Os velhos hábitos

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 02/06/2023)

Miguel Sousa Tavares

Talvez tenha errado o alvo ao atribuir à PJ o “vazamento” em bruto de todo o processo Tutti Frutti para a imprensa. Talvez a façanha tenha tido origem mais acima e mesmo acima do Ministério Público. Seja como for, desta vez o rol de suspeitos pela fuga é consideravelmente menor, uma vez que não há arguidos, nem advogados dos mesmos, com acesso ao processo. Com um mínimo de esforço e vontade, até agora não demonstrados, a senhora procuradora-geral está em condições de, por uma vez, chegar à origem do mal. A menos que se pense, como já vi escrito, que não são graves actos como colocar o telefone de alguém sob escuta, apreender o seu computador e devassar o seu correio electrónico, que de tal forma violam o direito constitucional à intimidade da vida privada que só podem ser cometidos mediante prévia autorização de um juiz, no âmbito de uma investigação onde existam fortes suspeitas de cometimento de um crime grave que não possa ser investigado de outra forma, mas que sirvam, afinal, não para a instrução de um processo na qual o suspeito é chamado e constituído arguido, sendo então confrontado com as suspeitas e podendo defender-se delas, mas sim para vazar tudo para a imprensa, expondo desde logo à maledicência e condenação popular quem nem sequer sabia que estava a ser investigado. Aqueles que acham que destes velhos hábitos de “investigação” não vem mal ao mundo, pois o que interessa é a “verdade”, presumida ou real, sobretudo quando ela atinge alguém com quem não simpatizamos, ou são perigosamente ingénuos ou malformados. A diferença entre o Estado de direito e o Estado dos magistrados é que, vigorando o primeiro, este controla o segundo; mas, vigorando o segundo, é este que controla o primeiro. E perceberão melhor a diferença no dia em que, inocentes e ­alheios a tudo, mas porque a vida é muitas vezes imprevisível, souberem que alguém anda a escutar as suas conversas ao telefone e alguém foi buscar o seu computador para o vasculhar de alto a baixo e expor tudo nos jornais, talvez porque entretanto entraram para a vasta categoria dos “politicamente expostos” — uma tentação para os arqueólogos da verdade e justiceiros de tablóide. Aí perceberão definitivamente a diferença entre estar protegido pela Constituição e por um “juiz das garantias” ou estar nas mãos do simples impulso de um procurador do Ministério Público e um juiz ao seu dispor.

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2 Como seria de esperar por todas as razões à vista, Recep Erdogan fez-se reeleger Presidente da Turquia por mais cinco anos. A Europa e o Ocidente antecipam agora mais cinco anos de divergên­cias e afastamento do seu círculo de influência de um membro da NATO de importância geopolítica fundamental. Vêem, e acertadamente, a Turquia de Erdogan a criar obstáculos à adesão da Suécia à NATO, a manter-se numa posição de neutralidade relativamente à guerra da Ucrânia ou a querer mediar um processo de paz (o que, para o Ocidente, equivale a ser pró-Putin), a manter relações próprias com a China, ao mesmo tempo que se afasta cada vez mais da Europa e do que chamam os valores das sociedades liberais democráticas, e, tal como a Rússia, a revelar uma nostalgia imperial que a eleva já ao nível de potência regional. Tudo verdadeiro, tudo previsível, quase tudo preocupante.

