Lampedusa, o destino da Europa e do mundo

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso,22/09/2023)

Miguel Sousa Tavares

Lampedusa é uma pequena ilha de Itália, entre África, a Sicília e o continente italiano. Tem 7 mil habitantes e em apenas três dias da semana passada recebeu 10 mil imigrantes vindos de África e com origem maioritária em portos da Tunísia. Aparentemente, o acordo que o Governo de coligação de extrema-direita, chefiado pela primeira-ministra Giorgia Meloni, estabeleceu com o Governo tunisino — dinheiro contra retenção de imigrantes — não está a funcionar como ela esperava. Nos dois anos em que o seu parceiro de coligação e de Governo e líder da Liga, Matteo Salvini, foi ministro do Interior num anterior Governo, ele chegou a mobilizar a Marinha de Guerra contra as frágeis embarcações dos imigrantes: milhares morreram afogados na travessia do Mediterrâneo e apenas 7 mil num ano e 8 mil noutro conseguiram atingir a costa italiana. Mas desta vez, e contra todas as expectativas, Meloni recusou voltar a dar a Salvini a pasta do Interior e adoptou uma política muito mais branda e humana para com os imigrantes. Resultado: só este ano e até agora entraram em Itália 127 mil desesperados do Norte de África e do Sahel, vítimas de guerras ou de ditaduras alguns, mas vítimas sobretudo da fome e das alterações climáticas a maioria, todos em busca de uma réstia de esperança numa vida decente. Lampedusa recebeu os seus resgatados com um insuperável humanismo e generosidade, como outras partes de Itália e da Sicília o fizeram, e também a Grécia, mas de forma bem menos pacífica e generosa. Tudo perante o silêncio e a indiferença da Europa. Mas há sempre um limite suportável, e a população de Lampedusa chegou agora ao seu, perante o anúncio de que as autoridades se preparam para estabelecer novo acampamento permanente na ilha para acolher mais imigrantes. Como escreveu Helena Matos no “Observador”, o que diria a população de Porto Santo se tivesse de acolher mais imigrantes do que os próprios residentes?

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

No domingo passado, Meloni levou Ursula von der Leyen a Lampedusa para que ela visse com os próprios olhos aquilo que a Europa não quer ver. E, enquanto elas se reuniam em Lampedusa, mais a norte, em Itália, Salvini recebia Marine Le Pen e, juntos, os dois expoentes máximos da extrema-direita xenófoba e anti-imigração europeia combinavam uma possível lista comum às europeias do ano que vem e uma estratégia comum do tipo “regresso às canhoneiras” em que Salvini se distinguiu no passado. Em Lampedusa, Von der Leyen apresentou um vago “projecto europeu” em 10 pontos, compreendendo patrulhas navais euro­peias, um corredor para imigração legal (qual?) e repatriamento da ilegal (para onde?), além da solene declaração de que será a Europa, e não os traficantes de seres humanos, a decidir a sua política de imigração. Uma bela frase que esbarra, contudo, na realidade dos factos. E a realidade é aquilo que, dias depois, Meloni disse na Assembleia-Geral da ONU: “A Itália não pode e não quer continuar a ser o depósito de imigrantes da Europa”, apenas porque é o país cujas costas ficam mais próximas das de África. Longe desta malfadada geo­grafia, Portugal, pela voz da ministra Ana Catarina Mendes, aparecia nas páginas do “La Repubblica” de sábado passado como um exemplo a seguir. “Devido à nossa baixa natalidade”, explicava a ministra, “estamos abertos a receber imigrantes para preencher as nossas necessidades de trabalho.” Eles são úteis e bem-vindos, acrescentou, e temos leis para os acolher decentemente (veja-se Odemira e não só…). Todavia, quando perguntada o que faríamos quando as necessidades de imigrantes estivessem preenchidas, a ministra preferiu divagar e esquecer a pergunta. Outros — a Polónia, a Hungria, a Eslováquia — são frontais e sem subterfúgios: não querem receber imigrantes nenhuns e não têm nada a ver com o assunto. A Polónia, um país vagamente democrático e sem qualquer espírito europeu, lançou-se mesmo na construção de um muro de fronteira contra a imigração, como fez Trump na fronteira com o México. Bruxelas chegou a ameaçar a Polónia com o corte de dinheiros europeus — uma represália lógica e justa —, mas recuou entretanto, uma vez que a Polónia se tornou um dos maiores apoiantes da Ucrânia, e essa é a única solidariedade europeia que hoje conta.

