A pátria que o pariu Salgado

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 16/07/2020)

Daniel Oliveira

Preocupa-me a alegria redentora que se sente, ao fim de seis anos, por ter saído finalmente o despacho de acusação a Ricardo Salgado e companhia. Não digo que não seja fundamental. Veremos se é sólida. A complexidade do sistema financeiro não me permite ver mais do que parece óbvio: que, talvez numa ação desesperada e esperando que tudo passasse sem rasto, Ricardo Salgado atirou para o abismo um banco para tentar salvar o seu grupo falido e manter as redes de cumplicidade de que dependia.

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Para além de ter andado a enganar clientes, envolvendo funcionários numa operação de venda da banha da cobra, essa operação foi feita como tudo o resto no reino de Ricardo Salgado: comprando silêncios e cumplicidades, dentro e fora do Império. E com isto destruiu um banco que era demasiado grande para falhar, o que obrigou a uma intervenção pública – do meu ponto de vista desastrosa na forma, ao permitir que a Europa nos usasse como cobaia – com efeitos brutais nas finanças do Estado.

Há a parte fácil: o julgamento moral de Ricardo Salgado. Não me entregarei demasiado a isso. O homem está acabado e concentrarmo-nos no que já está em andamento é tentar desviar do que falta resolver. Espero que as provas sejam sólidas, porque a lei tem de ser para todos. Para isso, é preciso que os procuradores tenham feito bem o seu trabalho e que os juízes façam bem o seu. Faz pouco sentido andar para aí tanta gente a queixar-se dos advogados de defesa. Se forem profissionais conscientes, cumprem a sua função. Se cumprirem melhor do que quem acusa, o problema é de quem acusa. Parece-me demasiado simples para ser discutido.

Sobre a demora de tudo isto, sou menos severo do que o costume quanto à eficiência da Justiça. Trata-se de um crime de enorme complexidade, com imensas derivações para instituições externas. Defendo a celeridade da Justiça, dentro dos limites do que o rigor exige. E o rigor exige muito, neste caso.

O que me espanta, na celebração geral, é haver quem não perceba que tudo mudou no império de Ricardo Salgado mas pouco no que tornou aquilo possível. Só não temos bancos demasiado grandes para cair porque, verdade seja dita, quase deixámos de ter bancos. E isso só é boa notícia para quem acha que a melhor forma de resolver os problemas do país é deixar de haver país. Olhe-se para tudo o que foi acontecendo na associação mutualista Montepio no mandato de Tomás Correia.

A mistura entre sector financeiro e empresarial também continua a ser um problema. Não é um problema português. É geral. A razão pela qual não há “ring fencing” que sobreviva é porque as duas coisas já não se conseguem separar. Este é um problema estrutural da financeirização do capitalismo. O sector produtivo, de que realmente devíamos depender, está refém do casino. Ricardo Salgado foi o jogador que apostou o carro, o relógio e a casa numa jogada final que estava condenada a falhar. E quando começou a falhar os inimigos que foi somando saíram da toca. O que fez é crime grave e tem de ser punido. Mas não vale a pena grandes preleções morais no meio do faroeste.

Notam que tenha havido alguma revolução na relação da política com as grandes empresas? Talvez haja mais cuidado com as promiscuidades óbvias, mas não me parece que tenha havido um corte definitivo na transumância entre o público e o privado. Como podemos observar em tudo o que fomos discutindo sobre a EDP, continua mais ou menos na mesma. E a agenda política mantém o foco em José Sócrates – mais um cadáver que fala –, mas vai ignorando o que possa estragar a narrativa que associa um problema transversal ao poder apenas a uma parte dele. Até ao ponto da confirmação de que a campanha de Cavaco Silva – o mesmo que em 2014 nos dizia que podíamos confiar no BES – recebeu dinheiro do saco azul de Ricardo Salgado ser uma nota de rodapé nas notícias televisivas. Há que manter ereta a ideia de que é preciso nascer duas vezes para ser mais sério do que o antigo Presidente.

Basta ver a polémica em torno da nomeação de Mário Centeno para governador do Banco de Portugal, em contraste com a facilidade com que foi aceite a nomeação de Carlos Costa, vindo quase diretamente dos regulados para o regulador, para perceber que não acabou a bonomia com que essa promiscuidade estrutural é tratada.