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Aconteceu com a Turquia o mesmo que aconteceu com a Rússia no mundo unipolar dominado pelos Estados Unidos que sucedeu ao da Guerra Fria. O Ocidente julgou poder determinar sozinho as regras do jogo à escala planetária, fundadas em princípios como o direito à autodeterminação dos povos, o comércio global, a democracia e direitos humanos para todos, etc. Mas não só os princípios enunciados variavam conforme as geografias e os amigos (o Kosovo tem direito à autodeterminação, mas a Catalunha ou a Córsega não, a democracia e os direitos humanos valem para a Rússia, mas não para a Arábia Saudita) como a própria globalização deixou de servir quando o comércio livre começou a beneficiar mais os pobres do que os ricos, para grande espanto dos liberais e dos esquerdistas. Mas, acima de tudo, tanto na Rússia como na Turquia, na China e noutros lados, o Ocidente acreditou que podia ditar as suas regras de conduta universal sem ter em conta a história de cada um, as suas divisões étnicas e diferenças sociais e religiosas. Achou que podia exigir tudo em troca de oportunidades de negócio, que, em muitos casos, como na Rússia ou na Ucrânia, foram apenas oportunidades de parcerias mistas de corrupção. Na Rússia, após a dissolução do Pacto de Varsóvia, ignorando a traumática história dos russos com a II Guerra Mundial e quebrando a solene promessa do secretário de Estado americano de então (“não avançaremos nem uma polegada para leste”), a NATO foi absorvendo novos membros, anteriormente membros do Pacto de Varsóvia, cercando e aproximando-se cada vez mais das fronteiras russas até acabar agora a vangloriar-se de ter conquistado mais mil quilómetros de fronteira com a Rússia através da adesão da Finlândia. À Turquia, membro da NATO e que há uns 15, 20 anos estava a fazer um claro esforço de modernização e aproximação à Europa, apoiada num sector militar ainda herdeiro das ­ideias de Kemal Atatürk, a ­União Europeia prometeu a adesão, mas que arrasta até hoje e que já todos perceberam que adiará eternamente. Mas, ao mesmo tempo, deu urgência ao pedido de adesão da Ucrânia, feito 20 anos mais tarde. Foi esta falta de visão estratégica do Ocidente num momento crucial para os destinos da Turquia que permitiu a Erdogan tornar-se o intérprete do caminho oposto ao da modernização e abertura à Europa, cavalgando o sentimento de despeito e humilhação com que os turcos se sentiram tratados pelo Ocidente: aliados na NATO, sim, dá-nos jeito; membros da UE, não, saía-nos caro.

O Ocidente transformou um potencial aliado, que a Rússia chegou a ser, num inimigo. A China já o é quase oficialmente e a Turquia vai pelo mesmo caminho. E ou muito me engano ou outros se vão seguir: a Índia, a África do Sul, talvez até o Brasil. É o que acontece quando velhos hábitos de pensamento, esclerosados nas mesmas universidades, os mesmos gurus e a mesma imprensa de sempre, persistem em ver o mundo segundo os seus padrões imutáveis de análise e de ética, que julgam exportáveis e eternamente aplicáveis a um mundo que deixaram de querer entender.

3 Utilizando o seu espaço de comentário da guerra da Ucrânia na SIC — verdadeiro modelo de isenção e profundidade de análise —, José Milhazes teve um contributo decisivo para o saneamento por razões políticas do russo-português Vladimir Plias­sov como professor de Língua e Cultura Russas do Centro de Estudos Russos da Universidade de Coimbra. Baseando-se apenas numa denúncia de dois “activistas ucranianos”, Milhazes deu voz e amplitude à acusação, provadamente falsa, de que Pliassov usava as aulas para fazer propaganda a favor da Rússia. Foi quanto bastou para que o reitor da Universidade, Amílcar Falcão, sem sequer ouvir o visado ou o testemunho dos seus alunos, todos desmentindo a acusação, o despedisse sumariamente por delito de opinião — que, a ter existido, seria fundamento inadmissível num país democrático; não tendo sequer existido, é simplesmente escabroso. Longe, porém, de ficar envergonhado ou arrependido com o seu contributo para tão edificante história, Milhazes voltou antes à carga. Agora atirou-se aos artistas que aceitaram participar na Festa do Avante!, acusando-os de serem coniventes com um partido que “apoia um regime de bandidos e assassinos”. Presume-se que se ele mandasse nem os artistas seriam autorizados a participar, nem haveria festa, nem mesmo o PCP estaria legalizado. Usando a sua tribuna televisiva, José Milhazes autoinvestiu-se da função de delator oficial dos “amigos de Putin e da Rússia”. Um papel que lhe assenta como uma luva, não tivesse sido ele um exilado político voluntário na Rússia soviética, onde estes eram velhos hábitos de convivência social: uma vez estalinista, para sempre estalinista. José Milhazes é para mim a demonstração viva daquilo que eu sempre pensei: a desculpa dos 20 anos para justificar passados fascistas ou estalinistas não colhe; aos 20 anos todos temos obrigação de distinguir muito bem o que é verdadeiramente essencial. O estalinismo, ainda que juvenil, não revela apenas imaturidade ideológica, mas sim um defeito de carácter.

