Desculpem-me insistir

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 01/12/2023)


Talvez pudéssemos mesmo encenar uma peça de teatro sobre esta história, chamada “Os Salvados do 7 de Novembro”, tendo como protagonistas principais Marcelo Rebelo de Sousa, Pedro Nuno Santos, Luís Montenegro e André Ventura.


Desculpem-me insistir nisto, mas isto é o essencial: é o Estado de direito, o fundamento da democracia. Começa nas fronteiras de um país, onde a forma como as autoridades nos tratam dizem logo ao que vamos. E continua depois na forma como a Justiça do país nos trata a todos, nacionais ou não nacionais. À polícia e às Forças Armadas concedemos o direito de andarem armados para defenderem a nossa segurança, a nossa soberania e a nossa Constituição. À Justiça e aos seus magistrados concedemos o poder de decidirem sobre os nossos deveres e a nossa liberdade para resolverem os nossos conflitos e garantirem os nossos direitos. No dia em que cada uma destas entidades, como cada um dos poderes institucionais, não for controlada por outro ou por ninguém — no dia em que um só dos poderes estiver fora de controlo —, não tenham dúvidas de que o Estado de direito e a democracia estão ameaçados. Entre nós só há um poder que, na lei e na prática, ninguém controla a não ser ele mesmo: o Ministério Público (MP).

Há democracias onde o MP é controlado directamente pelo Governo, através do ministro da Justiça, com o fundamento teórico de que, não sendo assim, não pode haver uma política de justiça assumida pelo Governo. Há países onde o MP é controlado pelos eleitores, que elegem regularmente os procuradores em função do seu histórico no desempenho da função. E há países onde o MP é controlado hierarquicamente dentro da estrutura, no topo da qual está alguém que responde ou perante o Governo ou perante o Parlamento. Mas nós somos um caso original e de “sucesso”: os nossos procuradores, além de serem independentes e irresponsáveis pelas suas decisões ou não decisões, são ainda inamovíveis e hierarquicamente autónomos, podendo apenas e em casos extremos ser disciplinarmente responsabilizados perante um Conselho Superior onde, ao contrário do que sucede com os juízes, os seus pares estão em maioria. Nenhum outro órgão de soberania, nenhuma outra actividade de serviço público, nenhuma outra profissão goza entre nós de semelhante estatuto de impunidade funcional. Os políticos têm medo de a contestar, os ignorantes acham que pô-la em causa equivale a defender a corrupção e os “poderosos”, os jornalistas apressados não querem perder as suas notícias e os populistas alimentam-se disto como de pão para a boca. Mas aqueles que sabem do que falo têm razões para não dormirem descansados: “Primeiro, vieram buscar o meu vizinho…”

O caso Casa Pia deveria ter sido um toque a rebate sobre o funcionamento do MP. Quando ficámos a saber que na investigação do processo andavam a mostrar aos miúdos traumatizados um catálogo com 30 fotografias de figuras públicas, do cardeal-patriarca a Mário Soares, escolhidas ao gosto aleatório ou não de um qualquer procurador (e onde, obviamente, não constava o retrato de nenhum magistrado), para ver se eles, confundindo figuras conhecidas dos ecrãs com figuras dos seus abusos, identificavam “suspeitos”, e nada aconteceu a estes “investigadores” e aos seus superiores, a partir daí ficou aberta a porta à intimidação processual. Que se seguiu, por diversas vezes e sempre impunemente, arrasando reputações, carreiras e vidas pessoais, afastando do serviço público gente de valor para o país, compreensivelmente aterrorizada pela madrasta justiceira do DCIAP de Lisboa. Até chegarmos ao 7 de Novembro e à escolha política que nos resta depois do raide da PGR e do MP: os salvados do incêndio, a mediocridade partidária e populista. E querem que não falemos disso, que nos conformemos, que “deixemos a Justiça seguir o seu curso”? Mas qual curso? Qual Justiça?

