Lampedusa, o destino da Europa e do mundo

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso,22/09/2023)

Miguel Sousa Tavares

Lampedusa é uma pequena ilha de Itália, entre África, a Sicília e o continente italiano. Tem 7 mil habitantes e em apenas três dias da semana passada recebeu 10 mil imigrantes vindos de África e com origem maioritária em portos da Tunísia. Aparentemente, o acordo que o Governo de coligação de extrema-direita, chefiado pela primeira-ministra Giorgia Meloni, estabeleceu com o Governo tunisino — dinheiro contra retenção de imigrantes — não está a funcionar como ela esperava. Nos dois anos em que o seu parceiro de coligação e de Governo e líder da Liga, Matteo Salvini, foi ministro do Interior num anterior Governo, ele chegou a mobilizar a Marinha de Guerra contra as frágeis embarcações dos imigrantes: milhares morreram afogados na travessia do Mediterrâneo e apenas 7 mil num ano e 8 mil noutro conseguiram atingir a costa italiana. Mas desta vez, e contra todas as expectativas, Meloni recusou voltar a dar a Salvini a pasta do Interior e adoptou uma política muito mais branda e humana para com os imigrantes. Resultado: só este ano e até agora entraram em Itália 127 mil desesperados do Norte de África e do Sahel, vítimas de guerras ou de ditaduras alguns, mas vítimas sobretudo da fome e das alterações climáticas a maioria, todos em busca de uma réstia de esperança numa vida decente. Lampedusa recebeu os seus resgatados com um insuperável humanismo e generosidade, como outras partes de Itália e da Sicília o fizeram, e também a Grécia, mas de forma bem menos pacífica e generosa. Tudo perante o silêncio e a indiferença da Europa. Mas há sempre um limite suportável, e a população de Lampedusa chegou agora ao seu, perante o anúncio de que as autoridades se preparam para estabelecer novo acampamento permanente na ilha para acolher mais imigrantes. Como escreveu Helena Matos no “Observador”, o que diria a população de Porto Santo se tivesse de acolher mais imigrantes do que os próprios residentes?

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

No domingo passado, Meloni levou Ursula von der Leyen a Lampedusa para que ela visse com os próprios olhos aquilo que a Europa não quer ver. E, enquanto elas se reuniam em Lampedusa, mais a norte, em Itália, Salvini recebia Marine Le Pen e, juntos, os dois expoentes máximos da extrema-direita xenófoba e anti-imigração europeia combinavam uma possível lista comum às europeias do ano que vem e uma estratégia comum do tipo “regresso às canhoneiras” em que Salvini se distinguiu no passado. Em Lampedusa, Von der Leyen apresentou um vago “projecto europeu” em 10 pontos, compreendendo patrulhas navais euro­peias, um corredor para imigração legal (qual?) e repatriamento da ilegal (para onde?), além da solene declaração de que será a Europa, e não os traficantes de seres humanos, a decidir a sua política de imigração. Uma bela frase que esbarra, contudo, na realidade dos factos. E a realidade é aquilo que, dias depois, Meloni disse na Assembleia-Geral da ONU: “A Itália não pode e não quer continuar a ser o depósito de imigrantes da Europa”, apenas porque é o país cujas costas ficam mais próximas das de África. Longe desta malfadada geo­grafia, Portugal, pela voz da ministra Ana Catarina Mendes, aparecia nas páginas do “La Repubblica” de sábado passado como um exemplo a seguir. “Devido à nossa baixa natalidade”, explicava a ministra, “estamos abertos a receber imigrantes para preencher as nossas necessidades de trabalho.” Eles são úteis e bem-vindos, acrescentou, e temos leis para os acolher decentemente (veja-se Odemira e não só…). Todavia, quando perguntada o que faríamos quando as necessidades de imigrantes estivessem preenchidas, a ministra preferiu divagar e esquecer a pergunta. Outros — a Polónia, a Hungria, a Eslováquia — são frontais e sem subterfúgios: não querem receber imigrantes nenhuns e não têm nada a ver com o assunto. A Polónia, um país vagamente democrático e sem qualquer espírito europeu, lançou-se mesmo na construção de um muro de fronteira contra a imigração, como fez Trump na fronteira com o México. Bruxelas chegou a ameaçar a Polónia com o corte de dinheiros europeus — uma represália lógica e justa —, mas recuou entretanto, uma vez que a Polónia se tornou um dos maiores apoiantes da Ucrânia, e essa é a única solidariedade europeia que hoje conta.