4 Antecipando um Verão de fogos terríveis, a ­União Europeia activou a sua recente frota aérea de combate a incêndios, capaz de intervir em cada país conforme as suas necessidades: são 24 ­aviões e quatro helicópteros para toda a Europa. Cerca de um terço ou metade da “coligação de F-16”, a última exigência para a guerra que Zelensky fez e que, como de costume, irá obter dos europeus, Portugal incluí­do. Cada F-16 custa 20 vezes mais do que um dos aviões de combate a incêndios, e Portugal, que já ofereceu à Ucrânia, para a guerra, os seus helicópteros Kamov, que servi­riam para combater os incêndios, está muito satisfeito por ver cá estacionados dois ­meios aéreos da frota de incêndios europeia. É a lógica dos tempos que vivemos: tudo para a guerra, pouco ou nada para o resto.

5 Depois de tanta promoção, lá fui espreitar o “Rabo de Peixe”, a segunda produção portuguesa a ter honras de Netflix. E, tal como com a primeira, a decepção foi absoluta. Os velhos e maus hábitos do cinema português persistem, nada aparentemente se tendo aprendido com as boas experiências alheias. Uma história muito mal desenvolvida, com ligações por fazer ou sem sentido, uma incapacidade recorrente de conseguir contá-la através só dos actores, lá tendo de vir o inevitável e pré-histórico narrador, descrevendo até emoções e sentimentos dos personagens, e, por fim, claro, também o incontornável som digno dos tempos do cinema pós-mudo. Lastimável mistura entre som ambiente e som directo, inenarrável captura do som das falas, não se percebendo nada do que os actores dizem, excepto os palavrões, que, talvez para compensar, são gritados e frequentes. Caramba, como é ainda possível fazer-se tão mal? E como não há um crítico que se atreva a dizê-lo? OK, esta é a minha opinião e de quem só esforçadamente aguentou dois episódios, mas há-de haver alguém mais que pense o mesmo. Ou não: aquilo é magnífico?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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Nós que vimos morrer o André

(Manuel Gouveia, in AbrilAbril, 22/07/2022)

Este texto é sobre um piloto que morreu. Acidente, azar, sim, também. Mas há algo de muito errado neste país e nas opções de fundo que lhe têm sido impostas. E isso é que é o contexto que importa perceber.


Na música onde Zeca Afonso homenageia Catarina Eufémia pode-se escutar que «quem viu morrer Catarina não perdoa a quem matou». Como é evidente, não se refere o poeta apenas àqueles camaradas de Catarina que no dia 19 de Maio de 1954 estavam ao seu lado, em luta, e literalmente a viram cair varadas pelas balas da ditadura fascista de Salazar. É a nós todos que se nos dirige. Todos nós temos a obrigação de ter visto morrer Catarina. E de não perdoar a quem a matou: o fascismo português.

Mas este texto não é sobre Catarina Eufémia. É sobre um piloto português que morreu a combater os incêndios que se abatem sobre o nosso país. Cuja morte foi transmitida e retransmitida até à náusea por uma comunicação social nauseabunda. Que serviu de distracção nas tascas, nos cafés e nos sofás de milhares de casas.

Não se faz isto à família de ninguém, e muito menos à família de um herói. Ou não se devia fazer. Porque se faz, todos os dias. E não se pode fazer. Por tudo, e porque nas televisões transformadas em cloacas o mundo é um espectáculo de desastres sem contexto, antecâmara das explicações fáceis e demagógicas, que nada explicam, tudo escondem e todos manipulam.

E este acidente tem contexto. Desde logo, todas as negociatas em torno do ataque aéreo a incêndios. Em vez de uma entidade pública, com equipamento próprio, profissionais dedicados e bem remunerados, temos um estendal de negócios escandalosos, promessas, parcerias público-privadas, subcontratações, onde se fizeram e fazem fortunas, mas se continua sem construir a resposta possível e necessária para um eficaz combate aéreo aos fogos. É o modelo capitalista e neoliberal, que faz ricos e ricos mais ricos, mas também aumenta o risco para os operacionais.