Na recente cimeira do G20 falou-se muito da Ucrânia, e Zelensky lá teve direito ao seu tempo reservado para, como sempre, pedir mais armas para aquilo a que o secretário-geral da NATO, julgo que entusiasmado, avisou que irá ser ainda “uma guerra prolongada”.

No G20 falou-se muito da necessidade de continuar a guerra, mas não se falou nada da necessidade de estabelecer um diálogo para a paz. Falou-se muito do aumento das despesas militares e de continuar a armar a Ucrânia, mas não se falou nada de dinheiro para combater as secas e a fome no Terceiro Mundo. Falou-se da história mal contada da “chantagem alimentar russa”, mas ninguém disse, como Guterres, que “o mundo precisa dos cereais ucranianos e precisa dos alimentos e fertilizantes russos” — e que os fornecimentos de uns estão ligados aos outros.

Não se falou das alterações climáticas nem das tragédias ou dos fluxos migratórios provocados por elas. E ninguém lembrou, como Guterres, que à volta daquela mesa estavam reunidos países responsáveis por 80% dos gases com efeitos de estufa e que era de estranhar que nenhum dos líderes mundiais ali presentes “sentisse o calor”. No G20, como nos discursos dos grandes do mundo na ONU, o que agora verdadeiramente os preocupa é o poder crescente dos BRICS e o seu futuro alargamento a países do Médio Oriente: o petróleo, a eterna luta pelo petróleo, e a irritação de verem países tradicionalmente abertos à boa e velha “ordem liberal”, como o Brasil e a Índia, “a fazerem agora o jogo de Putin” — isto é, a defenderem que se comece a procurar a paz em lugar de continuar a guerra sem fim à vista. Definitivamente, o mundo já não é o que era, e ao Ocidente já não resta mais do que entrincheirar-se atrás de muros e bombardear os bárbaros do Leste e do Sul, que nos assaltam sem razão. Stoltenberg e a sua NATO defenderão o Leste, Salvini e Le Pen o Sul, a VII Esquadra americana o Extremo Orien­te, e alguns intelectuais escreverão que, afinal, a história continua. Como se não o soubéssemos. Lampedusa é apenas uma minúscula ilha no mar da indiferença em que naufragamos.

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2 Mesmo neste tempo da internet e das notícias constantes online, gosto de manter um velho hábito de, quando ausente da terrinha, deixar comprados, para depois ler, os jornais da minha ausência. Fiquei assim a saber que, se as novidades não foram muitas, foram, pelo menos, divertidas. Marcelo andou a comentar decotes no Canadá, enquanto alguns intelectuais da Mui Nobre, Leal e Sempre Invicta se escandalizaram ao retardador com a escultura de uma jovem nua abraçada a um velho Camilo. (Larga a peça, Eça!, ou ainda te cortam a cabeça em Lisboa.) Cavaco lançou a sua muito publicitada “Arte de Governar”, rodeado de “ajudantes”, numa coisa dantes chamada Grémio Literário e hoje mais conhecida por Clube Literário do PSD (já gastei os meus 17,75 euros para matar as saudades, não a curiosidade). E, segundo as melhores opiniões, as europeias do ano que vem serão absolutamente determinantes em Portugal para decidir: a) se Montenegro continua à frente do PSD; b) se Costa resiste ou avança Pedro Nuno; c) se Marcelo pode finalmente dissolver tudo à cacetada; d) se o Chega cresce ou o CDS renasce. O que tem isto a ver com a Europa — com a crise migratória, com as alterações climáticas, com a continuação da guerra, com o alargamento a Leste e com o fim dos nossos queridos dinheirinhos europeus? Pois, nada. Mas quem disse que as europeias servem para discutir a Europa?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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Chuva miudinha

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso,08/09/2023)