Entendamo-nos: não convém confundir a percepção popular da corrupção existente (que é o que aparece nos índices oficiais como o nível de corrupção de cada país) com a verdadeira corrupção existente. E também não convém confundir o crime de corrupção com todo o tipo de crime económico, fazendo do direito penal uma extensão do “direito de café”. Dito o que é evidente que temos problemas criminais deste tipo, não sei se mais ou menos abundantes do que outros, mas a todos os níveis da sociedade onde existem seres humanos permeáveis ao desejo de enriquecer rapidamente e de qualquer forma, de saltarem por cima das leis e de obterem tratamentos de favor: militares que roubam nas cantinas ou na compra de armas, médicos que aldrabam receitas, autarcas que adjudicam empreitadas à margem da lei, laboratórios contratados pelo Estado que simulam análises, consulados que vendem documentos a traficantes de droga, etc. Não há pano de linho nem peça de seda que não possa ser manchada com as mais abjectas nódoas. E todos os dias, felizmente, o MP persegue, investiga e leva a julgamento os que consegue. Mas esta criminalidade inorgânica e abstracta, que anda algures por aí, sem rostos apetecíveis para os cafés e tablóides, não seduz nem sacia o desejo de justiça popular da sociedade — que, não raras vezes até, desculpabiliza-a, vendo nela uma tentativa falhada de os “pobres” ascenderem ao mundo dos “ricos”. Eles querem verdadeiro sangue, o sangue dos “poderosos”, que são sobretudo “os políticos” — os do Governo da nação, bem entendido, porque os outros, os dos governos locais, muitas vezes são seus familiares, amigos, conhecidos, próximos, da terra. E o problema está quando este desejo de justiça popular encontra na organização do MP um departamento central de investigação, o DCIAP, que, sob a capa de chamar a si os casos mais complicados, acabou por assumir com o tempo a vocação de investigar “poderosos” e gente “mediática”, desde logo dando a ideia de que há casos e casos e, afinal, nem todos devem ser tratados por igual.

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Peguemos no caso MP vs. António Costa, que finalmente mereceu uma curta explicação da procuradora-geral da República, Lucília Gago. Na esteira dos argumentos que lhe foram sugeridos pelo sindicato dos magistrados do Ministério Público, “esclareceu” ela que “havendo notícia de um crime”, o MP é “obrigado por lei a abrir um inquérito” e, depois, por um “dever de transparência”, a dar-lhe publicidade. Nenhuma das razões colhe. Primeiro, não havia notícia de qualquer crime contra António Costa. O facto de em duas ou três escutas telefónicas os intervenientes dizerem que queriam falar com o primeiro-ministro ou que iriam falar com ele não indicia: a) que o tenham feito; b) que o primeiro-ministro os tenha ouvido e concordado com a sua pretensão; e c) que esta fosse ilegítima ou criminosa. Pelo que não havia razão alguma para a abertura de um inquérito à actuação do primeiro-ministro; quanto muito, o MP prosseguiria a investigação em relação aos restantes suspeitos e se, no decurso desta, surgissem indícios sérios contra o primeiro-ministro, então, sim, abriria o tal inquérito. Mas mesmo que tenha entendido o contrário, nada, nenhum “dever de transparência”, obrigava o MP a tornar isso público: todos os dias o MP recebe dezenas de participações criminais e abre inquéritos contra denunciados ou suspeitos sem que, até por razões de eficácia, vá participar ao denunciado, particular ou publicamente, que está a investigá-lo. É óbvio e indesmentível que quando Lucília Gago escreve o tal “parágrafo assassino” sabia ao que ia. E, se não sabia, é porque não entende português — o que é muito grave nas funções que desempenha.

