Carta a um amigo meu e também destinada aos meus colegas de economia de outrora… 

(Por Júlio Marques Mota, in a Viagem dos Argonautas, 19/02/2023)

Meu caro Mário

Brindou-me amável e ironicamente com alguns adjetivos curiosos, mas os meus amigos, e os que o não são também, já me adjetivaram de tantas formas que as suas palavras de ontem estavam simplesmente carregadas de adjetivos para mim já habituais. Mas há uma pergunta sua e uma respostam minha que não são banais….


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A Viagem dos ArgonautasCarta a um amigo meu e também destinada aos meus colegas de economia de outrora… e três olhares sobre países neoliberais de referência. Por Júlio Marques Mota


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Como se faz um preço? Com lucros e salários

(Raquel Varela, in Facebook 15/09/2022)

Sem surpresa, quando disse aqui que os preços são exclusivamente fixados por lucros ou salários, muitos perguntaram “então e as matérias-primas, a energia, o mercado…a oferta e a procura?”. Alguns, com a ignorância atrevida dos tempos que correm, lembraram-se de dizer que eu não era economista (a certificação do “especialista”). Aqui fica a explicação de um economista Adriano Zilhão, na minha página, que publico por ser didática e impecável.

E deixo um conselho: eu não sou economista, podia ser e nada saber. Sou professora de história e historiadora e também professora de história económica e social. Estive um ano da minha vida dedicada a estudar a teoria do valor trabalho e as crises capitalistas porque, em 2008, e escrevi e lecionei muito sobre elas, compreendi que não podia deixar de o fazer. São as primeiras páginas, muito difíceis do Capital de Marx. Estudam-se, não se leem. Sem conhecer a teoria do valor marxista, hoje, arrisco dizer não se compreendem as sociedades, seja em que disciplina for. Mas, agora o que é relevante: eu podia ser economista e não perceber nada de economia, o que aliás se viu nos comentários onde tantos economistas perguntavam pela “lei da oferta e da procura”, algo que só fixa preços na imaginação deles. Também podia ser operária, física e cozinheira e conhecer bem a teoria do valor-trabalho. O que impressiona nos comentários, e que nos devia fazer refletir, é como tanta gente formada em economia, repete as mesmas vacuidades do governo a explicar que nada pode fazer face à inflação.

Um mergulho nos currículos das escolas de economia, que varreram a ciência social e a transformaram em matemática técnica ou comunicação em business devia há muito ter alertado tanta gente sobre o que (não) aprendem de economia em alguns cursos de economia.

Aliás, há dias perguntei a um grupo de jovens de 18 anos, com média de 18 em economia no 12º ano, todos a caminho de escolas de economia se conheciam Marx e, tirando uma, os outros olharam com espanto, nunca ouviram tal nome. Suspeito que assim continuarão, a achar que a lei da oferta e da procura fixa preços. Podem fazer como eu, também ninguém me ensinou Marx, enfiei a cabeça no livro anos para não fazer a chamada “figura de urso” ou, como se diz em business, ou zeinalbavês, bear looking. Agora leiam e aprendam.

Dando a palavra a Adriano Zilhão:

Pode-se deduzir do comentário de J. P. Costa que a sua formação é, “de todo”, económica. E, como qualquer um que estudou a economia escolástica e/ou nela crê, J. P. C. acredita que o “mercado”, local em que se “formam” preços, opera por uma espécie de magia.

Mas olhe-se melhor para a magia. Olhe-se para o mercado do petróleo (ou do gás). O que aconteceu, recentemente? Perante a guerra, sobretudo perante as sanções, passou a ser provável que a quantidade de petróleo oferecida no mercado baixasse muito, pelo menos no curto prazo.

Consequentemente, os grandes compradores de petróleo precipitaram-se para comprar o máximo possível, para poderem revendê-lo durante o máximo de tempo possível (antevendo, por outro lado, que os preços continuariam a subir, e eles fariam lucros chorudos na revenda).

Deu-se, assim, aquilo que em economês, se chama um desequilíbrio entre oferta e procura: o preço subiu, em consequência.

Mas o mercado não “fez” subir coisa nenhuma. O que aconteceu foi que os grandes vendedores viram que, se passassem a vender mais caro, continuariam a escoar todo o produto. Ou seja, disseram aos compradores: querem comprar? A gente vende, mas agora só vendemos a quem der (ainda) mais. Podes, compras; não podes, ficas de mãos a abanar, que há mais quem compre.

O preço não “ficou” magicamente mais alto, os vendedores aumentaram-no. Ora, e os custos, salariais e outros, dos vendedores de petróleo? Ficaram na mesma.

À diferença entre preço e custo (salarial e outro) chama-se lucro. Portanto, a subida de preços provocou uma subida dos lucros dos vendedores.

