A nova direita radical

(António Guerreiro, in Público, 12/01/2023)

António Guerreiro

Os movimentos da direita radical de hoje não participam da cultura de direita de uma aristocracia reaccionária que não tinha nenhum espírito de revolta.


Manifestações e invasões violentas das sedes do poder democrático praticadas por uma massa tão alienada nos seus meios que deixou de reflectir sobre os seus fins, como aquelas que se verificaram há dois anos em Washington e agora em Brasília, podem ser vistas como um fenómeno da era digital, potencializadas pelas redes sociais e os novos meios de comunicação. Mas as bases “mitológicas”, mais do que ideológicas, desta direita radical, nos seus expedientes — a propaganda, a mentira, a difusão das teorias do complot, a indução de reacções emotivas e regressivas — não tem nada de novo, é mais um retorno do mesmo.

Percebemos isso perfeitamente quando lemos o diagnóstico que Adorno fez da ascensão de um partido neonazi, o NPD, nos anos 60 do século passado, na República Federal da Alemanha. Foi numa conferência, em Viena, no ano de 1967, que o filósofo falou para um auditório de estudantes sobre os “Aspectos do Novo Radicalismo de Direita”: foi este o título da conferência e é este o título do texto transcrito e publicado pela primeira vez sob a forma de livro em 2019 (em Portugal, caso raro, esse livro foi logo publicado no ano seguinte, pelas Edições 70; tradução de Mariana Toldy e Teresa Toldy), com um longo e excelente posfácio do historiador Volker Weiss.

Muito antes dos processos de difusão de fake news, Adorno identifica o recurso à mentira como um instrumento fundamental desta direita radical, isto é, a difusão reiterada de informações falsas, às vezes grosseiras, outras vezes difíceis de comprovar. A mentira é um dos meios, não o único, que alimenta os mecanismos da propaganda, aptos a fomentar os comportamentos emotivos e a estimular aquilo a que Adorno chama a “ostentação pática” (do grego pathos), sem substância. Encontramos aqui uma análise que prossegue algumas ideias que ele já tinha desenvolvido num texto de 1951, A Teoria Freudiana e o Modelo da Propaganda Fascista.

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A palavra “propaganda” tem hoje conotações muito negativas, mas os regimes fascistas usaram-na sem reservas nem pudor. Ela pertenceu naturalmente e de pleno direito ao léxico da acção política e ideológica. A propaganda, diz Adorno, foi sobretudo uma técnica da psicologia de massas, geralmente instadas a mobilizar-se em torno de uma “personalidade autoritária”. Mas nos métodos propagandísticos do “novo radicalismo de direita” encontra Adorno algo novo, uma lógica hiperbólica dos meios, de tal modo que se torna possível afirmar que nestes movimentos radicais de direita a propaganda constitui a própria substância da política. Daí, a queda no irracionalismo.

Adorno mostra como a tentação para o irracional exerce um fortíssimo efeito sobre esta direita radical (mais um aspecto cuja actualidade os recentes acontecimentos bem ilustram). O triunfo do irracional explica a negação das evidências, tanto das evidências científicas (Bolsonaro e os seus seguidores mostraram bem a lógica do negacionismo), como das evidências da argumentação racional. A submissão ao pathos, ao emotivo, típica deste radicalismo de direita, não aceita as demonstrações do visível porque está exclusivamente orientada para o obscuro, o suspeito, o complot.

Não é preciso submeter nada à racionalidade da prova porque a verdade está encontrada à partida, e essa verdade diz-lhes que é preciso agir para que o mal não triunfe, para que os “homens de bem” (ouvi esta expressão a um bolsonarista e registei o modo como ela atravessa fronteiras; é de facto uma expressão, quase um conceito, tão antiga como o “honnête homme”) não sejam anulados por plebiscitos que só são válidos quando os elegem.

O irracional compreende medos ancestrais e visões paranóicas (psicopatologias diagnosticadas e analisadas por Adorno). Hoje, esta direita radical já não publicaria certamente os Protocolos dos Sábios de Sião, mas difunde outras informações inverosímeis, à medida das solicitações do nosso tempo. Tais psicopatologias e os seus sintomas continuam actuais e, como vemos, não foi preciso que aparecessem as redes sociais para que elas se manifestassem. Estes movimentos da direita radical (os de hoje, afinal muito iguais àqueles que Adorno definiu como “novos”) não participam da cultura de direita de uma aristocracia reaccionária que não tinha, evidentemente nenhum espírito de revolta.

Como alguém disse: alguém imagina o Spengler a revoltar-se? E quando entra no Capitólio ou nos palácios do governo, em Brasília, não é para destruir símbolos, como diziam os comentadores e jornalistas na televisão. É para destruir coisas reais, concretas. Nada da simbologia: isso pertence às retóricas românticas de uma certa cultura de direita bem defunta.



