Seria injusto e de mau gosto beliscar a honra de dois catedráticos ilustres, Passos Coelho e Cavaco Silva, referências éticas, políticas e intelectuais do nosso País, mas surpreendeu a aparente falta de sentido de Estado nas insinuações e no azedume com que se pronunciaram perante o normal fim do mandato da PGR.
O facto de Dias Loureiro, ministro dileto de Cavaco Silva, e empresário modelo de Passos Coelho, ter sido constituído arguido e não ter havido consequências, só pode dever-se à sua inocência, mas o pior que poderia suceder era ficar a pairar qualquer dúvida.
Seria desonesto pensar que a raiva ruminada pelos ex-governantes pudesse ser uma questão de gratidão à PGR que a poria injustamente em causa.
Para que a luta política não venha a acusar de incúria a PGR cessante, era conveniente que a notícia do DN de 6 de maio de 2015 (aqui), caída no esquecimento, fosse esclarecida para preservar o prestígio e a confiança nas instituições.
A uma semana de terminar o mandato único de PGR é ainda tempo de perguntar à Dr.ª Joana Marques Vidal o motivo que a levou a não repudiar a calúnia da sua colega Cândida Almeida ao órgão oficioso do MP – Correio da Manhã – e a não exercer a competência disciplinar que lhe cabia. E, eventualmente a processar o DN.
A justiça tem de ser independente de todos os poderes e interesses que não o interesse geral do povo português. A obscena campanha de condicionamento da Procuradoria-Geral da República tem assim que ser vigorosamente combatida.
A gritaria
Pela primeira vez na história da democracia portuguesa, a nomeação do “Procurador-Geral da República” ocupou o centro do debate político durante mais de seis meses. É verdade que tanto o Primeiro-Ministro como o líder da oposição se portaram de forma discreta no debate (e o líder da oposição foi acerbamente criticado por dizer o que lhe competia dizer, que se sentiria confortável com qualquer das soluções), mas eles foram aqui mais a excepção do que a regra, com o espectro político-financeiro – incluindo o ex-Presidente da República e o grupo Balsemão – a multiplicar declarações incendiárias.
O Ministério Público tem um estatuto algo particular. Os procuradores não são eleitos pelo voto popular, como acontece frequentemente nos Estados Unidos, nem são nomeados pelo poder executivo ou legislativo. O Conselho Superior do Ministério Público, dominado pela corporação, é o mais poderoso dos organismos, com o Presidente da República e o Primeiro-ministro a partilhar o poder de nomear o procurador-geral, personagem importante mas não a decisiva no sistema.
É verdade que nos últimos tempos começaram finalmente a ser acusados personagens importantes do sistema político-financeiro português, mas não é menos verdade que muitos outros continuam a não ser incomodados e que o Ministério Público não foi capaz de dar uma imagem de imparcialidade perante partidos e perante o poder financeiro.
Na esteira do que já vinha acontecendo – e infelizmente à imagem do que se passa no mundo menos democrático – o sistema judicial português parece frequentemente mais interessado em ver as suas teses publicitadas pela comunicação social do que em assegurar o rigor de processos, a imparcialidade de comportamentos e a obtenção de sentenças justas.
Com esta inusitada campanha para quebrar com a prática de nomeação para um único mandato, um conjunto de importantes personalidades do mundo da política e dos interesses usou meios extremamente agressivos, que incluíram a publicação de notícias falsas com o aparente fim de desencorajar eventuais candidatos a aceitar ser propostos pelo Primeiro-Ministro para o cargo (iriam ser enxovalhados, porque o Presidente já tinha decidido pela manutenção da titular).
Esta prática de desinformação – na linha do que o regime iraniano ou a Rússia nos habituou – não surtiu efeitos mas não desencorajou os seus promotores, que pretendem agora nomear uma “Procuradora” sombra para condicionar a verdadeira titular do cargo.
Proteger a justiça
A justiça tem de ser independente de todos os poderes e interesses que não o interesse geral do povo português. A obscena campanha de condicionamento da Procuradoria-Geral da República tem assim que ser vigorosamente combatida.
Creio que é fundamental uma reforma do Conselho Superior do Ministério Público, de onde o sindicalismo deve ser expressamente excluído e em que deve ser reduzida a uma parte minoritária a presença da representação do funcionalismo, podendo pensar-se na presença de representantes directamente eleitos pelo voto popular; creio que é fundamental adaptar a Portugal de forma rigorosa toda a arquitectura internacional destinada a combater a corrupção, conflito de interesses e lavagem de dinheiro, mas creio mais ainda que é urgente dotar o Ministério Público das competências técnicas de que precisa para poder combater o crime financeiro internacional.
O essencial aqui como em tudo, é termos responsáveis ética e profissionalmente bem formados, capazes de resistir a pressões, seduções e ameaças sem nunca esquecer os princípios de serviço ao país de que esses profissionais são devedores.
Os processos
A investigação judicial tem que por um lado olhar para a complexidade e globalidade da realidade e por outro lado ser precisa, baseada no princípio da responsabilidade individual, ser imparcial e olhar apenas para a justiça e os interesses de todos.
É natural que a investigação se possa desenvolver de forma encadeada, com a descoberta de um ilícito a levar à descoberta de outro, com a descoberta de ligações múltiplas entre processos, personagens e actividades mas de forma alguma é aconselhável que os processos que decorrem dessas investigações se tornem monstros sem princípio, meio ou fim.