Na recente cimeira do G20 falou-se muito da Ucrânia, e Zelensky lá teve direito ao seu tempo reservado para, como sempre, pedir mais armas para aquilo a que o secretário-geral da NATO, julgo que entusiasmado, avisou que irá ser ainda “uma guerra prolongada”.

No G20 falou-se muito da necessidade de continuar a guerra, mas não se falou nada da necessidade de estabelecer um diálogo para a paz. Falou-se muito do aumento das despesas militares e de continuar a armar a Ucrânia, mas não se falou nada de dinheiro para combater as secas e a fome no Terceiro Mundo. Falou-se da história mal contada da “chantagem alimentar russa”, mas ninguém disse, como Guterres, que “o mundo precisa dos cereais ucranianos e precisa dos alimentos e fertilizantes russos” — e que os fornecimentos de uns estão ligados aos outros.

Não se falou das alterações climáticas nem das tragédias ou dos fluxos migratórios provocados por elas. E ninguém lembrou, como Guterres, que à volta daquela mesa estavam reunidos países responsáveis por 80% dos gases com efeitos de estufa e que era de estranhar que nenhum dos líderes mundiais ali presentes “sentisse o calor”. No G20, como nos discursos dos grandes do mundo na ONU, o que agora verdadeiramente os preocupa é o poder crescente dos BRICS e o seu futuro alargamento a países do Médio Oriente: o petróleo, a eterna luta pelo petróleo, e a irritação de verem países tradicionalmente abertos à boa e velha “ordem liberal”, como o Brasil e a Índia, “a fazerem agora o jogo de Putin” — isto é, a defenderem que se comece a procurar a paz em lugar de continuar a guerra sem fim à vista. Definitivamente, o mundo já não é o que era, e ao Ocidente já não resta mais do que entrincheirar-se atrás de muros e bombardear os bárbaros do Leste e do Sul, que nos assaltam sem razão. Stoltenberg e a sua NATO defenderão o Leste, Salvini e Le Pen o Sul, a VII Esquadra americana o Extremo Orien­te, e alguns intelectuais escreverão que, afinal, a história continua. Como se não o soubéssemos. Lampedusa é apenas uma minúscula ilha no mar da indiferença em que naufragamos.

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2 Mesmo neste tempo da internet e das notícias constantes online, gosto de manter um velho hábito de, quando ausente da terrinha, deixar comprados, para depois ler, os jornais da minha ausência. Fiquei assim a saber que, se as novidades não foram muitas, foram, pelo menos, divertidas. Marcelo andou a comentar decotes no Canadá, enquanto alguns intelectuais da Mui Nobre, Leal e Sempre Invicta se escandalizaram ao retardador com a escultura de uma jovem nua abraçada a um velho Camilo. (Larga a peça, Eça!, ou ainda te cortam a cabeça em Lisboa.) Cavaco lançou a sua muito publicitada “Arte de Governar”, rodeado de “ajudantes”, numa coisa dantes chamada Grémio Literário e hoje mais conhecida por Clube Literário do PSD (já gastei os meus 17,75 euros para matar as saudades, não a curiosidade). E, segundo as melhores opiniões, as europeias do ano que vem serão absolutamente determinantes em Portugal para decidir: a) se Montenegro continua à frente do PSD; b) se Costa resiste ou avança Pedro Nuno; c) se Marcelo pode finalmente dissolver tudo à cacetada; d) se o Chega cresce ou o CDS renasce. O que tem isto a ver com a Europa — com a crise migratória, com as alterações climáticas, com a continuação da guerra, com o alargamento a Leste e com o fim dos nossos queridos dinheirinhos europeus? Pois, nada. Mas quem disse que as europeias servem para discutir a Europa?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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Chuva miudinha

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso,08/09/2023)

