(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 11/02/2020)

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Não sei o suficiente sobre o funcionamento interno do Ministério Público para perceber a gravidade do parecer que terá nascido da existência de uma querela interna e pública em torno da ordem do diretor do DCIAP, (Fonte aqui), para travar a inquirição do primeiro-ministro e do Presidente da República, como testemunhas, no caso de Tancos. Não sei se é ou não relevante para a investigação que todas as ordens superiores fiquem registadas. Não sei se a emissão de uma diretiva, ordem ou instrução interna constituem ou não um “ato processual penal” e devem constar no processo. Suspeito que 99% das pessoas que estão indignadas com o parecer nem sequer pensaram nisto. E, no entanto, esta parece ser a questão essencial.
Segundo o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), uma espécie de PGR sombra sem enquadramento constitucional, “toda a intervenção hierárquica no inquérito fora do quadro regulado ou consentido pelo Código Penal Português é ilegal e deve ser recusada pelo magistrado do Ministério Público”. Como digo, não sei. Mas suponho que, pelo princípio da transparência em todo o processo judicial, que o SMMP tem por uma vez razão na crítica a qualquer opacidade quanto à existência dessa intervenção. E que tem razão para se indignar perante a forma pouco clara como este parecer não assinado surgiu.
Segundo o parecer, o princípio da autonomia interna circunscreve-se ao “dever de recusa de cumprimento de ordens ilegais, emanadas de superior hierárquico e o poder de recusa do cumprimento de ordens, do mesmo também emanadas, fundada em violação da consciência jurídica do subordinado”. Tirando a lei e a consciência do magistrado, sobra o quê? Estou disponível para ler opiniões de juristas que não estejam a fazer política partidária ou sindical. Para me explicarem os limites do poder hierárquico e da autonomia dos procuradores. Sei, apesar de tudo, que ao contrário do que acontece com os juízes, os procuradores têm mesmo uma hierarquia. Cada um deles não goza, individualmente, da autonomia de que goza um juiz. Nem a poderia ter sem que se instalasse o caos. Suspeito que o parecer tem várias fragilidades, sobretudo na tentativa de justificar o fim do registo de ordens internas. Mas isto é, antes de tudo, um debate jurídico. Ignorante e desconfiado me confesso. Parece que a própria Lucília Gago se rendeu às dúvidas que se instalaram e pediu um parecer complementar, (Fonte aqui). Fez bem.
Assim sendo, sobram-me duas perplexidades. A primeira é ter-se evaporado a preocupação que domina há anos o discurso político sobre a Justiça: a autonomia do Ministério Público face ao poder político. O Conselho Consultivo que exarou este parecer é composto por juristas nomeados pela PGR, não por políticos. Trata-se de um documento interno sobre o funcionamento interno do Ministério Público. No entanto, numa clara violação da separação de poderes, dirigentes políticos não só opinaram sobre ele como até há quem queira chamar a PGR ao Parlamento para prestar contas aos deputados. E que exija que a ministra da Justiça diga o que pensa sobre a forma como o Ministério Público resolve as suas divergências internas.
Curiosamente, Lucília Gago é criticada por não ter discutido este parecer com o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP). Recordo que, ao contrário do Conselho Consultivo, o CSMP tem nomeados políticos. O que ainda há uns meses sofria do pecado da politização passa subitamente a ser visto como a última fronteira na garantia da pureza da magistratura.
A minha segunda perplexidade é a conclusão quase imediata de que a obediência à hierarquia põe o Ministério Público perante o risco de uma interferência política. E se for para impedir a interferência política que a ordem superior surge? Pode até haver quem ache que foi isso mesmo que aconteceu com o caso de Tancos e a tentativa de inquirir as duas principais figuras do Estado, tendo em conta o momento político em que isso aconteceria. Ou que queira impedir que sejam usados meios para números mediáticos e políticos, sem qualquer utilidade para a Justiça, como as famosas buscas ao Ministério das Finanças por causa de uns bilhetes para um jogo do Benfica.
Fui lendo e ouvindo, tentando perceber de onde poderia vir essa interferência política e porque a poderia desejar o Conselho Consultivo. Ainda há uns meses, a Procuradora Geral da República era tratada como o último bastião da independência da Justiça. A existência de investigações a poderosos era sinal da sua determinação, o que levava a depreender que ela tinha, de alguma forma, algum poder sobre as investigações que os magistrados desenvolviam. Quem se atrevesse a negá-lo, recordando que os magistrados eram autónomos, apenas queria diminuir Joana Marques Vidal. Quem se atrevesse a lançar qualquer suspeita sobre a sua independência na escolha dos alvos das investigações punha em causa a independência da Justiça. Passados uns meses, o que valia para Joana Marques Vidal deixou de valer para Lucília Gago.
Joana era uma magistrada independente, Lucília e todos os magistrados que possam exercer poderes hierárquicos são políticos. O poder de Marques Vidal era a garantia de ter havido processo Marquês, qualquer poder que Gago assuma é a longa mão da política a interferir nas investigações. Se alguém tivesse o atrevimento de insinuar que Joana Marques Vidal poderia ter sido movida por qualquer motivação política, isso seria considerado uma vergonhosa acusação contra a magistratura. Já qualquer reforço do poder de Lucília Gago dentro do Ministério Público é tratado, sem que isso mereça debate ou dúvida, como um reforço do poder político. O que era excelente numa passa a ser péssimo noutra.
Dito isto, volto à vaca fria: tenho bastantes dúvidas sobre a ausência de um registo de ordens superiores e não tenho claros os limites em que elas são legítimas, apesar de ser evidente que a hierarquia existe mesmo para os procuradores, ao contrário do que acontece com os juízes.
Atribuo a essa decisão a uma tentativa de reforçar o poder da hierarquia – provavelmente excessiva – e de travar uma crescente politização e mediatização das investigações e das ações internas do Ministério Público – provavelmente compreensível. O que não aceito é que a PGR, conforme seja dirigida por gente mais ou menos popular em determinados círculos políticos, tenha direito a autonomias diferentes. E que os mesmos que alertam para os riscos de interferência do poder político no Ministério Público façam essa denúncia socorrendo-se da mais descarada interferência do poder político no Ministério Público. Ou a Justiça só deve fazer as suas próprias escolhas, livres de pressão política, quando elas agradam a parte dos políticos?