(Rui Pereira, in Facebook, 11/05/2023)

Não é a minha história pessoal que aqui interessa. Mas, quando há mais de vinte anos abandonei o jornalismo por motivos de censura no jornal onde então trabalhava, o semanário Expresso e, mais tarde, pela estação de televisão SIC, para me dedicar ao ensino e à Universidade, tive oportunidade de chamar à atenção centenas de estudantes para o silêncio dos nossos pensamentos e, por enquanto, a sala de aula como derradeiro espaço de liberdade nas nossas sociedades que se reclamam de livres e democráticas.
Ao dizê-lo, não ignorava o comentário retrospetivo de George Steiner para quem a universidade, ao longo da sua história, se desenvolvera quase sempre à margem do humano e da humanidade. Esmagada pela lógica do mercado, pela competição desigual com poderosas fábricas anglófonas de produção de um duvidoso tecno-saber que exclui declarada e ostensivamente as humanidades, a Universidade tem de lutar arduamente para se subtrair, no seu presente, à penetrante e dramática análise de Steiner sobre o seu passado.
A notícia do despedimento pela Universidade de Coimbra de um professor de Cultura e Língua russas, a partir das “denúncias” de dois “estudantes e ativistas” ucranianos (como são apresentados nas notícias) e da sua amplificação por pseudo-delatores sentados nas bancas dos telejornais, faz ressurgir todos os fantasmas da velha escolástica, do historial das Inquisições, das manipulações estalinistas da ciência, do McCarthysmo nos Estados Unidos do pós-guerra ou dos grandes cérebros da nossa Academia, presos, exilados ou simplesmente impedidos de lecionar e sobreviver pela ditadura de Salazar.
As alegações dos ativistas ucranianos pela ligação do professor à Fundação “Mundo Russo” são mais do que dúbias (ver aqui). imagine-se o que se dirá dos Estados Unidos na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, por exemplo, que símbolos aí serão exibidos e que matérias serão aí estudadas e desenvolvidas em cooperação com o jornalismo e as universidades portuguesas. Aquelas acusações configuram, portanto, úteis ações de combate, por parte de pessoas empenhadas na guerra do seu país, e que nela participam de acordo com os recursos que têm. O tão natural quanto violento regozijo dos comentários de outros ativistas ucranianos nas redes sociais a este propósito não deixam dúvidas.
O lado mais sombrio de tudo isto é, porém, a ação da Universidade de Coimbra e o comunicado emitido pela sua reitoria: “a UC – relata a CNN – emitiu um comunicado no qual se assume como “uma instituição profundamente comprometida com os valores europeus e totalmente solidária com a Ucrânia no contexto da agressão russa”. Subsequentemente, disse o reitor à comunicação social, a “gravidade da situação obriga-me a fazê-lo [despedimento]. (…) Assim que tomei conta do que se estava a passar dei indicações para a rescisão do contrato e, portanto, o contrato nesta hora deve estar rescindido”, anunciou o reitor, citado pela Renascença” (Ver aqui).
Mas, contrariamente a este voluntarioso depoimento, será essa a vocação da Universidade? Novamente George Steiner: “O que é uma verdadeira Universidade? Ora, são bibliotecas; um cuidado e engajamento com um passado vivo. Uma busca por desenvolver o conhecimento e clarificar criticamente os processos de escolha.
Uma verdadeira Universidade não serve a propósitos políticos ou programas sociais, necessariamente partidários ou transitórios. Acima de tudo, ela rejeita a censura e o politicamente correto de qualquer tipo.
O que nós conquistamos com o politicamente correto? As mentiras que estamos ensinando ou sendo obrigados a aceitar, as perguntas que não nos permitem levantar. Nem perguntar. O politicamente correto torna impossíveis grandes campos de estudos comparados. Uma Universidade deve abrigar e honrar a provocação anárquica e a paixão pelo inútil”.
Fica a ligação aqui para o resto do texto do grande humanista, académico e professor, à consideração de quem (em Coimbra ou onde quer que seja) se interesse por uma Universidade e um mundo de pensamento e de saber, de liberdade efetiva, isto é, um mundo em que a única limitação à liberdade seja a resultante da responsabilidade.