiões económicas). Todos os que vaticinaram o chumbo desta solução ou uma “tapezinha” enganaram-se. O que foi conseguido na negociação com a Comissão Europeia superou as minhas melhores expectativas e está a léguas do que se passa com a Alitalia, por exemplo.

A TAP não terá de fazer mais cortes salariais e no pessoal dos que já fez. Vai poder chegar aos 99 aviões, mais seis do que tinha em 2018 e menos nove do que teve no máximo do seu crescimento, em 2019. A principal cedência é o corte de 5% dos slots da TAP no aeroporto de Lisboa (18), o que tem um efeito marginal, mas torna ainda mais urgente o difícil e antigo debate sobre o novo aeroporto.

A venda da Manutenção e Engenharia do Brasil é uma boa notícia. É um elefante branco deixado por Fernando Pinto ao qual nem a TAP recorre. Dificilmente será vendida, provavelmente será liquidada. É um favor que se faz à companhia, porque a Comissão Europeia permitiu que no pacote financeiro de apoio à TAP incluísse a cobertura das contingências geradas com a liquidação ou venda. A saída da TAP da Groundforce impede que a companhia tenha poder de decisão na única empresa de handling, que está insolvente. Mas, na realidade, desde que o governo de Passos entregou Groundforce a um artista que esse poder era meramente formal. A saída não tem grande impacto, porque a TAP nunca poderia ter a maioria, segundo as regras europeias.

Não sabemos se, no futuro, a TAP será integrada num grupo europeu, mesmo que o Estado se mantenha na empresa. Se essa integração se der, manter o hub depende da complementaridade e escala que a TAP acrescente a esse grupo. Não é, por isso, indiferente qual seja. Se assim for, veremos em que condições acontece. Sabemos que em vez de oferecer dinheiro a acionistas sem um cêntimo para investir na empresa (especialidade dos nossos governos) ou perder o único hub no país, o que teria efeitos profundos na atratividade de Portugal como destino, mesmo para outras companhias, se conseguiu salvar a TAP (por agora) e mantê-la com a dimensão mínima necessária para isso fazer sentido. Porque se a TAP se mantivesse sem dimensões para assegurar este hub o custo/beneficio desta operação seria muito duvidoso.

Seja qual for a opinião de cada um sobre este processo, o que saiu de Bruxelas foi uma vitória do Governo. Mas foi, antes de tudo, uma vitória de Pedro Nuno Santos, numa situação politicamente muito adversa: sendo o alvo preferencial dos tiros da direita, nunca teve grande apoio público do seu primeiro-ministro, num processo de resgate que o próprio António Costa desejou.


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O regresso de Schäuble

(José Gusmão, in Público, 10/06/2021)

Se a desonestidade de Schäuble é importante de notar e desmontar, pois será disciplinadamente papagueada pelos austeritários nacionais, a sua preocupação com as desigualdades só pode ser entendida como uma piada de mau gosto.


O ex-ministro das Finanças alemão Wolfgang Schäuble voltou do seu exílio político, agora como presidente do parlamento alemão, com um artigo publicado no Financial Times, em que pede o rápido retorno à austeridade orçamental, entendido como o “normal” da política económica. No entanto, se o objectivo continua a ser o mesmo – cortar nos serviços públicos, salários e direitos sociais –, os argumentos de há dez anos já não servem.

O aumento da despesa pública alemã para fazer frente à crise económica foi dos maiores do mundo, em torno de 8,5% do PIB, segundo o FMI, tendo sido bem-sucedido na estabilização da economia. A economia alemã sofreu uma queda de 4,9%, com um aumento do défice orçamental similar ao de Portugal, onde o esforço orçamental foi bem mais modesto, mas a queda do PIB muito pior (-7,5%). A Alemanha é, afinal, a prova presente da eficácia das políticas contracíclicas.

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Acresce que os países agora beneficiam de taxas de juro perto do zero impostas pelo BCE. Ora, se os argumentos da frugalidade ou da solvabilidade não fornecem fundamento para a ingerência política, então muda-se o argumento: desta vez o problema está na inflação. Aqui Schäuble dá, mais uma vez, provas de uma desfaçatez de deixar qualquer um de queixo caído. Começa por invocar o economista John Maynard Keynes para tentar subverter as propostas económicas deste, invocando o que escreveu sobre inflação no seu popular panfleto “As consequências económicas da paz”, escrito no pós-I guerra mundial.

É verdade que Keynes alertou em 1919 para as consequências destrutivas de processos inflacionários, sobretudo no pós-guerra, provocadas pelo pagamento de reparações de guerra, pagas em moeda estrangeira indexada ao ouro em países com sistemas fiscais rudimentares, resultando no famoso processo de hiperinflação alemã de 1923.