Durante toda a semana assisti a um impressionante blitz de defensores da PGR e da actuação do MP, insistindo, nomeadamente, que António Costa não se demitiu por causa do tal parágrafo, mas de tudo o resto: as suspeitas sobre o seu chefe de gabinete, o “melhor amigo”, dois ministros, os €75 mil no gabinete de Vítor Escária. Concedo que muito provavelmente ele demitir-se-ia depois de saber tudo isso. O problema é que demitiu-se não depois mas antes de saber tudo isso: o comunicado da PGR é ao meio-dia, Costa demite-se às 13h, o gabinete de Escária só é buscado da parte da tarde e os fundamentos das suspeitas do MP sobre os implicados só são conhecidos ao final do dia, já as agências de notícias internacionais titulavam: “PM de Portugal demite-se sob suspeitas de corrupção”. O resto da história conhecemo-lo. Talvez pudéssemos mesmo encenar uma peça de teatro sobre ela, chamada “Os Salvados do 7 de Novembro”, tendo como protagonistas principais Marcelo Rebelo de Sousa, Pedro Nuno Santos, Luís Montenegro e André Ventura.

Há dias, numa entrevista televisiva, a ex-directora do DCIAP, Cândida Almeida, queixava-se das “pressões” que se fazem sobre o MP, entendendo como pressões, e abusivas, as críticas feitas à sua actuação, neste ou noutros casos. E falava, condoída, da “amargura” que tais pressões traziam à “vida pessoal, familiar e profissional” dos procuradores do MP. Fiquei a pensar se ela seria capaz de imaginar a amargura do outro lado. Por exemplo, do lado do presidente da Câmara de Sines, acordado em casa às 7h da manhã, junto da família, com a casa vasculhada como um vulgar criminoso e logo, presumo, como é da praxe, espoliado do computador e telemóvel pessoal, depois transportado ao seu gabinete de trabalho na Câmara, onde as buscas prosseguiram à vista dos funcionários que chefia e dos munícipes que o elegeram, e daí transportado para os calabouços da PSP em Lisboa, onde — ao abrigo de uma interpretação, essa sim abusiva, da norma processual — permaneceu seis dias e seis noites em silêncio e isolamento, enquanto cá fora o seu estatuto público passou a ser o de um corrupto, até finalmente ser ouvido por um juiz que o mandou libertar, sem qualquer medida de coação, pois que nada, absolutamente nada, viu nos autos que justificasse tudo aquilo por que ele passara. Consegue imaginar, senhora procuradora? É disso que deveríamos falar.

2 Ao longo dos anos assisti a muitas cambalhotas políticas, que levei à conta da inerência da própria actividade. Mas algumas espantam mais do que outras e às vezes quase que doem, como é o caso do apoio à candidatura de Pedro Nuno Santos por parte de Álvaro Beleza e Francisco Assis, dois socialistas cuja lucidez e sensatez em nada se podem rever nas apregoadas qualidades do seu apoiado candidato. Sentindo-se justamente interpelado na sua coerência, Francisco Assis tem-se desdobrado em explicações, mas debalde: cada uma é mais incompreensível e contraditória do que a outra. E para quem também recusa aceitar a tese de um simples trade-off negociado à mesa de um restaurante, resta a única explicação lógica: que a vida partidária está cheia de intimidades não frequentáveis.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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Sem olhos em Gaza

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 24/11/2023)

O título acima é roubado a um livro de Aldous Huxley (“Eyeless in Gaza”), que, por sua vez, o roubou de um poema de Milton. Li-o há tanto tempo que só me lembro de que a história anda à volta de um aristocrata inglês que, depois de vaguear pela vida, entre a inutilidade e o diletantismo, se converte ao pacifismo — uma simples palavra hoje banida entre a gente civilizada que se ocupa de Gaza ou da Ucrânia. Huxley escreveu-o em 1936, antes de os nazis terem dizimado seis milhões de judeus no Holocausto e antes de os judeus terem submetido os palestinianos à Nakba, expulsando 800 mil da terra onde vi­viam há 15 séculos para aí criarem Israel.