Sem esquecer um outro processo, que levou um capitão da Força Aérea a desta sair para poder entrar para a TAP, logo por azar nas vésperas de uma pandemia, e para mais azar ainda, nas vésperas de uma reestruturação que levou ao seu despedimento sem contemplações. «Razões ponderosas e legítimas correlacionadas com o contexto pandémico» chamou-lhe a TAP. Chamem-lhe agora também flexibilidade laboral, a mesma que tantos apregoam para outros sofrerem na pele. Isso e a mais completa insensibilidade social. É que azares acontecem, mas com a flexibilização das relações laborais os azares esmagam quem trabalha e exoneram os exploradores.

Acidente, azar, sim, também. Mas há algo de muito errado neste país e nas opções de fundo que lhe têm sido impostas. E isso é que é o contexto que importa perceber. E alterar.

Chamava-se André, e é um herói que morreu a combater os incêndios. Morreu num acidente, e os acidentes acontecem. Ao contrário de Catarina, ninguém carregou num gatilho. Mas tal como a morte de Catarina não foi mera responsabilidade de um qualquer Carrajola, mas do fascismo português, também a morte de André nos deve alertar para os custos reais do neoliberalismo vigente.

E nós que vimos morrer o André não o podemos esquecer.


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Incêndios na floresta portuguesa: quanto pior, melhor?

(Maria Carolina Varela, in Ionline, 19/07/2022)

Aos primeiros bafos de calor extraordinário, fenómeno raro mas que é parte integrante do nosso clima, Portugal arde.

À medida que o mundo rural da agricultura familiar se tornou o bastardo rejeitado por interesses económicos e políticos e o eucalipto se expandiu, os fogos tornaram-se, para alguns, uma lucrativa “indústria” de milhões.

Para os predadores da floresta os incêndios não são uma catástrofe. Os incêndios florestais em Portugal estão longe de ser o desastre nacional que as televisões nos vendem, onde pontificam grandes inquisidores que apresentam imediatamente culpados para queimar na praça pública: os proprietários que não limpam as suas matas, a vaga de calor ou o aquecimento global, conforme dê mais audiências.

Os incêndios crepitam na floresta portuguesa ao longo de todo o ano e tornaram-se um espectro que mina o poder negocial do proprietário. Há poucas décadas era vulgar os proprietários florestais dizerem: “Este ano não corto, vou esperar que a madeira suba um pouco”. Nos últimos anos ouve-se: “Vou vender antes que haja um fogo.” O preço da madeira no mercado passou a ser aceite com humildade, contribuindo para aumentar os lucros das grandes indústrias de transformação, sobretudo no caso do eucalipto que tem apenas um único comprador, as empresas de celulose.

O eucalipto rebenta, como facilmente se observa, e três ou quatros anos depois está recuperado e pronto para nova faina, seja a de ir para a indústria da celulose, seja para arder novamente. O pinheiro ardido não recupera, mas também é consumido por várias indústrias de madeira triturada, pois a indústria de madeira maciça de pinho há muito se finou.

O combate e a prevenção dos incêndios são “indústrias” florescentes onde a corrupção é frequente, como várias denúncias têm mostrado (e apenas mostram a ponta do icebergue de corrupção que gira à volta dos fogos.

Com os incêndios perdem os que morrem ou ficam feridos no inferno das chamas, bombeiros ou simples cidadãos. Perdem os pequenos proprietários florestais que não têm capacidade negocial para vender a madeira ardida (cada vez são mais os que nem sabem localizar o seu pedaço de terra); perdem os agricultores, vítimas colaterais que veem pomares, gados e olivais serem consumidos por chamas vindas de eucaliptais ou pinhais nas proximidades; perdem aqueles a quem a casa ardeu e que nunca receberam nada dos prometidos fundos para a reconstrução da habitação.

CLICHÉS, DOGMAS E MITOS SOBRE OS INCÊNDIOS FLORESTAIS EM PORTUGAL

“Os eucaliptais das celuloses não ardem.” São várias as vozes que repetem esta frase enganadora com o intuito de que se torne um dogma. Mas nenhum destes pregadores demonstrou, seja por títulos de propriedade, por responsabilidade na gestão, ou sequer mostrando alguns exemplos concretos, o que é um eucaliptal das celuloses. Não se conhecem dados oficiais sobre a área de eucaliptal que é diretamente propriedade das celuloses. Mas há indicadores empíricos muito fortes: os intermediários que compram a madeira sabem que a maioria dos eucaliptais são de pequenos proprietários, que os alugam, ou vendem o eucalipto, às celuloses. Assim, estas alijam a responsabilidade pela sua manutenção, que recai sobre os pequenos proprietários – uma espécie de “uberização” do negócio.