Miguel Sousa Tavares

E

m alguns lugares restritos no mapa choveu granizo, mas, de resto e de norte a sul, os primeiros dias de Setembro trouxeram apenas uma chuva miudinha aos campos, à disposição dos espíritos e à vida política. Desde as areias de Monte Gordo, um mês antes, Marcelo foi alimentando as expectativas da imprensa sem notícias com a segunda volta do Conselho de Estado, marcada para a primeira semana de Setembro. Aí, avisou ele, teria ocasião de proferir a intervenção final — aliás, já escrita, houvesse o que houvesse —, porém dando antes generosamente o direito a António Costa de se defender da previsível catanada. Mas Costa, repousado das férias, optou por aquilo que qualquer estratego aconselharia: se a sentença já estava dada, mais valia abdicar da defesa. E parece que Marcelo ficou assim meio sem chão, desarmado pelo silêncio da vítima e desarmado pelos avisos que, concertado ou não com o primeiro-ministro, o governador do Banco de Portugal lançara para cima da mesa dois dias antes. Que sentido faria voltar à carga com o caso TAP e o caso Galamba, voltar a falar da “folga” orçamental ou da “justa luta” dos professores quando Mário Centeno alertava para uma possível recessão no horizonte próximo importada de fora, na miragem da “folga”, que afinal não é assim tanta, e na necessidade de continuar a reduzir a dívida para “não sermos outra vez apanhados desprevenidos”? Quando na véspera a Rússia e a Arábia Saudita tinham mais uma vez feito subir os preços do petróleo e a guerra da Ucrânia, cuja continuação Marcelo tão entusiasticamente apoiara na sua visita a Kiev e que é razão primeira para todos os problemas económicos que a Europa e Portugal enfrentam, promete assim eternizar-se sem fim à vista e com o aplauso geral de quem nos governa?

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Não, não há almoços grátis. Não há sol na eira e chuva no nabal. Não há guerras que sirvam aos povos e não aproveitem aos vendedores de armas, de alimentos e de energia. Não há PRR que nos salve, não há dinheiro que chegue para fazer funcionar uma economia paralisada, não há planeta que resista a tamanha criminosa estupidez.

De que mais resta falar se todos os dias somos confrontados com imagens apocalípticas de seca ou inundações até em lugares inimagináveis há uns anos, de incêndios imparáveis ou icebergues a desfazerem-se no oceano, e os líderes que elegemos só pensam em mais armas, mais munições, mais aviões para a guerra da Ucrânia? Vamos entreter-nos a falar do beijo de Rubiales em Espanha, da proibição da abaya em França ou da heróica revolta do adjunto do ministro Galamba?

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Temos então, aqui, a “birra”, ou o “amuo”, de António Costa no Conselho de Estado a dar origem àquilo que Luís Montenegro, sem mais, classificou como “a mais grave crise institucional” de que ele tem memória. Ora cá temos, assim, uma crise institucional para nos animar e desviar as atenções nesta rentrée de chuva miudinha. Mas como não há milagres, o essencial permanece. E o essencial são as escolhas, como disse há tempos Marcelo, antes de a seguir começar a desdizer-se: governar é escolher. Por exemplo: pagamos os tais 6 anos, 6 meses e 23 dias aos professores, acumulando mais da despesa permanente de que fala Mário Centeno, ou investimos o dinheiro na construção de habitação pública para os jovens e a classe média? Investimos nas Forças Armadas ou na Saúde? Em comboios do século XXI que tirem os carros da estrada ou em radares para multar os carros na estrada? Agravamos a despesa pública com mais apoios e subsídios ou desagravamos a sério os impostos e apostamos na criação de riqueza pelos privados?

Ou, como até aqui, continuamos a apostar que há dinheiro para tudo — para satisfazer todos os lobbys, todos os grupos de interesses e todos os eleitorados — e não é preciso fazer escolhas?