Depois do que foi o mandato de Carlos Costa, notam que tenha mudado alguma coisa de essencial no Banco de Portugal? Ainda hoje vemos jornalistas a desculpar a desatenção de Carlos Costa, explicando que ele nunca pensou que Ricardo Salgado levasse o BES ao fundo. Disse Luís Rosa, do “Observador”: “Não se pode criticar o Banco de Portugal por isso. O ‘ring fencing’ tinha uma lógica bastante simples – Ricardo Salgado não vai querer levar o BES ao buraco com o Grupo Espírito Santo.” Era tudo na base de uma relação de confiança, mesmo quando os sinais eram mais do que muitos. Desculpem se me repito, mas basta ver “Assalto ao Castelo” para perceber até onde foi a incúria e a camaradagem com os banqueiros. No entanto, Carlos Costa acaba o seu mandato sem contestação e o grande debate é como impedir a promiscuidade entre o Banco de Portugal e… o poder político.

A queda do BES e de Ricardo Salgado destapou as linhas com que o regime se tece. Espero que Salgado tenha um julgamento justo e que dele resulte a reparação penal do mal que nos fez. Mas estamos a tratar da cortina que caiu, não do que vimos no palco depois de ela ter caído. Isso está mais ou menos na mesma. Porque para o mudar não chega um julgamento. É preciso alguma radicalidade política.


Sim, senhor Presidente

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 28/12/2019)

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Os nossos pais fundadores da Constituição de 76 quiseram um sistema semipresidencial que, não dando ao Presidente o papel principal, lhe deu, todavia, muito mais poderes dos que tinha anteriormente, na Constituição do Estado Novo de 33 — e, sobretudo, desde que o regime de então se viu forçado a roubar a vitória obtida nas urnas pelo candidato oposicionista Humberto Delgado, reduzindo desde aí o Presidente a uma figura de opereta, um papel desempenhado com inexcedível brio pelo patético almirante Américo Thomaz. Mas a primeira revisão da Constituição democrática de 76 reduziu também de forma cirúrgica os poderes do Presidente, que, desde então, passaram a caracterizar-se principalmente por aquilo que os próprios gostam de classificar como “magistraturas de influência”. Ou seja, de palavras. Sendo que a influência das palavras, obviamente, depende essencialmente de três coisas: de quem as diz, da qualidade do que se diz e da frequência com que se diz.

Tudo ponderado, Mário Soares foi, daí em diante, o melhor de todos: de longe o mais prestigiado, com o discurso e os pergaminhos democráticos mais sólidos e um estatuto próprio que lhe permitia falar do que queria, quando queria. Jorge Sampaio tinha os pergaminhos e não falava demais, mas os discursos eram um remédio imbatível contra as insónias — quando se entendiam. Cavaco Silva, enfim, zero de pergaminhos e até de cultura democrática, zero de pensamento estruturado e de qualidade discursiva e um perturbador egoísmo institucional que o levava a pôr sempre a sua pessoa acima de qualquer outra consideração.

Já Marcelo Rebelo de Sousa é um caso à parte. Está no álbum de fotografias de nós todos, mantém-se acordado quando já todos dormimos, consegue que todos o amem e desconfiem dele simultaneamente e só não é absolutamente perfeito porque jamais conseguirá corrigir o seu defeito de nascença: passar um dia que seja sem que o país escute uma opinião sua, no limite sobre a temperatura da água do mar em Cascais. Na verdade, a única ameaça do Presidente Marcelo à saúde do regime é que o cargo que ele agora desempenha se extinga por exaustão ou por ausência de candidatos a suceder-lhe assim que ele terminar o seu segundo mandato.

