O que está em causa na instrução judicial que envolve o juiz Carlos Alexandre

(José Sócrates, in Expresso, 31/03/2022)

O ex-primeiro ministro, pronunciado no que resta da Operação Marquês, considera que a nomeação de Carlos Alexandre para conduzir esse processo na fase de inquérito resultou de uma “falsificação” que está agora a ser apreciada no Tribunal da Relação de Lisboa.


A causa em debate é a falsificação da escolha de um juiz num processo penal. Talvez não haja nada de mais inviolável no estado de direito do que assegurar que a escolha do juiz não é arbitrária. Os juízes não são escolhidos por ninguém em particular, são escolhidos em função das regras previstas na lei. Chama-se a isto a garantia constitucional do juiz natural. Não se trata de uma qualquer irregularidade, não se trata do incumprimento de um qualquer formalismo, trata-se, isso sim, de um direito constitucional que foi negado pelo Estado através da ação consciente e conjugada de dois dos seus funcionários – um juiz e a escrivã. A decisão do tribunal que nos trouxe até aqui afirma que “Deste modo, perante uma omissão de distribuição conclui-se pela violação do princípio fundamental do juiz natural, por evidente violação das regras de distribuição (…)”.

O juiz natural é uma questão séria para o sistema judicial. Ele representa, por assim dizer, um arquétipo jurídico do Estado de direito democrático, no sentido em que não opera apenas como um conjunto de normas concretas que devem ser respeitadas, mas como símbolo da imparcialidade de todo o sistema judicial. O princípio irradia em várias direções do direito penal, especialmente para aquelas áreas que têm a ver com a competência e legitimidade do sistema. Nenhum juiz tem competência se não for escolhido pelas regras previamente fixadas na lei. Nenhum juiz tem legitimidade para julgar se a sua escolha não for feita de modo a garantir a sua imparcialidade, o que, no nosso sistema e na nossa lei, é feito através do sorteio – terás o juiz que te calhar em sorte. Assim sendo, a falsificação da distribuição por forma a escolher um certo juiz para um certo processo, ameaça a integridade de todo o sistema judicial. É isto que está em causa neste processo de instrução – não apenas o cumprimento da lei, mas a identidade do regime penal democrático. Nenhuma democracia escolhe juízes para casos concretos, só as ditaduras o fazem.

Este processo foi entregue fraudulentamente a um juiz que discursou ao lado de Sérgio Moro nas conferências do Estoril. O caso brasileiro permitiu conhecer melhor o fenómeno lawfare como sendo o uso do sistema penal para fins ilegítimos de perseguição a inimigos políticos. E uma coisa aprendemos – todos estes casos, lá como cá, começam com a escolha manipulada da jurisdição. Começam com a escolha arbitrária do juiz. O objetivo é assegurar desde o início que o processo penal se transforme num jogo de cartas marcadas.

Para chegarmos a esta fase de instrução travámos uma longa batalha contra o encobrimento. A primeira vez que levantámos a questão foi há cinco anos. Cinco anos. Se exceptuarmos a decisão do juiz de instrução, durante todo esse tempo ninguém no sistema judicial ajudou a esclarecer nada, mas muitos se juntaram para encobrir o mal feito. Entre eles estão duas das principais instituições do sistema judicial – o Conselho Superior da Magistratura e o Ministério Publico. Em 2017, o Conselho Superior da Magistratura garantia que a distribuição “Foi manual por não poder ser eletrónica dados os problemas que funcionamento que determinaram o encerramento do CITIUS em Setembro de 2014. Esta explicação é completamente falsa. Mais tarde, o Conselho viria a considerar a distribuição viciada e determinada por “critérios que não foi possível apurar”. No final, arquivou o inquérito.

Por sua vez, o Ministério Público afirmava no início do debate que “A fixação do Juiz natural não impõe, assim, a existência de um sorteio entre os juízes titulares de um Tribunal, mas tão-só obriga à existência de regras pré-definidas para a distribuição do serviço(…)” Os artifícios retóricos para encobrir a manipulação são vergonhosos. A única regra pré-definida na lei para a distribuição do serviço é o sorteio. Quaisquer outras são ilegais e não passam de formas de fraudar o que a lei estabelece de forma clara. É muito confrangedor ver os procuradores argumentarem em desespero a favor do que foi, manifestamente, uma manipulação jurídica.

Mais tarde, o Ministério Público viria a reconhecer que se tratou de uma ilegalidade (nem sorteio nem presença do juiz), mas arquivou o processo criminal com a triste desculpa de que não foi possível identificar indícios de intenção. Para a senhora procuradora o que aconteceu foi um acaso, um comportamento infeliz, uma azarada maneira de agir sem nenhuma intenção por detrás.