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Onde é que tu estavas no 25 de Abril?

(Carmo Afonso, in Público, 23/05/2022)

Convido-vos a ler, ou a reler, o último artigo do António Guerreiro no Público, e partilhado aqui. Eu podia ter começado por aí.


Quem a fazia era o Armando Baptista-Bastos, mas quem a imortalizou foi o Herman José: onde é que estavas no 25 de abril? Assistir às entrevistas originais dá mais piada, e sentido, aos sketches do Herman. Para quem não assistiu: o Baptista-Bastos situava cada conversa, e cada entrevistado, relativamente ao 25 de Abril. Interessava-o com indisfarçável curiosidade se determinado acontecimento tinha sido antes ou depois da revolução e, claro, como se tinha o seu interlocutor posicionado no grande evento.

Nessas entrevistas, era possível observar um rodeio que iria sempre eclodir na célebre pergunta e lá ficávamos a saber que papel tinha assumido aquela pessoa, nem sempre eram pessoas muito conhecidas, no 25 de Abril. O processo era genial e genial foi também o Herman em ter reparado nele e em tê-lo recriado.

Neste processo do Armando​ Baptista-Bastos, que aparentemente é uma simples obsessão esquerdista, está a metáfora, em que muitos se reverão, de politizar a vida e de refletir sobre ela subsumindo-a à política. É um processo grato. Tudo é politizável; o amor, o sexo, a amizade, a guerra e a própria religião.

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Há autores que fizeram o processo inverso e que, em ideias e conceitos políticos, viram a religião. Muitos estabeleceram um paralelismo entre o socialismo e o cristianismo. A associação não é difícil. Schmitt escreveu: “O socialismo pretende dar vida a uma nova religião que, para os homens dos séculos XIX e XX, teve o mesmo significado que o cristianismo para os homens dois mil anos antes.” É uma ideia conhecida.

O socialismo, que não quer nada com a religião, é ele próprio muito parecido com uma. Esta afirmação consegue apoquentar cristãos e socialistas. Todos deveriam pensar melhor isto: está em ambos a ideia de igualdade, de distribuição da riqueza, da crítica aos que dominam e exploram (os ricos). É no socialismo e no cristianismo que encontramos uma ideia de indivíduo onde este poderia ser chamado de semente de alfarroba.

O que distingue uma semente de alfarroba? A pergunta arranca mal formulada. Deveria ser: o que é igual nas sementes de alfarroba? Resposta: o mais importante, o peso. São todas iguais. Independentemente da alfarroba e da alfarrobeira onde nasceram, todas as sementes de alfarroba têm o mesmo peso.

Discute-se o rigor destas afirmações, mas é certo que esta característica das sementes de alfarroba determinou que, durante séculos, tenham sido usadas como unidade de peso. Eram sobretudo usadas para pesar ouro e pedras preciosas. Foram de fundamental importância. Ainda são em alguns mercados. Um quilate tem o peso de uma semente de alfarroba.

Mas de volta aos autores que viram religião onde só parece estar política: Walter Benjamin disse que o capitalismo é uma religião e que é a mais perigosa de todas porque não admite expiação. Para Benjamim, os grandes autores da modernidade – Nietzsche, Marx e Freud – eram no fundo solidários com o que ele chamava de religião do desespero. Nenhum dos três teria apreciado a reflexão.

Eu não sei onde estava o António Guerreiro no 25 de Abril. Eu própria estava ainda na cápsula da inconsciência. Mas o que lhe quero dizer é que, dos autores que cita no seu artigo de sexta-feira, há dois que li e de que gosto. Não tiveram foi o poder de erradicar a ideia, que tenho, de que em tudo o que nos move está presente a luta de classes.

E quero dar um exemplo. Chama-se A Criada Zerlina e é um extraordinário texto de Hermann Broch. Aparentemente uma história de amor. São duas horas de um dos mais bonitos monólogos a que tive oportunidade de assistir. Concluí que o amor de Zerlina pelo casto marido da sua patroa e a hesitação que sentiu entre amá-lo ou ao amante da sua patroa e o decurso intenso, mas invisível, da sua vida à sombra da sua patroa – é pura política. Não é nada um relato de amor; é a história de uma mulher de sentimentos profundos a quem foi negada a possibilidade de ter uma vida, como acontecia a todas as criadas, e que inventou uma. É uma história de classes. Uma história feita de direita e de esquerda.