De então para cá, desde 1948, viveram-se ali três quartos de século de guerras, de guerrilhas, de permanente instabilidade e de ódios mútuos insanáveis. As vítimas disso têm sido, em primeiro lugar e em dimensão muito diferente, palestinianos e judeus de Israel, mas todos, de certa maneira — na Europa, no Ocidente, no mundo árabe, em África —, têm sofrido os danos colaterais deste eterno conflito, que envolve apenas 10 milhões de pessoas, mas irredutíveis e cegas — sem olhos. É tempo de dizer basta. É tempo de o Ocidente, sobre quem pesa a tremenda responsabilidade política e moral do Holocausto e da Nakba, impor uma solução de paz e de futuro que seja justa e que seja viá­vel. Ou o faz ou aceita definitivamente a falência de qualquer possibilidade de solução por via pacífica dos conflitos e a própria ideia nascida da Sociedade das Nações para tal. “Nunca mais” também nos diz respeito.

Comecemos então por tentar ver claro e falar claro neste ambiente de conceitos estilhaçados. O anti-semitismo, que persiste e persistirá como uma doença igual ao racismo e outras, não é, ao contrário do que alguns querem fazer crer, o mesmo que anti-sionismo, sobretudo na sua versão histórica, dos fundadores de Israel. E o anti-sionismo também não é o mesmo que a oposição à política de sistemática ocupação de terras e casas palestinianas por colonos israe­litas, incentivados por um Governo de fanáticos religiosos e protegidos por um exército mais ocupado em defender a ilegalidade das ocupações do que em defender o país — como se viu em 7 de Outubro. Se o porta-voz do Hamas diz que o objectivo é correr com todos os judeus da Palestina, também um ministro de Netanyahu concebeu um plano com a “solução final” de expulsar os palestinianos de Gaza para o deserto do Sinai, e o Egipto que se ocupe deles. E outro, ainda mais radical, apresentou como solução perfeita despejar uma bomba nuclear táctica em Gaza — sendo suspenso por Netanyahu, numa original punição disciplinar transitória.

Denunciar a política criminosa do actual Governo de Israel e da maior parte dos seus antecessores para com os palestinianos não é justificar o terrorismo do Hamas ou outros, é simplesmente um acto de honestidade intelectual. Enquanto isto não for aceite por todos, não é possível avançar em direcção alguma.

Achar que Israel pode desrespeitar dezenas de resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas e continuar a ser tratado como um dos “nossos” equivale a renunciar à denúncia e ostracização dos países que deliberadamente vivem à margem da lei.

A seguir ao 7 de Outubro todos os dirigentes ocidentais correram a Telavive para manifestarem a sua solidariedade sem limites a Israel e ao seu Governo — na verdade, para lhe darem carta-branca para o “direito de legítima defesa” sem limites que todos sabiam que se iria seguir. Em nome da Europa e usurpando poderes de representação externa que não lhe cabem, Ursula von der Leyen incitou abertamente Israel à vingança e Macron chegou a oferecer forças militares para o ataque a Gaza. Paradoxalmente, foram os americanos os mais comedidos: Biden avisou os israe­litas para não cometerem os mesmos erros que eles haviam cometido após o 11 de Setembro e desde cedo o secretário de Estado Antony Blinken multiplicou os esforços para que Is­rael não resvalasse para um excesso de legítima defesa que viraria as opiniões públicas contra si. Tudo em vão: o que hoje temos no terreno, e à vista de quem não feche os olhos, é um Estado terrorista a combater uma organização terrorista à custa de uma população civil e da destruição à bomba de prédios, hospitais, escolas, mesquitas e campos de refugiados. Chega a ser pornográfico ver a imprensa ocidental, com a CNN americana à cabeça, ainda e sempre ocupada em mostrar reportagens junto dos colonos israelitas da Cisjordânia, atacados pelo Hamas em 7 de Outubro. Não que esse acto extremo de barbárie possa ou deva ser esquecido, mas porque dele já tudo foi dito, visto e contado, uma e muitas vezes. Mas nada é contado sobre os 200 palestinianos, civis e agricultores, que desde 7 de Outubro foram mortos nessa mesma Cisjordânia às mãos de colonos ou das forças de defesa de Israel. E enquanto os jornalistas-vedetas da televisão americana fazem entrevistas pungentes com familiares dos mortos ou reféns israelitas, ali ao lado, em Gaza, os seus pares palestinia­nos morrem ou vêem as suas famílias mortas pelos bombardeamentos cegos da aviação israelita enquanto trabalham para mostrar ao mundo o outro lado da verdade. Morrem eles, morrem, até agora, mais de 100 trabalhadores da ONU, atacados em campos de refugiados ou escolas devidamente identificados como instalações da ONU, mas que para Is­rael são quartéis-generais do Hamas. Como os prédios, os bairros inteiros reduzidos a cinzas, como há muito não se via em guerra alguma, os hospitais transformados em campos de batalha de soldados contra médicos e crianças em incubadoras, como jamais se viu em guerra alguma. Cinco semanas de prazer sanguinário à solta, toda a mais sofisticada e cara parafernália de morte ao serviço da vingança de Israel, com um saldo de 14 mil mortos civis, cinco mil crianças assassinadas e uma fúria de morte tão insaciável que, mesmo para receber 50 dos seus reféns em troca de quatro ou cinco dias de pausa no massacre, quase metade do Governo israelita votou contra.