Então, manda a tradição que algumas das solenes ocasiões de que os Presidentes dispõem para exercer a tal “magistratura de influência” sejam as mensagens de Natal e de Ano Novo. Uma perfeita inutilidade, com seis dias de intervalo uma da outra e quando toda a gente está ocupada com outras coisas e tem mais que fazer do que escutar os pensamentos que a “quadra” costuma inspirar aos grandes da pátria. Não fugindo à regra estabelecida, Marcelo lá nos veio então dar conta da sua mensagem de Natal, oscilando, muito originalmente, entre a “preocupação” e a “esperança”. Quem não oscila? Tal como o Papa, tal como tantos outros, o Presidente português declarou-se preocupado “com a permanência de desigualdades, de misérias, de guerra, de instabilidade política, social e económica, em África, na Ásia e na América Latina” — problemas estes tão grandes, tão longínquos e de resolução tão fora do nosso alcance que não custa nada preocuparmo-nos com eles. Sentado ao canto da sua lareira numa qualquer aldeia transmontana semideserta, um casal de velhotes ouviu o Presidente Marcelo declarar-se também preocupado com as migrações — que não temos — ou com as alterações climáticas — para que quase nada contribuímos e que quase nada nos esforçamos para alterar na nossa terrinha. E pela boca do Presidente confirmou que também ele atribui a responsabilidade “à insensibilidade de alguns com muito peso internacional”. Com a diferença de que enquanto nós lhes pomos nomes — Trump ou Bolsonaro — e só os queremos ver pelas costas, ele omite diplomaticamente os nomes, visita-os quando consegue e convida-os a visitar-nos — convites que eles, felizmente e muito pouco diplomaticamente, nem se dão ao incómodo de aceitar.

Depois, e como seria de esperar, o discurso natalício do Presidente virou os olhos para a pátria. E aí, como também é da praxe, o Presidente continuou “preocupado”. Porque as eleições não deram uma maioria absoluta — que seria um mal, um perigo de deriva autoritária — mas também assim não garantem estabilidade para quatro anos — o que é outro mal. Não havendo terceira hipótese, o Presidente gostaria que o Governo minoritário socialista fosse apoiado passo a passo e sempre que necessário pelos partidos de extrema-esquerda, mesmo que isso contrariasse as suas próprias inclinações políticas e mesmo que, inevitavelmente, tivesse o correspondente custo orçamental, cujo controle, todavia, ele não deixa também de exigir. Mas assim, diz ele, tudo ficaria claro: esquerda de um lado, direita e centro-direita do outro. Dois dos três candidatos à liderança do PSD acham o mesmo. O problema é que, ao mesmo tempo que preconiza esta separação de águas, Marcelo Rebelo de Sousa também não deixa de, mais uma vez acompanhando a tradição da quadra, exigir as célebres e sempre adiadas “reformas estruturais”. E isto até nas aldeias perdidas e despovoadas de Trás-os-Montes se sabe que só pode ser feito com acordos ao centro.

Acompanhemos aqui o Presidente: é preocupante que o debate público esteja centrado “em pontos específicos, mais formais do que substanciais, mais conjunturais do que estruturais”. (É preocupante) “a sensação difusa de que o dia-a-dia deve prevalecer sobre os horizontes de médio e longo prazo na percepção social de muitos”. Eu não diria melhor. Talvez dissesse é de forma diferente, mais crua, confrontando os caros concidadãos com as opções a fazer. Por exemplo: querem pensões de reforma cada vez melhores com taxas de natalidade cada vez menores? Querem mais habitação para os jovens e os residentes no centro das cidades mas sem travar o crescimento do turismo sem limite? Querem abolir as taxas moderadoras nos hospitais e centros de saúde, gastar sem limites em medicamentos e exames, ao mesmo tempo que se paga mal aos médicos e enfermeiros e esperar que o SNS não rebente? Querem apostar tudo numa economia dependente só das exportações e da mão-de-obra barata em vez de apostar na indústria, nas energias alternativas e na produção nacional, capaz de substituir importações? Querem agricultura superintensiva a gastar 75% do consumo de água do país e a desenvolver culturas exógenas ou querem uma agricultura adaptada à terra, aos seus recursos e ao clima? Querem um país despovoado e regionalizado para os políticos sobejantes ou querem um país desenvolvido integralmente, com indústria local, mundo rural, vida económica e cultural distribuída por todo o território? Resumindo e abreviando: querem mesmo mudar de vida ou estão bem assim? Se querem mudar de vida, as escolhas fazem-se agora; a médio prazo, estamos todos mortos.

Isto era o que eu diria se fosse o Presidente e se tivesse alguma coisa para dizer e não apenas alguma coisa para discursar. Mas eu sei: a tradição também não o consente.