A economia é uma coisa complexa? É. Empresas têm custos de todo o tipo: os salários que pagam diretamente e muitas outras coisas, matérias-primas, produtos intermédios, serviços de transporte, financeiros, amortizações e por aí fora (deixemos de lado os impostos, que incidem sobre salários e lucros a jusante). Mas as matérias-primas e tudo o mais foram extraídos ou produzidos por outras empresas, que para o fazer também usaram trabalho: portanto, pagaram salários. E assim sucessivamente.

Se se “descascar” a produção de bens e serviços ao longo de todas as cadeias de produção entrecruzadas, tudo se reduz a trabalho humano.

E reduz-se a duas categorias de trabalho humano: a parte do produto do trabalho dos trabalhadores que lhes é paga (os salários, que são o preço pago pelo patrão para alugar a força de trabalho pelo tempo convencionado); e o trabalho dos trabalhadores que não lhes é pago (o lucro, o valor restante, a diferença que, depois de vendidas as mercadorias/serviços, fica no bolso do patrão).

Por essa razão, mesmo nas escolas de economia, há uma equivalência entre produto e rendimento: a soma do valor de todo o produto é igual à soma do valor de todos os salários e lucros (e suas subdivisões).

Em conclusão: Raquel Varela tem razão. Todo o valor criado se reduz a salários e lucros, a soma dos preços todos é igual à soma de todos os salários e lucros. O “mercado” (incluindo o de trabalho) é o “local” em que se medem forças, onde se vê quem consegue torcer o braço de quem.

É menos mágico do que parece.


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Unicórnios são reais

(Por Batiushka, in Resistir, 06/09/2022)

Os unicórnios são reais ou isto deve ser a verdade, assim me dizem os media ocidentais.

Um frio de outono desce sobre todos os países europeus, embora em cada país de maneira diferente.

A Alemanha e a Itália, dependentes do gás, estão desesperadas pelo gás russo. Não são apenas as casas, mas fábricas inteiras que enfrentam fecho iminente em indústrias intensivas em energia. O resultado disso será o desemprego em massa. E por “massa”, quero dizer 20% ou mais.

Na França há uma rejeição popular ao presidente Macron, que disse ao seu povo que eles (ou seja, não ele) devem sofrer para que a Ucrânia possa “ganhar”. Setembro é o primeiro mês do período anual de greves em França. Os franceses não gostam de passar frio. Aguarde-se por algumas notícias em manchete.

Na Letónia, a minoria russa teme pelo seu futuro, mas todos os outros também temem. O aquecimento não será uma opção neste inverno. Com pensões de pouco mais de 100 euros por mês, muitos pensionistas simplesmente vão morrer de frio.

Da Eslováquia recebemos o seguinte:

“Obrigado pelo seu email. Só para você ter uma ideia dos atuais custos de produção aqui na Eslováquia e para ser brutalmente honesto para todo o mundo, pagámos no ano passado 85 000 euros pela eletricidade, este ano vai ser à volta de 500 000 euros. A partir de 1º de janeiro de 2023, serão 1,2 milhões de euros, na melhor das hipóteses.
Isto é apenas a eletricidade, sem falar no gás, no aumento das matérias-primas, salários e todos os outros custos de produção. É difícil dizer isto: é impossível reduzir os custos e cada cliente nosso tem que aceitá-lo ou não. Surpreendentemente nunca estivemos tão ocupados! Cortar margens baixas é naturalmente difícil, mas pelo menos você tem margens. Nós simplesmente não temos nada onde reduzir”.

Na Moldávia, a crise é profunda. Como na Letónia e na Lituânia, quase metade da população fugiu dos seus países após serem saqueados pela UE (embora oficialmente a Moldávia nem sequer pertença à UE!). Anteriormente, os remédios vinham da Ucrânia. Isto é agora é impossível, eles têm de usar remédios vindos da Alemanha. Só que custam dez vezes mais. Simplesmente, se alguém está muito doente e não tem o dinheiro, este ano vai morrer.

Na Roménia, que perdeu um quarto de sua população para a emigração após o grande saqueio da UE, e onde um salário de 600 euros por mês é considerado muito bom, os preços dos alimentos são os mesmos da Europa Ocidental, onde os salários médios são quatro a cinco vezes maiores, e o gasóleo custa ainda mais do que em outros lugares.

Na Irlanda, restaurantes estão a fechar porque não podem pagar as suas contas de energia que aumentaram 1000% (sim, mil por cento).