Nenhum destes argumentos tem o mínimo de seriedade. Toda a história é agora conhecida. Esteve nomeada para aquele Tribunal uma senhora escrivã que não chegou a exercer funções tendo sido substituída pela funcionária Teresa Santos. Esta mudança ocorreu por iniciativa do juiz Carlos Alexandre que considerou a nomeada pouco adequada ao lugar, ao mesmo tempo que promoveu o nome da nova funcionária em quem tinha toda a confiança por esta última ter trabalhado com ele nos tribunais militares e nos turnos do tribunal criminal. Esta substituição, dizem, terá sido feita por “permuta”. Não sabemos se essa permuta foi voluntária, mas sabemos que foi provocada pela intervenção do juiz. Mais tarde, mais concretamente no dia 9 de setembro de 2014, a funcionária Teresa Santos falsificou a distribuição do processo marquês não a fazendo por sorteio eletrónico, mas por “atribuição manual”. O juiz Carlos Alexandre recebeu o processo com absoluta consciência de que lhe tinha sido atribuído de forma ilegal.

Depois da falsificação, vieram os abusos. A detenção no aeroporto por perigo de fuga quando estava a entrar no País e não a sair. A prisão preventiva durante onze meses sem qualquer acusação. A violação de todos os prazos de inquérito. O festim da violação de segredo de justiça. A entrevista televisiva de um juiz que se permitiu fazer velhacas insinuações a propósito do principal visado no processo. O que se passou nestes anos foi um confrangedor espetáculo de arbítrio. Não esqueçamos, no entanto, que a violência inicial foi a escolha viciada do juiz. Deixo ao leitor o juízo sobre os factos. São eles que estão em causa neste processo de instrução.


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Não foi Sampaio que deu uma maioria absoluta a Sócrates. Foi o centro-direita

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 15/09/2021)

Daniel Oliveira

Uns, criticam a opção de ter dado posse a Pedro Santana Lopes. É o meu caso. Sampaio considerava que a escolha de um português para liderar a Comissão Europeia prestigiava o país e apoiou esta opção do primeiro-ministro demissionário. Acho que o papel de Barroso na Comissão Europeia durante a crise de 2008 demonstrou que era indiferente. Assim como a liderança da ONU de Kofi Annan não fez grande coisa pelo Gana e a de Jean-Claude Juncker na Comissão Europeia não terá trazido grandes vantagens para o Luxemburgo. Os poderes fáticos na Europa e no mundo não mudam pela nacionalidade de quem ocupa estes lugares. Temos de abandonar esta obsessão nacional pelo “prestígio”. Uma economia robusta, uma atividade cultural vibrante e uma sociedade mais justa fazem muito mais pela influência de um país no mundo do que todos os cargos internacionais que os seus políticos ocupem.

O péssimo mandato de Barroso na Comissão Europeia e os quatro meses de delírio a que assistimos com Santana em São Bento vieram a dar razão a quem defendeu eleições antecipadas logo depois da demissão de Durão Barroso.

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Outros, pelo contrário, criticam a dissolução que veio quatro meses depois. Correspondendo a uma leitura política do Presidente e não a um imperativo constitucional, é legitimo o debate em torno desta escolha, que do meu ponto de vista só pecou por tardia. E é objetivo que dar posse a Santana, quando Ferro Rodrigues era líder do PS, levando à sua inevitável demissão no meio do cerco da ignominiosa campanha de calúnias em torno do caso Casa Pia, e dissolver o parlamento quando Sócrates chegou à liderança do partido lhe abriu as portas do poder.

Mas dizer que foi Jorge Sampaio que colocou José Sócrates no poder, pretendendo com isso responsabilizá-lo pelo que aconteceu depois, incluindo o comportamento ético daquele que viria a ser o primeiro-ministro, não é apenas um insulto ao ex-Presidente da República. É uma desresponsabilização coletiva.

José Sócrates não foi eleito líder do Partido Socialista por Jorge Sampaio. Foi eleito secretário-geral do PS, em 2004, contra Manuel Alegre, pelos militantes socialistas. E não chegou a primeiro-ministro pela mão de Jorge Sampaio, mas pelo voto claro e expressivo dos portugueses, um ano depois. Talvez a curta passagem pelo poder de Santana Lopes e o abandono da pátria por Durão Barroso tenham contribuído para esse resultado. Isso, e a destruição moral de Ferro Rodrigues e da sua direção.

Não foi por ter galvanizado a esquerda que Sócrates conquistou a primeira e última maioria absoluta da história do PS. Pelo contrário, os partidos à esquerda do PS, que sempre fizeram oposição a Sócrates, passaram de menos de 10%, em 2002, para quase 14%, em 2005. De pouco mais de meio milhão de votos para 800 mil. Mais 264 mil votos do que nas eleições anteriores. O BE mais do que duplicou a sua votação. Com a substituição de Ferro por Sócrates, o PS perdeu votos para a esquerda. E, ainda assim, teve 2.588.312 votos, mais meio milhão do que nas eleições anteriores e a maior votação da sua história, incluindo em eleições em que muito mais gente votava.

A direita, pelo contrário, perdeu, com a chegada de Sócrates à liderança do PS, mais de 600 mil votos, apesar da abstenção ter sido menor do que em 2002. Foi o eleitorado de centro-direita que deu a maioria absoluta a Sócrates, em 2005. Nada que Sócrates não soubesse. “Sou o chefe democrático que a direita sempre quis ter”, disse José Sócrates, em 2013, numa entrevista a Clara Ferreira Alves. E é verdade. São muitos dos que agora dizem que Sampaio levou Sócrates ao poder que lhe deram uma maioria absoluta, em 2005. Provavelmente, com a ajuda da fuga de Barroso e da incompetência de Santana.

