A guerra na Ucrânia e o fim do estado social europeu

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 04/07/2023)

Quem se submete aceita a lei do senhor. Os atuais dirigentes da União Europeia optaram por se integrarem na estratégia dos EUA e submeterem-se à sua ordem. Essa submissão não é apenas de ordem militar, é antes de tudo de ordem civilizacional.

A substituição do modelo social europeu do Estado de Bem-Estar teve inicio com Tatcher e os ingleses estiveram sempre na condução desse processo até ao Brexit e agora como os agentes dos EUA na condução das posições europeias quanto à guerra que aqueles travam com a Rússia na Ucrânia.

A destruição do estado social e sua substituição pelo individualismo neoliberal está em curso em toda a Europa com o ataque aos grandes sistemas públicos. Os primeiros alvos têm sido os serviços nacionais de saúde de cada Estado, seguir-se-ão os sistemas de previdência e segurança social e a escola pública.

Os ingleses sempre à frente. A Inglaterra assumiu a missão de fazer da Europa um Estado complementar e vassalo dos Estados Unidos. Isso significa não só a integração da Europa no sistema militar dos EUA, através da NATO, mas a importação do modelo económico e social do neoliberalismo reinante nos EUA.

A política iniciada no reinado de Tatcher culminou no êxito evidente da posição europeia na guerra, que levou ao corte de relações da U E com a Rússia, à elevação da China a inimigo e à integração da U E na estratégia do mundo unipolar dos EUA.

Este êxito da submissão da U E a estado vassalo dos EUA implica a adoção do seu modelo social, dos seus valores, do seu modo de o Estado se relacionar com os cidadãos.

Não é por acaso que o SNS português está sob ataque, como é visível na comunicação social, nem é um caso único, a degradação dos sistemas de saúde é generalizada, incluindo nos países nórdicos, assim como não é um acaso a degradação das pensões e outras prestações sociais, nem as “lutas” de professores em toda a Europa. Tudo sempre com a justificação dos direitos e da defesa dos bens públicos, um argumento que constitui um terreno movediço onde se conjugam boas causas com estratégias de destruição.

Os ingleses vão, como sempre, à frente.

Este é o excerto de uma entrevista do presidente da Associação dos Médicos Britânicos ao The Guardian.(Em Portugal a Ordem dos Médicos é parte do processo de destruição).

“A maioria dos médicos acredita que os ministros deste governo estão a destruir o NHS”, disse o o líder dos médicos britânicos (Associação dos Médicos Britânicos) o professor Philip Banfield. Também alertou que o serviço de saúde, que na quarta-feira completará 75 anos de sua criação, é tão frágil que pode não sobreviver até os 80 anos.”

Banfield disse que o NHS (SNS) está num estado de “declínio administrado” porque os governos recentes tomaram “uma decisão política consciente” de negar recursos adequados ou enfrentar a escassez de pessoal.” Acrescentou: “Foi uma decisão política consciente subfinanciar e subestimar o NHS como um bem nacional e a sua equipe — não apenas médicos, mas [funcionários] em geral. O resultado disso é que o NHS não sobrevive mais 75 anos. Eu ficaria muito surpreendido se o NHS na sua forma atual sobrevivesse nos próximos cinco ou 10 anos, ao ritmo a que está diminuindo.”

A União Europeia, de onde os ingleses saíram, decidiu o futuro do seu modelo social na Ucrânia, seguindo os ingleses. Está decidido.

Parece que haverá brevemente eleições europeias. Para decidir o quê?

Most doctors think ministers want to destroy NHS, BMA boss says

Philip Banfield says health service is in state of ‘managed decline’ and may not survive next ‘five or 10 years’


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O t(r)emido legado da Marta 

(Tiago Franco, in Pagina Um, 30/08/2022)

A demissão de Marta Temido tem vários ângulos de discussão e substitui, na prioridade da informação nacional, os directos das filas para compra de bilhetes para os Coldplay. Só por aí já ficámos a ganhar, e voltámos assim às discussões que interessam.


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Não há fábrica para fazer especialistas

(Isabel do Carmo, in Público, 03/08/2022)

Na minha especialidade, este ano, na região de Lisboa, fizeram exame e obtiveram o grau de especialistas cinco médicas. Só duas ficaram em hospitais públicos.


Finalmente, o decreto-lei do Conselho de Ministros, publicado a 15 de Julho, fala na verdadeira razão para a crise actual das urgências, entre elas as de obstetrícia – a demografia médica. Aquilo que foi relevado na comunicação social foi o quantitativo dos pagamentos das horas extras, como se a solução estivesse aí. Pouco se falou das conversações dos sindicatos com o ministério, sobre remunerações e carreiras. Com algumas honrosas excepções, esta é a inevitável leveza da informação.