No entanto, o entendimento de Keynes da moeda e da inflação evoluíram ao longo do tempo: moeda enquanto resultado do crédito bancário, preferência pela liquidez, papel articulado da política monetária e política orçamental em busca do pleno emprego. Schäuble conhece tudo isto, claro, mas abusa de considerações feitas por Keynes em 1919, num contexto ultra-específico, para tirar conclusões monetaristas, colando Keynes àquele que foi o seu maior opositor intelectual no século XX, Milton Friedman.

Assim, defende Schäuble, a expansão monetária de 2020, não tendo como resultado um aumento do PIB na mesma proporção, só poderia resultar num aumento da inflação. Neste raciocínio são ignorados olimpicamente a experiência histórica das últimas décadas, que contraria qualquer relação linear entre massa monetária e inflação, ou o brutal aumento da criação monetária pós-crise de 2008 sem nenhum efeito na inflação.

Mas a inflação não está a crescer? Está, mas na zona euro, pouco, chegando agora ao objectivo do BCE de 2%. As razões para este aumento não têm qualquer relação com um sobreaquecimento da economia provocado pela política monetária e orçamental expansionista. Não só existe um mero efeito de base no crescimento dos preços – o ano passado foi marcado por uma queda de preços, sobretudo na energia – como é sabido que a pandemia trouxe desarticulações nas cadeias produtivas, causando aumentos abruptos de preços em certos sectores, como o transporte marítimo, e mudanças no perfil de consumo que colocam certos sectores sob pressão, enquanto outros se encontram parados.

Mas Schäuble vai mais longe na sua desonestidade, importando os termos da discussão económica norte-americana, onde o Estado expandiu no presente e para o futuro de forma inédita e incomparável com qualquer país europeu, permitindo uma rápida recuperação económica. Blanchard, um dos que se mostrou preocupado com a possibilidade de inflação nos EUA, já se veio demarcar explicitamente, dizendo que não está preocupado com inflação na Zona Euro.

Se a desonestidade de Schäuble é importante de notar e desmontar, pois será disciplinadamente papagueada pelos austeritários nacionais, a sua preocupação com as desigualdades só pode ser entendida como uma piada de mau gosto. Schäuble, que foi um dos obreiros de uma das maiores transferências de rendimento do trabalho para o capital nas últimas décadas, condenando milhões ao desemprego e à miséria, diz-nos agora que ao aumentarem a dívida pública, os Estados estão a favorecer os mais ricos que compram os títulos de dívida. Esquecido é já o argumento, avançado parágrafos antes, do aumento da massa monetária devido ao financiamento dos Bancos Centrais que agora são, de longe, os principais compradores últimos de dívida, a taxas baixíssimas, nulas ou negativas.

Schäuble ignora o papel da política orçamental, agora financiada por dívida, na necessária redistribuição de rendimento, dos lay-offs em Portugal às transferências de emergência praticadas por inúmeros países, incluindo o seu, para omitir a verdadeira causa desse fenómeno de agravamento da desigualdade: sem uma política de crédito dirigida à produção e ao emprego, a expansão monetária alimentou a especulação privada nos mercados bolsistas, inflacionando preços de acções e criando bilionários virtuais a um ritmo nunca visto.

Finalmente, Schäuble é claro nos seus objectivos. A questão é menos uma tentativa de enquadramento ideológico que retome a austeridade orçamental como “normal”, mas sobretudo a ingerência sobre os países do Sul da Zona Euro. Schäuble lamenta que orçamentos equilibrados em países com elevados níveis de endividamento sejam quase impossíveis sem pressão externa.

Referindo-se explicitamente a Itália, a maior economia da periferia, Schäuble defende novos mecanismos de controlo político dentro da UE, seja através de um fundo para o pagamento de dívida onde os Estados coloquem “boas garantias” (empresas públicas? Património natural? A torre de Belém?), seja através do reforço dos poderes da Comissão Europeia, que se está a mostrar cada vez mais afoita nas pressões sobre governos democráticos. Se a intenção é colocar a segunda e terceira economias da Zona Euro nas mãos da extrema-direita, a ideia é perfeita. Já em Portugal isso não é necessário. Por cá, a política normal de Schäuble está plenamente interiorizada e é cegamente praticada, sendo desnecessária a maçada de dar ordens.

A razão para esta ingerência e nova ameaça à soberania nacional é simples: a gestão monetária do Euro só pode servir os interesses da economia alemã. Os restantes países devem obedecer aos ditames de Frankfurt como no início do século obedeciam ao padrão-ouro: um constrangimento externo, limitador da acção do Estado, em nome da estabilidade da esfera financeira. Padrão-ouro que, como sabemos, teve quem como um dos seus grandes detractores? John Maynard Keynes.

Economista e eurodeputado do Bloco de Esquerda


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