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Como pode a Europa assistir a tudo isto sem uma condenação conjunta e violenta de Israel em nome dos princípios que advoga e apregoa algures e noutras circunstâncias? Quando, por exemplo, perante a morte de quatro palestinianos/portugueses, apanhados por um bombardeamento israelita na “zona de segurança” do Sul de Gaza, para onde o Governo de Israel mandou os palestinianos fugirem, o nosso MNE diz que telefonou ao seu homólogo israe­lita e manifestou-lhe o seu “desgosto”, de que quantos mais desgostos destes precisarão os dirigentes europeus até que a vergonha, pelo menos, os reduza ao silêncio cúmplice? Aquilo que, no final, deixarão para a história.

2 Segundo o editorial do Expresso, eu, no meu “tom assertivo e tantas vezes polémico”, teria defendido “o fim da independência funcional do Ministério Público (MP)”. Assertivo e polémico, vá que não vá, durmo bem com isso. Mas, quanto ao resto, é preciso rigor nas palavras: como resulta claríssimo do meu último texto, eu não defendi “o fim da independência funcional do MP”, mas sim o fim da sua autonomia funcional. O que faz toda a diferença e, não por acaso, tive ocasião de ler e ouvir esta semana vários entendidos criarem deliberadamente a confusão entre os dois conceitos, com o fim óbvio de concluírem que quem critica a total autonomia funcional do MP — a faculdade de qualquer procurador agir livremente sem dar satisfações internas a ninguém — está, no fundo, a defender a intromissão do poder político na investigação criminal. A conclusão é absurda e intelectualmente desonesta, mas é para isso mesmo que se cria a confusão. Para ajudar a ver claro dou um exemplo extraído da Operação Influencer. Como é sabido, os procuradores levaram ao juiz de instrução uma súmula (“indiciação”) das suspeitas contra os arguidos, na qual fundamentavam até pedidos de prisão preventiva — todos recusados pelo juiz. E entre os factos que melhor alicerçavam os indícios de crimes estavam três, todos relevantes, mas falsos e resultantes de erros imperdoáveis: num, um dos arguidos dizia que ia falar com António Costa e Silva, mas o MP chamava-lhe António Costa, primeiro-ministro; no outro, era marcada uma reunião entre o chefe de gabinete do PM e um dos arguidos, não para o Palácio de S. Bento, local de trabalho do primeiro, mas para a sede do PS, e no outro uma portaria supostamente feita à medida por uma empresa privada e para satisfazer os seus interesses e adoptada pelo Governo afinal estava errada e não tinha nada a ver com o assunto. Não estivesse a defesa dos arguidos atenta e dado com os erros, e era assim que o processo teria sido apresentado ao juiz. Um processo tão importante que acabou por determinar a queda do Governo e a convocação de eleições antecipadas. Ora, tivesse isto acontecido numa empresa privada, num dossiê trabalhado durante quatro anos, e os autores dos erros poderiam começar a procurar trabalho noutro lado. Mas aqui não: em obediência ao sacrossanto princípio da sua autonomia funcional, eles limitam-se a recorrer da decisão e a verem reforçados os meios de investigação ao seu alcance, prosseguindo as suas carreiras como se nada fosse. O seu directo superior hierárquico não muge nem tuge e a PGR, dita responsável máxima do serviço, acha que não deve nem teme: não deve explicações nem teme consequências. Mas eu é que sou “assertivo”…

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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Ministério Público: como chegámos aqui?