2 Com o indisfarçável entusiasmo que sempre põe nestas coisas “disruptivas”, o “Público” noti­ciou com grande destaque que “a Bienal de São Paulo conta outra história de Fernão de Magalhães”. Fiquei curioso: o que levaria uma exposição de arte a desvendar uma outra versão da extraordinária história desse navegador do século XVI para além do facto de Magalhães reunir em si características hoje quase interditas nos círculos artísticos — ser homem, branco, ao que se sabe heterossexual e, pior ainda, português e logo de Quinhentos? E que nova versão seria essa digna de merecer duas páginas num jornal de referência, chamada de primeira página e todo esse destaque na Bienal de S. Paulo? Acaso teriam descoberto que ele, afinal, não imaginou e comandou uma expedição de circum-navegação que deu a volta ao mundo, provando que a Terra era redonda, que chegou lá abaixo à Terra do Fogo e descobriu a passagem do Atlântico para o Pacífico, depois imortalizada com o seu nome, que foi o primeiro navegador a cruzar todo o Pacífico, que assim baptizou, e que morreu em combate em Mactan, nas Filipinas, aos 41 anos, não podendo fazer parte dos 18 sobreviventes que, três anos depois da partida, regressaram a Espanha, completando, em 1522, uma das mais fantásticas aventuras humanas? Que teria a Bienal descoberto de novo que tanto entusiasmou o “Público”? Pois parece que descobriram que Magalhães não foi morto em combate pelo chefe tribal da ilha de Mactan, Lapu-Lapu, mas sim pela sua mulher — que assim, por proposta do cineasta/escultor filipino Ti­diak Kahimit (a quem a humanidade tanto deve), é justo passar a ser ela a heroína da história, pois que matou o homem que se atreveu a dar a volta ao mundo numa casca de noz e ir incomodar os filipinos no seu exaltante remanso. E, então, a Bienal dedica à heroína uma escultura à entrada, da autoria do dito cineasta/escultor, e antes de se passar por um “espaço multimédia e que é também — explica o “Público” — um espaço de encontro e discussão”, baptizado com o nome arrebatador de “Sauna Lésbica”. E tudo, todavia, acontecendo num edifício desenhado por um dos mais extraordinários artistas do nosso tempo, Oscar Niemeyer — que, fosse ainda vivo, não teria direito a convite, pois que, tal como Magalhães, sofria de três males hoje sem remissão: ser homem, branco e heterossexual. E tudo parte integrante do objectivo central da Bienal, que é, ensina-nos ainda o “Público”, o de “coreografar um novo pensamento capaz de combater a negação dos saberes não hegemónicos”. Razão pela qual certamente nós, contribuintes portugueses, estamos lá representados por dois artistas de raça negra, cujo nome vocês jamais ouviram e escolhidos pela nossa curadora, Grada Kilomba. A mesma que há uns tempos protagonizou uma feroz discussão — acompanhada ao pormenor pelo “Público” —, envolvendo todos os crocodilos excelentíssimos que zelam pela nossa cultura, a qual consistia em saber quem merecia representar Portugal na Bienal de Veneza: se uma mulher negra ou um branco que se apresentava como o primeiro artista sem sexo definido. Excluin­do a primeira, estávamos perante um caso de machismo e racismo; excluindo o segundo, estávamos perante um caso de atentado aos direitos LGBTI. Após fascinantes e exaltadas discussões, e sem que jamais o jornal ou outrem nos tivesse mostrado qualquer coisa da obra de ambos os candidatos, ganhou o segundo. Mas, como se vê, neste pequeno mundo fechado nunca se perde de vez.

Agora, porque têm de meter o Fernão de Magalhães ao barulho, mais de 500 anos sobre a sua morte, é o que me ultrapassa. Confesso que já não me resta paciência alguma para este masoquismo diletante com que nos comprazemos a denegrir uma História de que qualquer outro povo se orgulharia todos os dias. Sim, eu conheço a saga da escravatura e do colonialismo sem freio, e tudo o mais, e tenho sobre isso o mesmo juízo implacável que qualquer pessoa informada tem de ter. Mas também conheço a história dos outros povos à época — colonizadores e colonizados, brancos, negros, amarelos e índios, dos que chegavam e dos que viam chegar — e das barbaridades que todos cometiam. Nada disso me impede de pasmar de admiração quando vejo os sinais no mundo da passagem desse pequeno povo, de escassa gente e desmedida coragem, que, tendo apenas o mar pela frente, foi por ele adentro — para fazer muitas coisas boas e más, mas também para saber o que havia para além do conhecido, descobrindo ilhas e estreitos, navegando oceanos virgens e inventando os Brasis que hoje conhecemos.

Será talvez um argumento infantil, mas quando vejo esta gente confundir alhos com bugalhos e querer julgar a História pelos olhos de hoje, vendo apenas o mal e não também o fantástico, dá-me vontade de lhes perguntar porque não experimentam embarcar numa coisa parecida com aquilo a que então chamavam naus e tentarem chegar vivos às Berlengas.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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Ainda haverá mundo daqui a um mês?