Em Londres, capital do Império Brutish (sic), o gauleiter Johnson finalmente admitiu que, “as famílias britânicas terão que suportar o aumento das contas de energia como parte dos esforços para derrotar Vladimir Putin… as sanções económicas impostas à Rússia contribuíram para o aumento dos preços globais do gás que aumentaram as contas das famílias”. Analistas esperam que o limite de preço de energia do Reino Unido por família suba de uma fatura já extremamente alta de £ 1 971, para £ 3 554 por ano em outubro e para um completamente inacessível £ 6 089 em abril de 2023. Um boicote ao pagamento de faturas está ganhando força. Esperem-se tumultos e saques a supermercados pelos famintos.

Os britânicos escolheram suportar isso? Não. Os britânicos imploraram sofrer para poderem derrotar Putin numa briga local sobre um país que a maioria deles nunca tinha ouvido falar até fevereiro passado? Não. Os britânicos recusaram-se a pagar pelo abundante e barato petróleo e gás russo em rublos? Não. Eles foram consultados sobre a escolha do novo primeiro-ministro? Não. Lá se foi a “mãe de todos os parlamentos”…

No Reino Unido controlado pelos oligarcas, agora há apelos para que as empresas de serviços públicos privatizadas pela Thatcher, com seus enormes lucros, pagamentos generosos de dividendos aos acionistas, infraestruturas no limite, falta de investimento e ausência de regulamentação governamental, sejam renacionalizadas. Alguns até comentaram que talvez o “livre mercado” realmente signifique a lei da selva e que “a privatização simplesmente significou Thatcher vender ativos públicos ao desbarato para seus comparsas e apoiantes capitalistas”. Bem, com quarenta anos de atraso, mas algumas pessoas finalmente receberam a mensagem.

Basta. Não era isto que eu queria contar.

Na última semana de agosto, saí da França e fui para Wiesbaden. Lá visitei a magnífica igreja russa, construída no século anterior. Dando a volta no cemitério com os túmulos de velhos aristocratas com seus símbolos maçónicos em suas lápides (agora você sabe por que a Revolução Russa ocorreu), vi a sepultura relativamente nova que eu procurava.

Este era o túmulo de um casal de velhos encantadores, que eu conhecia há muito tempo. Não revelarei seus nomes, só para dizer que a história deles daria um filme, só que tão romântico que você não acreditaria. No entanto, se você já passou dos quarenta anos, já deveria ter percebido que a vida real é muito, muito mais estranha e muito, muito mais incrível do que qualquer ficção. Tudo o que vou dizer é que ele nasceu em São Petersburgo em 1916, foi levado por seus pais em fuga para a Finlândia depois que o resto da família foi baleado, que em 1943 ele havia se tornado monge e padre na Alemanha nazista, e que no final de 1946 a família havia fugido da Berlim arruinada para a Argentina peronista como refugiados ortodoxos russos. E lá, em 1948, ele conheceu uma garota de rua argentina desesperadamente pobre que tinha nascido na Itália. Foi amor à primeira vista. Acho que nunca conheci um casal tão dedicado e exemplar ou jamais conhecerei. Eles morreram em idade muito avançada a poucas horas um do outro.

Basta. Não era isto que eu queria contar.

Depois desci das áleas arborizadas até a cidade de Wiesbaden, vi uma mulher de meia-idade usando uma camiseta que dizia: “Unicórnios são reais”. As palavras não estavam em alemão, mas em inglês (ainda que, sem dúvida, a camiseta tenha sido feita na China). Comecei a me perguntar.

Foi só infantilismo? O tipo de escapismo que financiou a indústria de OVNIs, ou Star Wars, ou Harry Potter? Os irresponsáveis e imaturos que estão a fugir da realidade?

Então pensei para comigo que não poderia imaginar nenhuma mulher russa de meia-idade, chinesa, indiana, iraniana, africana, cubana, colombiana ou brasileira usando tal camiseta (a menos, é claro, que fossem tão fúteis que tivessem casado com oligarcas). E vieram-me à lembrança as palavras escritas pelo autor britânico G.K. Chesterton num seu conto de 1925, O Oráculo do Cão: ‘O primeiro efeito da não crença… é que você perde seu senso comum”.

Por outras palavras, usar tal camiseta simplesmente mostra uma falta de fé – em qualquer coisa. E eu pensei como era significativo que as palavras tivessem sido escritas em inglês, a língua do Hegemónico. E eu pensei, sim, este é realmente o fim do mundo ocidental. Porque se alguém quiser anunciar a sua crença de que os unicórnios são reais, simplesmente perdeu a cabeça e de agora em diante vai acreditar em qualquer coisa que o mundo ocidental lhe diga.

Afinal, é apenas um passo de “Unicórnios são reais” para:   “O grande e nobre Zelensky está a vencer a guerra na Ucrânia porque nossa causa ocidental é justa”.


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