(Maria José Fernandes, Procuradora Geral Adjunta, in Público, 20/11/2023)

(Afinal ainda há gente com bom senso na corporação que é o Ministério Público. E não digam agora que a senhora não sabe do que fala. Sabe, e depreende-se que não pôde dizer tudo o que gostaria. 20 valores para esta senhora Procuradora. E, não precisando de valores, à Estátua só lhe competia publicá-la, e não falhámos.

Estátua de Sal, 20/11/2023)


Por estes dias, tenho sido abordada para me pronunciar em televisões sobre as adjacências processuais, jurídicas e políticas do caso que vem preenchendo os espaços da comunicação social e que deixou os cidadãos perplexos. Não aceito, pois não posso falar com total liberdade. Já os sindicalistas desfrutam desse privilégio e temos-lhes escutado afirmações controversas, cínicas no dizer de alguém.

Como foi possível acontecer tudo aquilo a que assistimos há duas semanas? Como se chegou até à tomada de decisões que provocaram uma monumental crise política e cujas consequências vão ainda no adro?

Uma coisa é certa: ver um certo político populista de extrema-direita monopolizar a defesa da atuação do MP, dá muito que pensar! Outros haverá que resguardaram o regozijo da crise por entre dentes e aguardam a sua oportunidade num silêncio de marketing.

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O meu colega António Cluny escreveu um interessante artigo de opinião, onde destaca a atuação individual de cada procurador no despacho de inquéritos criminais, pelo que considera errado que o jornalismo se refira coletivamente ao MP como “autor” das decisões agora controvertidas. Conclui que a sua experiência na Eurojust lhe permitiu confirmar a necessidade de uma coordenação forte e ágil, por procuradores com legitimidade e experiência, sem o que não haverá sucesso na luta contra a criminalidade atual.

Originalmente, o MP foi concebido como um corpo hierarquizado piramidal, para representar o Estado nos tribunais, tendo no topo o procurador-geral da República, que dirigia, coordenava, determinava e dava instruções, plasmadas em diretivas. De permeio, entre o procurador-geral da República e os procuradores da base, a organização hierárquica é regionalista, coincidindo com os quatro tribunais da Relação. Desde há décadas, paulatina e persistentemente, o sindicato (SMMP) lançou e insistiu numa reivindicação de maior autonomia individual dos procuradores nas decisões que tomassem, em todas as áreas de intervenção, mas e sobretudo na investigação criminal. O que se pretendia era que cada procurador conduzisse os processos-crime sem interferências, ao seu grado, exigência que tem subjacente e camuflada uma desconfiança relativamente às hierarquias intermédias e superiores, a meu ver injusta e infundada. Porque há-de ser mais “autónomo” e idóneo um procurador da base do que um de topo? Desde logo, como em todas as profissões, há a excelência, a mediania e o sofrível, pelo que se impunha a supervisão do que fosse mais relevante.

Noutros estados europeus avançados, vigoram modelos interventivos diferentes. A gama é variada.

Na Itália dos anos 1980/90, como os leitores recordarão, a atuação autónoma dos procuradores era de tal ordem que começou a criar graves problemas de desestabilização e até de oportunismo político, com os resultados que se conhecem. Foi necessário introduzir normas de equilíbrio, ali por via de regulamentação interna.