Na Ucrânia continuam a combater duas direitas. A da Ucrânia – que condiciona a atividade dos partidos de esquerda e que faz regredir os direitos dos trabalhadores, retirando-lhes a fundamental proteção face ao patronato, ao ter passado a considerar que, a estas relações, se aplica a equivalência entre as partes do Direito Civil – e a da Rússia; outro etno-nacionalismo com capitalismo de Estado e criptomoedas. Também parece que lá anda o Diabo. Deus terá adormecido. Diz-se que está em toda a parte. Eu digo que a política é que está.

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A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico


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Para além da esquerda e da direita

(António Guerreiro, in Público, 20/05/2022)

António Guerreiro

Na sua crónica da passada segunda-feira, dia 16 de Maio, neste jornal, Carmo Afonso desenvolveu o argumento de que a esquerda não encontra na guerra da Ucrânia nenhum reduto onde se possa instalar e procurar aí uma identificação política. Porquê? Porque, diz a autora, “é uma guerra entre direitas”. É louvável e até um pouco temerária esta tentativa para introduzir alguma ordem e orientação naquilo que tem sido a desorientação generalizada da esquerda (não me refiro apenas ao Partido Comunista Português), um pouco por todo o lado, na sua reacção a esta guerra e na relação com as duas partes em conflito. Mas utilizar as categorias de esquerda e direita para analisar e representar as coordenadas essenciais deste conflito é inadequado e incapaz de penetrar em zonas para as quais não serve o léxico conceptual da tradição.

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Esquerda e direita constituem, como sabemos, as categorias centrais com que identificamos as posições políticas e representamos as coordenadas essenciais da divisão social e política, na modernidade. Sabemos também que não é fácil, nem sequer possível, estabelecer um critério geral que permita distinguir, ao longo de mais de dois séculos de história povoada por muitas esquerdas e muitas direitas, o que é de esquerda e o que é de direita. Por exemplo, o conceito de Nação foi de esquerda, no Iluminismo, foi de direita, no Romantismo, e foi novamente de esquerda nos movimentos de “libertação nacional” que lutavam pela descolonização. Giddens, com a sua ideia da “terceira via”, entendeu que se devia retirar da lógica dicotómica do esquema esquerda/direita um grande número de questões contemporâneas (tais como os problemas ecológicos e as mutações na estrutura e na ordem da família), mas o que ele achou que escapava ao esquema acabou quase sempre por ser reapropriável e ser mais uma prova da persistência da famigerada dicotomia. E quando alguém se declarou antipolítico ou que não é de direita nem de esquerda, quase sempre isso foi visto como uma tentativa de denegar posições de direita, já que a direita, por princípio e por tradição, está sempre mais do lado da metapolítica (conceito que tem afinidades com o de “metafísica”) do que da política propriamente dita.

Mas há um lugar, nem o da política nem o da antipolítica, que não é apropriável pela dicotomia esquerda/direita. É uma zona que o pensamento político clássico deixa à sombra, é uma margem impensada, uma negatividade que abre um outro horizonte categorial. Esta guerra pertence a esse espaço: nem de esquerda nem de direita, mas de modo nenhum despolitizada. E é isso que a análise de Carmo Afonso não vislumbra. Ela — tal análise — revela que não conhece senão o conceito de política da modernidade e dos seus autores canónicos, que vão de uma concepção teológica da política a uma concepção puramente técnica. As ferramentas conceptuais da autora só lhe permitem concluir que se não existe “um lugar com que a esquerda se possa identificar politicamente”, então é porque tudo se passa entre a direita. Se Carmo Afonso analisasse esta guerra a partir da leitura de autores como Hermann Broch, Elias Canetti, Simone Weil, Bataille e Blanchot, e não a partir dos conceitos políticos que se tornaram um esquema formal de análise, cristalizado, encontraria uma modalidade de olhar o avesso problemático da política que seria de muita utilidade para analisar esta guerra e para fugir aos impasses a que, pelos vistos, ela conduz, sobretudo à esquerda. Cito estes autores não porque tenha chegado a eles, pelos meus próprios meios, quando percebi que de pouco serviam as categorias de direita e de esquerda para analisar tudo o que envolve esta guerra (as suas origens, as suas motivações, mas sobretudo as reacções que desencadeou nos diversos sectores políticos), mas porque são eles que estão na base da categoria do “impolítico”, a que o bem conhecido e reconhecido filósofo italiano Roberto Esposito dedicou um livro que já se tornou um clássico. O livro chama-se Categorie dell’ impolítico (1988).

O tema do impolítico (que não deve ser confundido com o antipolítico ou o apolítico) nasce da consciência de que as categorias do léxico político contemporâneo estão esgotadas ou, pelo menos, não iluminam o avesso, as zonas de sombra, a negatividade, o irrepresentável, as margens, os vazios. E este é o espaço de muita da política contemporânea. E desta guerra.



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