Quando um especialista tenta explicar as razões que vêm do passado, em meio televisivo, é sempre interrompido em nome da contingência. Ou seja, no passado foram cometidos erros com repercussões importantes no futuro, que nunca serão criticados e muito menos julgados. Até 1999 houve aquilo a que os especialistas chamam “malthusianismo” na entrada para as Faculdades de Medicina e acabavam as licenciaturas cerca de três centenas a nível nacional. Em 2011, o Governo de José Sócrates conseguiu ainda por decreto-lei, e bem, que fossem assinados os últimos contratos de dedicação exclusiva de especialistas. Os mais novos têm agora 43 anos. Mais jovens do que esses, se ficaram no público e quiserem habitar em Lisboa (convém, por causa das urgências nocturnas), passaram à condição do quarto alugado ou da residência colectiva.

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Foi também nesse Governo (ministro Correia de Campos) que se fundaram as Unidades de Saúde Familiar (USF’s), cujo pessoal é remunerado em função da produção quantitativa e qualitativa. No programa do actual Governo são prometidas mais. Esperemos que sim. Estas coisas, umas más, outras boas, têm datas e têm responsáveis. Para os hospitais privados não houve crise financeira, pois de 2007 a 2017 abriram mais 15 hospitais-empresa de saúde, para os quais saíram, durante o período de “ajuste financeiro”, mais de 300 milhões de euros do orçamento da Saúde. Trata-se de hospitais (camas), não inclui serviços clínicos externos.

A produção de especialistas tem que ser demorada

Voltemos à formação de especialistas. A licenciatura em Medicina é de seis anos lectivos. No período que se seguiu ao estrangulamento, seguiam-se dois anos de Internato Geral, após o qual havia o exame de entrada para a especialidade, conhecido por ter base no livro Harrison. A classificação seriava para opção. Iniciada a especialidade, esta leva seis anos, após os quais há o exame da especialidade, muito rigoroso.

Entre estes períodos há sempre intervalos administrativos, para classificações e colocações. Ou seja, começámos a ter especialistas, ainda provenientes do estrangulamento, portanto poucos, em 2015/2016. Começaram a aumentar lentamente. Em ginecologia/obstetrícia, atingiram-se os mínimos com idades entre 46 e 55 anos em 2021. Aumentaram um pouco os de 36 a 45 anos. Nesse ano, os “antigos”, com mais de 65 anos, eram sete vezes mais que os primeiros e cerca de quatro vezes mais que os segundos. Nos hospitais, a especialidade está dividida em ginecologia, por um lado, e obstetrícia, por outro. De modo que estes números são mais graves. E, como não há uma fábrica de fazer especialistas, é esta a realidade. E será nos próximos anos.

Quando oiço falar que a causa é a “gestão”, comparo-a com o comentário das senhoras chiques que, quando sabem da insegurança alimentar dos trabalhadores pobres, dizem que é uma questão de “boa gestão do que têm”.

Claro que os pobres podem plantar couves no quintal, mas especialistas de viveiro não há. Pelo contrário. Há a caça ao especialista pelos hospitais-empresa, que podem pagar mais ou menos o dobro. Certas especialidades são mais cobiçadas: ginecologia/obstetrícia, anestesia, pediatria. Mas as outras também o são.

Na minha especialidade (endocrinologia, diabetes e nutrição), este ano, na região de Lisboa, fizeram exame e obtiveram o grau de especialistas cinco médicas. Só duas ficaram em hospitais públicos, as outras três foram captadas pelos privados. Anteriormente, outras tinham sido. Claro que a diabetes deve ser tratada sobretudo nos cuidados primários. Mas há determinadas áreas, como a perfusão contínua de insulina, que, excepto a Associação Protectora de Diabéticos de Portugal (APDP), dizem respeito a endocrinologistas hospitalares, tal como a estes diz respeito a preparação para a cirurgia bariátrica da obesidade, que tem anos de espera. A transexualidade só pode ser seguida em endocrinologia hospitalar. O serviço do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa não recebeu nenhum especialista este ano.

Dou estes quatro exemplos, mais conhecidos, para ilustrar, julgo que de maneira gritante, o escoamento dos especialistas. Esperemos que, das conversações com os sindicatos, saia luz verde. Ou pelo menos amarela…

Médica; professora da Faculdade de Medicina de Lisboa; activista política


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