Miguel Sousa Tavares

E

m alguns lugares restritos no mapa choveu granizo, mas, de resto e de norte a sul, os primeiros dias de Setembro trouxeram apenas uma chuva miudinha aos campos, à disposição dos espíritos e à vida política. Desde as areias de Monte Gordo, um mês antes, Marcelo foi alimentando as expectativas da imprensa sem notícias com a segunda volta do Conselho de Estado, marcada para a primeira semana de Setembro. Aí, avisou ele, teria ocasião de proferir a intervenção final — aliás, já escrita, houvesse o que houvesse —, porém dando antes generosamente o direito a António Costa de se defender da previsível catanada. Mas Costa, repousado das férias, optou por aquilo que qualquer estratego aconselharia: se a sentença já estava dada, mais valia abdicar da defesa. E parece que Marcelo ficou assim meio sem chão, desarmado pelo silêncio da vítima e desarmado pelos avisos que, concertado ou não com o primeiro-ministro, o governador do Banco de Portugal lançara para cima da mesa dois dias antes. Que sentido faria voltar à carga com o caso TAP e o caso Galamba, voltar a falar da “folga” orçamental ou da “justa luta” dos professores quando Mário Centeno alertava para uma possível recessão no horizonte próximo importada de fora, na miragem da “folga”, que afinal não é assim tanta, e na necessidade de continuar a reduzir a dívida para “não sermos outra vez apanhados desprevenidos”? Quando na véspera a Rússia e a Arábia Saudita tinham mais uma vez feito subir os preços do petróleo e a guerra da Ucrânia, cuja continuação Marcelo tão entusiasticamente apoiara na sua visita a Kiev e que é razão primeira para todos os problemas económicos que a Europa e Portugal enfrentam, promete assim eternizar-se sem fim à vista e com o aplauso geral de quem nos governa?

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Não, não há almoços grátis. Não há sol na eira e chuva no nabal. Não há guerras que sirvam aos povos e não aproveitem aos vendedores de armas, de alimentos e de energia. Não há PRR que nos salve, não há dinheiro que chegue para fazer funcionar uma economia paralisada, não há planeta que resista a tamanha criminosa estupidez.

De que mais resta falar se todos os dias somos confrontados com imagens apocalípticas de seca ou inundações até em lugares inimagináveis há uns anos, de incêndios imparáveis ou icebergues a desfazerem-se no oceano, e os líderes que elegemos só pensam em mais armas, mais munições, mais aviões para a guerra da Ucrânia? Vamos entreter-nos a falar do beijo de Rubiales em Espanha, da proibição da abaya em França ou da heróica revolta do adjunto do ministro Galamba?

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Temos então, aqui, a “birra”, ou o “amuo”, de António Costa no Conselho de Estado a dar origem àquilo que Luís Montenegro, sem mais, classificou como “a mais grave crise institucional” de que ele tem memória. Ora cá temos, assim, uma crise institucional para nos animar e desviar as atenções nesta rentrée de chuva miudinha. Mas como não há milagres, o essencial permanece. E o essencial são as escolhas, como disse há tempos Marcelo, antes de a seguir começar a desdizer-se: governar é escolher. Por exemplo: pagamos os tais 6 anos, 6 meses e 23 dias aos professores, acumulando mais da despesa permanente de que fala Mário Centeno, ou investimos o dinheiro na construção de habitação pública para os jovens e a classe média? Investimos nas Forças Armadas ou na Saúde? Em comboios do século XXI que tirem os carros da estrada ou em radares para multar os carros na estrada? Agravamos a despesa pública com mais apoios e subsídios ou desagravamos a sério os impostos e apostamos na criação de riqueza pelos privados?

Ou, como até aqui, continuamos a apostar que há dinheiro para tudo — para satisfazer todos os lobbys, todos os grupos de interesses e todos os eleitorados — e não é preciso fazer escolhas?