A independência da justiça não pode ser confundida com a sua inimputabilidade. Os magistrados têm que saber escrever na língua portuguesa, e não num incompreensível arrazoado cifrado, têm que compreender a realidade em que vivem, têm de saber responder às legítimas preocupações e questões da sociedade.
O Ministério Público tem de estar consciente da absoluta necessidade da sua imparcialidade e ausência de agendas secretas, se quer que o seu trabalho possa dar frutos e ser respeitado pelos portugueses.
(Decidi ilustrar este artigo com a imagem mais favorável de Joana Marques Vidal que encontrei, publicada em 2012 aquando da sua nomeação como PGR, na Visão (ver aqui). Aí se elencavam os oito casos mais polémicos com que iria defrontar-se a nova PGR. Pois bem, dos oito referidos só um, o Face Oculta envolvendo Armando Vara e o sucateiro, produziu condenações. Todos os outros, envolvendo figuras da direita, não tiveram qualquer conclusão ou foram arquivados.
Por isso, deves ter razão, Vassalo Abreu!
Comentário da Estátua, 29/09/2018)
Esta cena do aparecimento quase em simultâneo do Passos passado e do Cavaco mumificado a propósito da não recondução da Marques Vidal no cargo de PGR, já foi por muitos estudada, criticada, escalpelizada, explicada e direi mesmo traduzida mas, no meu modesto entender, todos esses estudos se enredaram no mesmo e nenhum foi ao cerne da questão!
Quer dizer: todos se limitaram a criticar a oportunidade, a falarem de uma qualquer hipotética estratégia que lhe estivesse subjacente, no porquê de tanto afã na defesa da recondução da dita, tudo isso foi falado e escrito, por vezes num tom de rancor e desprezo legítimos mas desapropriados, mas sempre referindo o óbvio, mas sem irem ao âmago da questão!
E o CDS, por acaso, até que isso percebeu antes da restante distraída direita, e isso cavalgou, porque se lembrou das razões por que a Marques foi eleita PGR e achou que, numa altura de vazio de causas com vincado interesse público, era importante lutar pela sua recondução. A restante direita veio depois a reboque, verdade seja dita.
É que o que a nomeação da dita representou foi a exposição descarada e exponenciada de casos que envolvessem pessoas ligadas à Esquerda, a começar por Sócrates.
Para quê? Para tentarem em primeiro lugar, a partir da prisão de Sócrates, do envolvimento deste em casos e mais casos e do possível conluio de membros dos seus governos nesses mesmo casos, denegrir a mesma Esquerda, associá-la a esses comportamentos e, assim, fazer com que a opinião pública se esquecesse de todos os casos em que a direita e seus membros estivessem comprometidos!
Esta foi a estratégia e disso não tenham dúvidas! E foi isto que durante estes anos se passou e, por exemplo, na Televisões que casos é que passaram repetidamente? Apenas a Operação Marquês! E o BPN? E os Vistos Gold? E os Panamá Papers? E a outra? E mais a outra ainda? E o BES? E o Banif? E…e os Submarinos? E as Tecnoformas, já agora também?
Foi para isto que a “Operação” Marques Vidal nasceu e foi por tudo isto que a sua não recondução tanta raiva provocou em quem a nomeou. Porque ela estava ciente dos deveres de “missão” para que foi nomeada, principalmente o de fazer arrastar aqueles em que a sua gente amiga estava indiciada e concentrar tudo o resto num só: na Operação Marquês, tendo Sócrates como responsável por tudo e por todos os casos!
Como, já desde o caso Freeport, a opinião pública tinha já a sua opinião formada, tudo o resto seriam achas para uma fogueira já feita em forno de siderurgia!
A estratégia suprema da direita é evitar a todo o custo e usando todas as armas de que possa dispor, legais e ilegais, ajustadas e não ajustadas, legitimas e não legitima…todas, mas mesmo todas, que as Esquerdas sejam Governo! Não é isso claro? E a estratégia até que estava funcionando e não fossem a resiliência de Sócrates e o pragmatismo e os categóricos resultados deste Governo (das Esquerdas) até que poderia sair vitoriosa…
Mas não saiu e, abstraindo-me agora das razões pelas quais Marcelo resolveu não a reconduzir, se foi por uma questão de longevidade na função, se pela sua recondução vir a produzir atritos na sua relação com o Governo e com a sociedade civil, fosse pelo que tivesse sido, a direita perdeu este “round”…
É que, apesar de muita gente ter entrado ao longo destes tempos numa certa deriva justicialista, naquela do que agora é que vai ser etc. etc., muita mais já percebeu que a Justiça tem os seus tempos, os seus trâmites e a as suas normas e que no fim o que interessa são três coisas: que seja célere, que seja igualitária (dê as mesmas faculdades à defesa que dá à acusação) e seja isenta e justa!
E essa massa de gente também já percebeu que, através das constantes fugas ao segredo de justiça, vindas sempre de dentro, ela pode e tem sido utilizada, politizada e parcializada, e que a sua exposição pública, por tão exagerada e reiterada, se pode considerar um verdadeiro nojo, acabando por não ser justiça nenhuma!
Esta reacção inadequada, de latente cinismo e rancor e de tão considerável despropósito vinda de gente que deveria ter sentido de Estado prova que, mesmo tendo tido cargos de Estado, este nunca lhes vestiu a pele…