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso,14/07/2023)

Miguel Sousa Tavares

Vilnius foi, de facto, uma cimeira histórica. De uma assentada, tivemos a Suécia a tornar-se o 32º membro da NATO, depois de ultrapassada a resistência da Turquia e depois de sepultada a longa tradição sueca de país de refúgio para os exilados políticos das ditaduras — no caso, os curdos da Turquia, talvez o povo mais injustiçado do mundo, traído sem vergonha pela Suécia. Tivemos ainda a Turquia a ir mais longe, entregando à Ucrânia quatro comandantes da batalha de Azovstal capturados pelos russos, que os deixaram ficar à guarda dos turcos com a condição de não serem devolvidos à Ucrânia — é Erdogan a mudar de lado, a favor da NATO, e não se sabe ainda a troco de quê. Tivemos Zelensky a participar na cimeira como membro de pleno direito e a ver — embora não tenha conseguido já a adesão formal apesar das suas insistências constantes e públicas — a Ucrânia ser dispensada no futuro do MAP, o Plano de Acção para a Adesão, a que todos os países da NATO são sujeitos antes de serem aceites. E vimos um silêncio pesado da maior parte dos membros sobre a decisão dos Estados Unidos de fornecerem bombas de fragmentação (as sinistras e célebres cluster bombs), cujo uso está interdito por uma convenção internacional de que a maioria dos membros da NATO é signatária. E, finalmente, e já previsto, viu-se a NATO a reforçar outra vez as garantias de defesa e armamento fornecido à Ucrânia, confirmando aquilo que é um facto evidente: se a Ucrânia, formalmente, ainda não está na NATO, a NATO já está na Ucrânia — e não apenas desde o início da guerra, mas desde 2014.

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Como seria de esperar também, em lado algum, em palavras algumas, vindas de alguém, escutámos o mais pequeno esboço de um desejo, uma ideia, por mais tímida que fosse, de um plano para discutir nem sequer a paz, mas uma hipótese de paz. Não sei o que se passa ou o que se pensa do lado de lá; do lado de cá parece-me claro que a doutrina unânime é só parar a guerra com a derrota total da Rússia, o que inclui a retoma da Crimeia. Pensar que isto será possível, que a Rússia se deixará esmagar e humilhar, retirando-se sem transformar a derrota numa catástrofe, parece-me um plano de loucos, cegos pela ambição de não perderem o que julgam uma oportunidade única de pôr a Rússia de joelhos. Sem consequências devastadoras. É o velho sonho do general Patton, de continuar de Berlim até Moscovo. Só que isso foi em 1945, antes das armas nucleares e quando a Rússia já estava de joelhos devido à guerra contra a Alemanha.Mas eles é que sabem. A nata dos dirigentes ocidentais, o selecto grupo de Vílnius, deve saber o que faz e o que arrisca. Ou, pelo menos, devemos rezar por isso. Só que, às vezes, tudo parece mais uma questão de fé do que leitura da realidade — exactamente o mesmo erro que cometeu Putin quando decidiu invadir a Ucrânia, julgando que tudo não passaria de uma “operação militar especial”. Quando a ofensiva russa começou a patinar e, em especial, quando a Ucrânia lançou a contra-ofensiva do Outono passado, os “especialistas” da NATO anteviram a derrota russa ao virar da esquina e os políticos passaram a exigir nada menos do que isso; qualquer conversa sobre terminar a guerra ou falar de paz foi banida do discurso oficial. Mas, depois, os “especialistas” também não entenderam porque se assanhavam tanto os russos na batalha por Bakhmut, uma povoação sem importância estratégica, quando o que deveriam ter questionado era porque o faziam os ucranianos. Porque, enquanto os russos sacrificavam ali as tropas do Grupo Wagner, desgastando os ucranianos, mais atrás o exército regular russo preparava a defesa contra a tão anunciada contra-ofensiva ucraniana. A História deveria ter ensinado aos “especialistas” que os russos sempre foram melhores a defender do que a atacar. E agora, sem disfarce possível, a contra-ofensiva marca passo. Por isso é que, depois de ter pedido sucessivamente os lança-mísseis múltiplos de longo alcance HIMARS, os tanques Leopard, os F-16 e todas as munições disponíveis nos stocks da NATO — com os quais a guerra garantidamente seria ganha —, Zelensky pede agora mísseis de longo alcance para alvejar a Rússia, bombas de fragmentação e a protecção do artigo 5º do Tratado da NATO — ou seja, tropas combatentes da NATO na Ucrânia para finalmente o ajudarem a ganhar a guerra.

No dia em que o território russo for atacado e a sua sobrevivência ameaçada, Putin carrega botão. Isto não é um jogo de estratégia nem de bons contra maus. É um jogo de vida ou de morte. Não podemos ir de férias descansados. Por mais inacreditável que possa ser, houve membros da NATO dispostos a acolher já a Ucrânia e a envolver todos directamente na guerra.