Não há muito tempo, no processo do caso Tancos, quem investigava (DCIAP) pretendia inquirir como testemunhas o Presidente da República e o primeiro-ministro. O então diretor daquele departamento opôs-se e impediu tal diligência, por entendê-la inútil, tendo fundamentado a sua decisão num despacho próprio que entendeu dever ficar arquivado à parte. Gerou-se grande sururu dentro da corporação; sindicalistas clamavam que esse despacho tinha de ficar visível no próprio inquérito, outros que não, que podia ficar guardado no que chamamos “dossier de acompanhamento”, como acabou por acontecer. No fim, o desfecho do processo demonstrou que o hierarca tinha razão quanto à inutilidade de inquirir as duas altas figuras do Estado.

Acontece haver quem entenda a investigação criminal como uma extensão de poder sobre outros poderes, sobretudo os de natureza política. Daí que sejamos surpreendidos, de vez em quando, com buscas cuja utilidade e necessidade é nenhuma, pese embora quem as promove sempre se escude no argumento de opacidade: “Eu é que sei o que está no processo, eu é que sei se são necessárias ou não!” E a sorte é que até há pouco tempo o DCIAP dispunha de um tribunal de instrução privativo, com um juiz de instrução igualmente privativo por ser o único durante largos anos. O perfil decisório desse JIC era conhecido, não há constância de contrariedade ao MP. Maus hábitos.

Já noutra frente, a frase que não saía da boca de sindicalistas e de certas responsáveis máximas do MP era o “​​reforçar da autonomia interna”​ dos procuradores, empenho bem-sucedido, pois a autonomia não só foi reforçada, como até calafetada!

As personagens aludidas granjearam assim a simpatia e até quase camaradagem (em congressos) de certo jornalismo que segue as peripécias da corrupção atribuída a políticos e que tem a militância de deixar Portugal bem colocado nos rankings internacionais da percepção desse flagelo.

Desta sorte, procuradores que não hesitem em meios de recolha de prova intrusivos, humilhantes, necessários ou não, são o top da competência! Outros magistrados de elevado escalão que seguem esta linha argumentativa e a verbalizando no discurso público também têm o elogio garantido. Pelo contrário, quem se opõe à estridência processual é rotulado protetor dos corruptos! Neste enquadramento e sendo a nossa dimensão quase paroquial, poucos têm pulso para impor o que deve ser a sensatez, a escorreita interpretação jurídica dos factos, o respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos suspeitos, a investigação célere.

Em todos os departamentos de investigação e ação penal, mas mormente no DCIAP, deveria privilegiar-se o pensamento crítico, a discussão interdisciplinar, nomeadamente com colegas de outras jurisdições tocantes ou conexas; temo que se tornem cabines herméticas, onde pontuam algumas prima donnas intocáveis e inamovíveis e onde a “falta de meios”, de peritos disto e daquilo é sempre a velha razão para os passos de tartaruga a que se movem as investigações.

Permitiu-se a criação de uma bruma de auto-suficiência totalmente nefasta e contrária ao que deve ser a qualidade e a excelência desta profissão; os desfechos de vários casos já julgados permitem extrair que há aspectos do trabalho dos procuradores de investigação a carecer revisão e aprimoramento pelo exercício da autocrítica.

Uma investigação bem feita e fundada em provas irrefutáveis conduz a uma acusação de boa síntese factual e melhor incriminação nos tipos de ilícito aplicáveis ao caso. Um julgamento com esta base acusatória corre rápido e permite a quem julga uma decisão célere e bem fundamentada.

Não resisto e exemplificar, por curiosidade, o que deve ser a ponderação de conceitos no crime de recebimento indevido de vantagem, que tem como elemento objetivo nuclear o recebimento de uma vantagem patrimonial ou não patrimonial indevida.

O conceito de “vantagem patrimonial” não oferece qualquer dúvida interpretativa: é um acréscimo de património. Já a vantagem “não patrimonial”​ é de mais difícil recorte, podendo ser uma vantagem social. Assim, a oferta de um almoço num restaurante caro será uma vantagem? Em que se traduz essa vantagem? No prazer da degustação? E se o agente não apreciou a refeição, quid iuris?

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