2 Com o indisfarçável entusiasmo que sempre põe nestas coisas “disruptivas”, o “Público” noti­ciou com grande destaque que “a Bienal de São Paulo conta outra história de Fernão de Magalhães”. Fiquei curioso: o que levaria uma exposição de arte a desvendar uma outra versão da extraordinária história desse navegador do século XVI para além do facto de Magalhães reunir em si características hoje quase interditas nos círculos artísticos — ser homem, branco, ao que se sabe heterossexual e, pior ainda, português e logo de Quinhentos? E que nova versão seria essa digna de merecer duas páginas num jornal de referência, chamada de primeira página e todo esse destaque na Bienal de S. Paulo? Acaso teriam descoberto que ele, afinal, não imaginou e comandou uma expedição de circum-navegação que deu a volta ao mundo, provando que a Terra era redonda, que chegou lá abaixo à Terra do Fogo e descobriu a passagem do Atlântico para o Pacífico, depois imortalizada com o seu nome, que foi o primeiro navegador a cruzar todo o Pacífico, que assim baptizou, e que morreu em combate em Mactan, nas Filipinas, aos 41 anos, não podendo fazer parte dos 18 sobreviventes que, três anos depois da partida, regressaram a Espanha, completando, em 1522, uma das mais fantásticas aventuras humanas? Que teria a Bienal descoberto de novo que tanto entusiasmou o “Público”? Pois parece que descobriram que Magalhães não foi morto em combate pelo chefe tribal da ilha de Mactan, Lapu-Lapu, mas sim pela sua mulher — que assim, por proposta do cineasta/escultor filipino Ti­diak Kahimit (a quem a humanidade tanto deve), é justo passar a ser ela a heroína da história, pois que matou o homem que se atreveu a dar a volta ao mundo numa casca de noz e ir incomodar os filipinos no seu exaltante remanso. E, então, a Bienal dedica à heroína uma escultura à entrada, da autoria do dito cineasta/escultor, e antes de se passar por um “espaço multimédia e que é também — explica o “Público” — um espaço de encontro e discussão”, baptizado com o nome arrebatador de “Sauna Lésbica”. E tudo, todavia, acontecendo num edifício desenhado por um dos mais extraordinários artistas do nosso tempo, Oscar Niemeyer — que, fosse ainda vivo, não teria direito a convite, pois que, tal como Magalhães, sofria de três males hoje sem remissão: ser homem, branco e heterossexual. E tudo parte integrante do objectivo central da Bienal, que é, ensina-nos ainda o “Público”, o de “coreografar um novo pensamento capaz de combater a negação dos saberes não hegemónicos”. Razão pela qual certamente nós, contribuintes portugueses, estamos lá representados por dois artistas de raça negra, cujo nome vocês jamais ouviram e escolhidos pela nossa curadora, Grada Kilomba. A mesma que há uns tempos protagonizou uma feroz discussão — acompanhada ao pormenor pelo “Público” —, envolvendo todos os crocodilos excelentíssimos que zelam pela nossa cultura, a qual consistia em saber quem merecia representar Portugal na Bienal de Veneza: se uma mulher negra ou um branco que se apresentava como o primeiro artista sem sexo definido. Excluin­do a primeira, estávamos perante um caso de machismo e racismo; excluindo o segundo, estávamos perante um caso de atentado aos direitos LGBTI. Após fascinantes e exaltadas discussões, e sem que jamais o jornal ou outrem nos tivesse mostrado qualquer coisa da obra de ambos os candidatos, ganhou o segundo. Mas, como se vê, neste pequeno mundo fechado nunca se perde de vez.

Agora, porque têm de meter o Fernão de Magalhães ao barulho, mais de 500 anos sobre a sua morte, é o que me ultrapassa. Confesso que já não me resta paciência alguma para este masoquismo diletante com que nos comprazemos a denegrir uma História de que qualquer outro povo se orgulharia todos os dias. Sim, eu conheço a saga da escravatura e do colonialismo sem freio, e tudo o mais, e tenho sobre isso o mesmo juízo implacável que qualquer pessoa informada tem de ter. Mas também conheço a história dos outros povos à época — colonizadores e colonizados, brancos, negros, amarelos e índios, dos que chegavam e dos que viam chegar — e das barbaridades que todos cometiam. Nada disso me impede de pasmar de admiração quando vejo os sinais no mundo da passagem desse pequeno povo, de escassa gente e desmedida coragem, que, tendo apenas o mar pela frente, foi por ele adentro — para fazer muitas coisas boas e más, mas também para saber o que havia para além do conhecido, descobrindo ilhas e estreitos, navegando oceanos virgens e inventando os Brasis que hoje conhecemos.

Será talvez um argumento infantil, mas quando vejo esta gente confundir alhos com bugalhos e querer julgar a História pelos olhos de hoje, vendo apenas o mal e não também o fantástico, dá-me vontade de lhes perguntar porque não experimentam embarcar numa coisa parecida com aquilo a que então chamavam naus e tentarem chegar vivos às Berlengas.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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Truanismo — o regime de falsificação da história e dos valores

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 27/08/2023)

A propósito da atuação de Marcelo Rebelo de Sousa na presidência da República, António Barreto escreveu na sua coluna no Público (26/08/23) — Grande angular: «O regime está mudar». “O Presidente vetou tudo. Não por motivos constitucionais, jurídicos e constitucionais, mas por razões políticas e programáticas.” (…) “Além do tradicional, o Presidente parece agora desempenhar vários papéis. O de fiscal da ação política, provedor do cidadão, colegislador, responsável pelas políticas públicas.” (…) “ Estamos a assistir a uma mudança de regime” E exalta como exemplo da virtuosidade da ação de Marcelo Rebelo de Sousa e da mudança de regime a patética visita a Kiev para marcar o ponto: “ O Presidente da República desempenhou na Ucrânia, com garbo (hirto a marchar com os braços colados ao corpo em direção ao mural de Bucha) e competência (sic), cultural (sic — deve ter sido quando falou ucraniano) e afetuosamente (é um distribuidor de afetos ambulante, sabe-se), com brilho e distinção” (é uma nota de um examinador amigo).