“HÁ FOGOS GRANDES SEM EUCALIPTO”

Exasperados com a evidência de os fogos em Portugal terem sido agigantados pela expansão do eucalipto, sempre que há um incêndio em que outras espécies tiveram o papel principal (e.g. Palmela 2022) surgem vozes que rejubilam, como se tivessem alcançado a prova irrefutável de que há fogos sem eucalipto.

Todas a florestas podem arder: até na Escandinávia de verões frescos e chuvosos, de onde tantos turistas se escapam para gozar uns dias de sol no Mediterrâneo, há fogos florestais. Mas são escassos e raramente catastróficos. Querer negar que o problema em Portugal vem da expansão descontrolada das espécies pirófilas que causam fogos colossais com capacidade de contagiar outros cobertos do solo, sejam florestais, agrícolas ou urbanos, é no mínimo desonestidade intelectual e técnica.

“OS MATOS SÃO CULPADOS”

No Mediterrâneo, os incêndios nos matos são um fenómeno de sempre. Usar os matos como culpados dos grandes incêndios é mais um embuste para manipular as populações urbanas. Os matos ardem com velocidade e altura de labaredas muito inferior ao das espécies pirófilas, não criam os intensos ventos de convenção dos fogos dessas espécies e não projetam fagulhas a centenas de metros. Os incêndios em matos só se tornam fogos incontroláveis quando chegam a manchas florestais de espécies pirófilas, como o eucalipto e o pinheiro. Mas para aumentar a área de eucalipto toda a retórica serve: “Proprietários florestais e indústrias da celulose pedem o aumento da área de eucalipto e de outras espécies de árvores de crescimento rápido em zonas de mato abandonadas para reduzir o risco de incêndio e desenvolver o setor”, RTP N, 16 de julho de 2022.

O ABANDONO COMO CAUSA

É frequente ouvir dizer, a quem nada sabe sobre o complexo problema do minifúndio em propriedade indivisa e das causas do abandono florestal, que é um fator essencial nos fogos e como tal há que expropriar essas terras. Não o dizem para contribuir para a mitigação dos incêndios, mas apenas como pretexto para o ataque à pequena propriedade. O abandono contribui um pouco para os fogos, mas nunca pode ser assumido como uma causa principal. Os eucaliptais que tanto ardem são tudo menos terras abandonadas.

O problema do minifúndio em propriedade indivisa tem décadas e Portugal nunca teve um governo com coragem de iniciar a reforma desse tipo de propriedade tão danoso para a economia rural do país e que encoraja ao abandono. É um processo longo que não se executa por simples decreto e implica o envolvimento de várias competências técnicas, desde agrárias a jurídicas.

MAS ENTÃO O QUE FAZER?

Um país com a dimensão florestal em área e importância económica como Portugal deveria ter a sua floresta gerida de forma centralizada, com elevada responsabilidade e nível técnico capazes de conceber um ordenamento florestal com vista aos fogos e a produções em quantidade e qualidade.

As defuntas circunscrições e administrações florestais dos serviços florestais tinham intenções de ordenamento florestal do território e tinham técnicos oriundos de um curso de silvicultura onde foram professores grandes nomes da ciência florestal portuguesa. Essas estruturas foram substituídas por uma miríade de associações florestais a que estão atribuídas funções administrativas e de fiscalização, outrora desempenhadas pelos guardas-florestais, por exemplo sobre as limpezas dos terrenos e dos processos de autorização para alteração de espécies nas rearborizações.

O ordenamento florestal do território é uma obra que requer elevada exigência técnica e vontade política. A estrutura florestal que hoje em dia (des)governa o país dá-nos a certeza de que Portugal vai ser sempre assolado por enormes incêndios, logo que haja uns bafos de calor. Só a incompetência pode conceber que as associações florestais pudessem substituir a antiga estrutura dos serviços florestais.

Eng. Silvicultora e mãe de Raquel Varela


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