O Presidente não governa, apenas influencia — ou, pelo menos, julga que influencia. E influencia falando muito para dizer pouco. Pois é preciso dizer pouco para que tudo fique na mesma.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia



O Avô e o neto

(Por Maria Teresa Botelho Moniz, in Facebook, 29/10/2017)

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(E, voltando à aula com as crianças, Marcelo nunca deixa de falar no “neto favorito”, Francisco. O Presidente lembrou, mais uma vez, que foi Francisco que o aconselhou a candidatar-se, mas no fim disse-lhe: “O avô deve pensar em ser Presidente cinco anos. Cinco anos, nós aguentamos. E eu achei: ‘Este meu neto, tinha muita razão‘”. Marcelo tem sido contraditório quanto a uma recandidatura. Umas vezes sugere que fará só um mandato; outras dois. Esta sexta-feira, foi dia de sugerir que fica só cinco anos.

Ver notícia completa aqui)


Isto dos afectos  já chegou ao decreto dos “netinhos” de 12 anos, confissão pública nas televisões. Se calhar, o miúdo é mesmo inteligente, como diz o avô, e está farto de tristes figuras, ficando triste por isso. Eu ficaria, se tivesse doze anos, e tivesse de presenciar os ridículos do meu familiar. Assim, o puto, não quer chegar aos 18 anos – e entrar na faculdade com este peso -, e pede que o avô cumpra apenas um mandato para que não venha a ser triturado pelo ridículo.

Um país de ridículos, sem eira nem beira, assolado por corruptos que estiveram no poder por décadas e décadas, e que mesmo considerados como tal e tendo cumprido penas de prisão, voltam a ser eleitos, sendo que até eram do partido do Avô.
De corrupção nem acuso o ascendente da criança: não tinha, nem tem necessidade, mas não confio minimamente, na sua honestidade moral e ética política. E já o esperava, e estava apenas aguardando quando surgiria.

Eu adoro falar dos meus netos, todos gostamos de relatar os seus êxitos, alguns avós mais honestos, as suas dificuldades, e os avós, são pais duas vezes, como diz o povo na sua sabedoria, mas, em política, esse argumento e invocação, jamais deveria ser usado.

Salazar era criticado pelos seus próximos, inclusive por Marcelo Caetano, e até pelo meu pai de quem Marcelo Caetano era muito amigo, porque um político sem família e sem descendência, jamais saberia avaliar das necessidades, da amplitude e evolução do país.
O Salazar, tinha lá por casa as suas “pombinhas”, umas pobres meninas de tenra idade, desfavorecidas, com que a governanta Maria, lhe enchia São Bento, trazidas da sua terra, e com quem o ditador ocupava o serão, indo de quarto em quarto, lendo para elas (Dizia-se). Talvez para o ditador, isto e ser pai por empréstimo, lhe fosse suficiente como o contacto com a juventude, ainda por cima moldável e analfabeta lhe bastasse como família. Mas eu, que já não ando, há pelo menos 30 ou 40 anos, a acreditar nos glutões do detergente Presto, que lavava mais branco e retirava todas a nódoas, sempre e desde que comecei a ler sobre isso, passei a desconfiar do pombal que o Salazar tinha por lá.

O Sócrates, 50 anos depois, outro vaidoso – para não dizer mais -,  tinha pavões em São Bento, mas eram mesmo aves e ele não lhes lia histórias na capoeira. Só as lia aos contribuintes portugueses, enquanto embolsava as “comissões” dos negócios.

Com 43 anos disto, e com 30 e tal misturados com a corrupção de Cavaco e seus amigos, mais 48 anos do outro, não seria já altura de existir uma maior seriedade dos políticos, e do mais elevado representante da nação não falar da opinião dos netos de doze anos?

 Se isto continua, uns com preferências esquisitas por pombinhas de 13 anos, outros com vaquinhas e cagarras e demais bichos a que chamam para as suas fantasias, o atrasado mental do PAN ainda chega a Presidente da República – e dentro de pouco tempo.

Já não tenho paciência para tanta demagogia que é mais parvoíce, e no dia em que os espanhóis nem se ficam, de nenhum lado, em contraste com este povo aqui. Nós, ao lado deles, sem chispa, obedientes, desinteressados e sem coisa nenhuma de relevante. E, por tal, fazem de nós gato-sapato: roubam-nos nos impostos e reformas, na conta da água, do gás e da electricidade, roubam-nos, também os operadores, MEO, VODAFONE, MEO e as outras, e não existe regulação eficaz para nos defender.
Até a DECO, em vez da Defesa ao Consumidor, promove marcas, com o prejuízo de quem não lhe dá balúrdios e tornou-se numa empresa que degenerou – em prol do negócio -, esquecendo a Defesa do Consumidor, que deveria ser a sua genética.