A António Barreto salta a boca para a verdade e para a contradição quando afirma (para fazer a quadratura do círculo): “Ultrapassou (sic) as tradições de cerimónia. Dentro das margens estabelecidas pela Constituição (definidas por Barreto), foi um verdadeiro Chefe de Estado (uma figura não contemplada na Constituição) e chefe da política externa” (outro pé fora da Constituição).

As contradições no raciocínio de A Barreto são antigas e evidentes. É evidente que Marcelo Rebelo de Sousa subverte a natureza do regime que foi votado pelos portugueses e que está fixado na Constituição. A primeira conclusão a tirar é a de que estamos perante um abuso de poder exercido por quem se arroga do exercício de um cargo em seu proveito e à margem da lei. A António Barreto não interessa referir o pormenor de que a mudança de regime que ele diz estar em curso coloca a velha e decisiva questão de todos os regimes de saber quem julga os juízes! Nos Estados Unidos os presidentes vão a tribunal!

Estes casos de abuso de poder são tão mais perversos e de chocante desonestidade porquanto são praticados pelos que foram eleitos para respeitar os limites dos outros poderes, o que implica serem particularmente exigentes consigo e com os seus. Não é, manifestamente o caso de Marcelo Rebelo de Sousa, nem do seu apoiante António Barreto, que interpretam a lei segundo o seu interesse, sem limites. Que se colocam permanentemente na posição do soberano atrevido e do truão irresponsável.

A importância e o foco da mudança de regime que o artigo de António Barreto evoca no título não reside, contudo, apenas na corrupção constitucional e no abuso de poder de Marcelo Rebelo de Sousa que, sendo graves, são uma consequência de uma prática que se tem vindo a impor nas chamadas democracias liberais do Ocidente, cada vez menos democracias, menos liberais e mais totalitárias, iliberais e populistas.

Regimes que têm sido definidos, à falta de melhor, por democracias iliberais — em que os cidadãos votam para uma assembleia que os devia representar, mas em que o poder de facto reside noutras instâncias, capturado por “presidentes”, presidentes de estados, de corporações financeiras e da indústria, de instituições, por manipuladores de opinião, civis e religiosos.

Marcelo Rebelo de Sousa é mais um na linha desse tipo de políticos populistas que incluem personagens como Reagan, como Bush jr, Obama, Blair, Boris Johnson, como João Paulo II ou o bispo da IURD, como Trump, ou, recentemente, como Ursula Von Den Leyen e Zelenski.

É o surgimento destas novas personagens como figuras de efetivo e real poder que carateriza os regimes políticos no espaço civilizacional que reuniu a tradição e a filosofia grega, inglesa e francesa que eram, sublinhe-se, regimes aristocráticos, em que o soberano (mesmo que formalmente presidente de uma república) se deificava, exercia o seu magistério de forma distante, raramente sujava as mãos e se expressava através de vassalos, o mais eficaz dos quais era o truão. O truão, uma palavra de origem provençal, era sustentado pelos reis, pago para fazer passar com zombarias e bobagens, sem tumulto e de forma indolor, as ações mais subtis e perversas do exercício do poder real.

Os novos poderes, os novos regimes a que A. Barreto associa Marcelo Rebelo de Sousa, têm como novidade essencial a tomada do poder pelos truões. Os truões deixaram de ter um soberano para quem trabalhavam e passaram a ter eles o poder. Um processo que já havia sido previsto por George Orwell em O Triunfo dos Porcos e que tem levado vários atores ao poder real, Reagan, Trump, Johnson, Zelenski. Marcelo Rebelo de Sousa era, recorde-se, um popular comentador político nas televisões!