Bom sinal que alguém com o longuíssimo percurso de Jorge Sampaio tenha, em toda a sua vida, um único momento em que é merecedor de críticas mais profundas: o momento dramático em que teve de decidir o que fazer, quando Durão Barroso aceitou o convite para ser presidente da Comissão Europeia, demitindo-se da chefia de um governo que ele dizia estar a lidar com um país “de tanga”, e propôs que Pedro Santana Lopes (que nem deputado era) como seu sucessor.


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Operação Joe por causa do 13 de Julho

(Por Valupi, in Aspirina B, 01/07/2021)

Por que razão Sócrates foi detido a 22 de Novembro de 2014, e não meses antes ou meses depois? Quem souber responder à pergunta, seguramente saberá responder também a esta: por que razão os procuradores responsáveis pela Operação Marquês decidiram cometer o crime de publicar o essencial da sua investigação e respectivo alguidar de invenções em Julho, 4 meses antes do espectáculo de shock and awe preparado com a comunicação social? Para além de todos os poderes despóticos a que podem recorrer, os procuradores do Ministério Público possuem completa liberdade – consagrada na sua autonomia – para escolherem os calendários das buscas e detenções que melhor favoreçam as suas agendas, sejam elas quais forem. Visto de fora, nunca nada se explicando, parece completamente arbitrário. Mas mesmo que haja algum dever de justificação interno, como igualmente me parece lógico por todas as razões e mais algumas, continua a valer a imagem da “Rainha de Inglaterra” lançada por Pinto Monteiro como retrato de uma instituição dominada pelo sindicato e pelo negócio dos crimes de violação de justiça. Um vero Oeste selvagem pejado de xerifes que, não disparando mais depressa do que a sombra, só disparam pela sombra.

Neste caso do Joe Berardo, a investigação começou em 2016. Porquê, então, só agora as buscas e as detenções? Sabendo o que a casa gasta, a explicação mais provável, dentro das minhas duvidosas capacidades adivinhadeiras, remete para o dia 13 do corrente. É a data em que vai ser lido o acórdão do julgamento de Armando Vara.

Depois do que Ivo Rosa fez à Operação Marquês, demonstrando à prova de estúpidos a fraude política que a engendrou, caso Vara seja absolvido, ou mesmo que leve uma pena suspensa, tal seria mais um grossíssimo prego no caixão de Rosário Teixeira, Carlos Alexandre, Joana Marques Vidal, todos os mandantes da vingança em curso e a direita decadente no seu conjunto. Donde, aquela parte fora-da-lei do Ministério Público quer dar aos juízes que estão neste momento em processo de decisão a munição suficiente para que saia mais uma pena “exemplar” em ordem a salvarem a face e continuarem o abuso iniciado com o Face Oculta e seu desfecho penal. Uma pena à medida do Vara, um dos maiores facínoras da História, o primeiro e único condenado a pena de prisão efectiva na Justiça portuguesa por causa de um crime de tráfico de influência (e mesmo assim teve de se torcer a lei para lá caber e despachar penas violentamente absurdas para os restantes condenados), um génio do crime capaz de ficar com 25 mil euros de um sucateiro (que nunca se encontraram, e para um fim que nunca se realizou) e que teve a ousadia de pôr uns trocos na estranja sem passar pela casa do fisco. O solo que pisa tem de ser salgado como aviso à navegação do que pode acontecer a quem é odiado pela oligarquia que nos deu o BPN e o BCP do Jardim, entre outras jóias do laranjal. A mesma oligarquia que tem milhares de milhões alhures sem pagar tostão ao Estado. Um bode expiatório perfeito, diabolizado obsessiva e sistematicamente nos esgotos a céu aberto. Não há ninguém que o defenda, sequer que mostre compaixão ou peça mínimos de justiça, para além do seu advogado.

O DCIAP publicou um comunicado a respeito das diligências onde se queixa da falta disto e daquilo, assim dando uma aparente explicação para o atraso com que foram vasculhar os computadores e telefones da bandidagem. Mais uma vez, actuam como se a audiência fosse constituída por borregos. Do texto só se aproveita a última frase, que reza assim: “O inquérito encontra-se em segredo de justiça.

Ou seja, e de acordo com a prática corrente, podemos ter a certeza certezinha que daqui até 13 de Julho vamos ter fascículos diários sobre a teoria da conspiração que mais delírio provoca na pulharia, o filme em que Sócrates telefona a dar ordens para que o Conselho de Administração da CGD encha as mãos ao Joe para este ir fazer maldades aos anjinhos do BCP. Muita desta gente, mesmo que viva 300 anos, irá morrer com uma expressão de felicidade a imaginar o Vara abraçado ao Santos Ferreira a fumarem charutos e a rirem à gargalhada enquanto o Joe sai da CGD ao volante de um camião cheio de notas. Não é defeito, são mesmo assim.

Fonte aqui


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