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Para já, Joe Biden teve a sensatez de dizer “não”. Mas já vimos este “não, por enquanto”, acabar por se transformar num “sim, seja”, quando os fantásticos dotes de persuasão de Zelensky conseguem fazer perder a cabeça aos líderes e às opiniões públicas. Mas que não haja ilusões, porque Putin já o disse e isso consta da doutrina nuclear da Rússia, como da das outras potências nucleares: no dia em que o território russo for atacado e a sua sobrevivência ameaçada, ele carrega no botão. Isto não é um jogo de estratégia nem de bons contra maus. É um jogo de vida ou de morte. Não podemos ir de férias descansados.

2 Quem pode ir de férias descansado é o ressuscitado Pedro Nuno Santos (P.N.S.). Não cessa de me espantar a vida política deste D. Quixote lusitano. A primeira vez que lhe prestei atenção (e como não?) foi quando ele ameaçou pôr os alemães com os joelhos a tremer, declarando que poderíamos não pagar a dívida externa. A jovem plateia socialista que o escutava ficou em delírio e a imprensa percebeu que tinha ali homem para o futuro. Eu (e não os alemães) fiquei aterrado: primeiro por ver o desplante de quem se arrogava o direito de falar assim em nosso nome; depois por constatar a imensa ignorância e irresponsabilidade do Quixote — ele ignorava, por certo, que grande parte da dívida do Estado estava na mão de portugueses e de pequenos aforradores, que ali põem as suas poupanças, e supunha que, uma vez declarado o default, o Estado iria continuar a poder pagar aos funcionários públicos e a cobrir as despesas com os serviços públicos essenciais. Mas estava construí­da a imagem de bravura e socialismo genuíno. Ou, do meu ponto de vista, a de total leviandade na gestão de dinheiros públicos — depois confirmada no Ministério das Infra-Estruturas e na forma como injectou €3,2 mil milhões numa TAP que afinal parece que só vale mil milhões, como se livrou, pagando bem, de quem não suportava, ou de como mandou pagar €500 mil de indemnização a uma administradora sem sequer confirmar que ela tinha direito a ela e depois sem sequer se lembrar de o haver feito. Enfim, caído provisoriamente em desgraça e forçado a demitir-se, P.N.S. voltou para enfrentar uma dócil CPI à TAP, onde a oposição, devidamente orquestrada pela imprensa e comentadores, queria as cabeças de Galamba e Medina, mas não a sua. Passada a prova com facilidade, P.N.S. regressou então ao Parlamento, onde tinha à sua espera um batalhão de jornalistas, que fotografou e filmou cada um dos seus passos, os cumprimentos, os sorrisos, as subtis declarações. E depois, nos telejornais do dia e nos jornais do dia seguinte, estava o veredicto esperado da imprensa: “Reabilitado pela CPI e recebido em apoteose no Parlamento [pelos próprios jornalistas], Pedro Nuno Santos está de regresso como o grande candidato à sucessão de António Costa.” Fantástico, o homem é mesmo um fenómeno! Que aproveite enquanto o levam ao colo!

3 Nunca me canso de lembrar que em 2008 o Estado português foi à falência e, não tendo optado pela solução Pedro Nuno Santos, teve de pedir ajuda externa no valor de €78 mil milhões e, entre outras desgraças, obrigar todos os portugueses a um “brutal aumento de impostos” para pagar a conta. Desse massacre fiscal fez parte uma coisa chamada “taxa de solidariedade”, incidindo sobre os escalões mais altos do IRS e variando entre 2% e 4% — fazendo com que a taxa máxima possa chegar a 52% do rendimento. Anos de austeridade, de boas contas e, em 2022, de inflação a funcionar a favor da cobrança fiscal fizeram com que, entretanto, a situação financeira do Estado se tenha invertido para bem melhor. Apenas no ano passado, a receita fiscal subiu 30%, o equivalente a mais €11 mil milhões. Mas a tal “taxa de solidariedade”, que era “provisória” e para ajudar o erário público numa situação de aperto, continua “esquecida” de ser abolida. Já nem se trata de esperar que o Estado seja uma pessoa de bem, mas tão-somente que não se comporte como um salteador sem vergonha.P.S. — Que ainda haja mundo quando regressar de quatro semanas de pausa.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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