O truanismo de Marcelo Rebelo de Sousa manifestou-se em pelos menos três casos exemplares. O primeiro na triste viagem de salamaleques a Londres para celebrar o Tratado de Aliança Luso-Britânico. O tratado é tudo menos merecedor de hinos e cortesias de dobra da espinha por parte de Portugal. O tratado serviu os interesses dos ingleses, que utilizaram Portugal continental como base de combate a Napoleão e passaram a ter direito ao comércio do Brasil. O tratado transformou (ou oficializou) Portugal numa colónia inglesa, o que não é motivo para os ademanes de Marcelo Rebelo de Sousa perante uma outra figura de decoração, Carlos III, ademanes, vénias e sorrisos que transmitem a mensagem que Portugal e os portugueses se sentem muito bem, felizes, como fiéis servidores e vassalos de suas majestades britanicas. Marcelo Rebelo de Sousa pode ter o dorso moldado para servir de montada, mas não essa atitude não consta do cartão do cidadão.

A segunda exibição truanesca ocorreu com a visita do Papa, durante a Jornada da Juventude: ver um Presidente a fazer de sacristão não é um bom estímulo para nós, enquanto portugueses, nos interrogarmos sobre o papel das várias instituições na nossa sociedade. A beatice de Marcelo pode ser-lhe confortável, mas revela falta de respeito pela responsabilidade individual dos portugueses que decidem por si, segundo o seu livre arbítrio. Os que não pertencem a um rebanho e dispensam pastores não se revêm nestas atitudes.

Por fim, esta risível (talvez seja o melhor qualificativo) visita a Kiev. Em termos políticos é uma prova de vassalagem, de truanismo: o presidente de Portugal está com os Estados Unidos, como Durão Barroso já estivera com Bush na invasão do Iraque e Santos Silva havia estado com Trump a apoiar Guiadó na Venezuela. A visita está nessa linha de vassalagem de um truão. E, não satisfeito com essa tarefa, Marcelo Rebelo de Sousa atribui o colar da Ordem da Liberdade a Zelenski! O qual, suprema ironia, recusa porque é modesto e não quer ficar como único responsável pelo desastre que se prevê venha a ser o futuro da Ucrânia. Nem com a glória, na versão otimista. Por fim, declara que as suas palavras e atitudes comprometem Portugal e os portugueses no seu todo e para sempre! Assim nega o presidente que exerce a função num regime de liberdade, logo de pluralidade, o direito à diferença. A mudança de regime detetada por António Barreto não parece trazer nem liberdade, nem responsabilidade, nem senso das realidades, nem respeito pelos direitos dos cidadãos.

Mas o truanismo, a farsa da atribuição da Ordem da Liberdade a Zelenski nem assenta na personagem Zelenski, nem no processo que o levou ao poder, e que ali o mantém, nem na natureza do regime ucraniano, mas sim na corrupção feita por Marcelo Rebelo de Sousa do conceito de Liberdade que a atribuição (falhada ou não) da Ordem significa a vários títulos. O primeiro dos quais é o presidente da República Portuguesa, professor doutor, constitucionalista e político de relevo desde a mais tenra idade, confundir Liberdade — um valor ético — com Independência — um valor político.

Na Ucrânia o regime no poder luta pelo que entende ser a Independência política e pelos interesses a ela associada. Não luta pela Liberdade. O regime ucraniano e os seus dirigentes não clamam por liberdade (que abafaram): clamam por integração em instituições multinacionais que lhe retiram liberdade sob a forma de parcelas de soberania. Em última estância, o presidente português ofende os ucranianos (não colocando como exigência da perda de soberania que eles se pronunciem livremente) e confunde os portugueses com o abuso da entrega da Ordem da Liberdade a quem pede sujeição, mesmo com o pretexto de se defender de uma invasão, esquecendo o que fez ou não fez para a provocar ou para a evitar. As causas da guerra são não temas para os fiéis que cumprem o seu dever de presença.

A contradição final: Quem impede que a Ucrânia e Zelenski entrem para NATO e para a União Europeia não é a Rússia, são a NATO e a União Europeia que negam a liberdade da Ucrânia, não a recebendo. Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de um Estado membro da NATO e da U E, outorga a Ordem da Liberdade a um Estado a que os seus parceiros negam a liberdade de aderir a esses dois esteios da Liberdade! E depois ri-se tira uma selfie. Em que gaveta, caixote ou armário ucraniano estará metido neste momento o colar da Ordem da Liberdade?

O truanismo segue impante e sem se deter com ninharias.


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