Ações desesperadas!

(Hugo Dionísio, in Facebook, 30/01/2023)

Alguma coisa está em mudança no monte Olimpo e está a deixar em retalhos a união de tendências ligadas à falcoaria estado-unidense. Perceber e prever as acções da elite política que comanda, através dos seus mandatários transnacionais, os nossos destinos, implica conhecer o que reflecte e publica o mais importante think thank de defesa dos EUA.  Esta pesquisa leva-nos a uma entidade que muito raramente surge nos momentos “informativos” da imprensa do atlântico norte: trata-se da RAND Corporation.

O momento mais conhecido da RAND, no que respeita ao conflito no leste europeu, é sinalizado pela publicação do relatório “Extending Russia – Competing from Advantageous Ground” (estender a Rússia – competir por uma posição vantajosa no terreno). Este relatório contém todo o cardápio de malfeitorias que, nas pretensões tornadas públicas, publicadas e assaz repetidas pela cúpula do poder dos EUA, levaria a uma fulminante derrota do poder político, económico e militar da Federação Russa.

A análise manifestada publicamente, pelos diversos intervenientes políticos, dizia que a Federação Russa não passava de “uma bomba de gasolina com armas nucleares”, um “tigre de papel” com um PIB equiparado ao da Holanda e um povo amordaçado por um “ditador louco” que, apenas pelo “autoritarismo” e “repressão”, se mantinha no poder.

Partindo de uma análise cuja informação parecia consubstanciar tais posicionamentos políticos, o relatório da RAND preconizava um tipo de intervenções, algumas das quais bem reportadas – outras nem por isso – na imprensa oficial. Foi o caso da tentativa de revoluções “coloridas” made in CIA na Bielorrússia, no Cazaquistão e nos países da Ásia central, os quais, em conjunto com a Geórgia e a Moldávia, seriam provavelmente “promovidos” e “apoiados” à condição de uma Ucrânia actual. A Federação Russa, tendo de acorrer a todos os fogos – uns porque se transformavam em exércitos por procuração (como a Ucrânia), outros em bases de operações de desestabilização interna lançadas pela CIA -, acabaria por se “estender” até se partir em bocados e colapsar, colocando um fim à ameaça atual. Mesmo sem esta partição, sempre se poderia chegar a um ponto em que, após a destruição do poder político vigente, seria instalado um “regime” mais dócil, apontando a uma “posição mais vantajosa no terreno”.

Dado a conhecer apenas em 2019, somos forçados a constatar que esta estratégia já estava em preparação há muito, principalmente a partir do momento em que o presidente russo perdeu a esperança de poder contar com uma “parceria” ocidental e anunciar o fim do mundo unipolar. Facto é que, o relatório tem uma ligação lógica com a National Defense Strategy de 2018 (estratégia nacional de defesa dos EUA).

Fosse quando fosse, esta estratégia entronca na estratégia de “jugoslavização” da Federação Russa. A verdade é que o itinerário constante desse trabalho foi cumprido quase escrupulosamente pela cúpula de segurança e defesa dos EUA: revoluções “coloridas”; estados transformados em exércitos por procuração; campanha de comunicação e desinformação; operações de desestabilização e sabotagem; sanções e embargos económicos. Um cardápio de fulminantes actividades “democráticas” em crescendo!

E porque é que é importante falar disto hoje? É importante porque nos últimos dias foi publicado um novo documento da RAND Corporation, mas desta feita em sentido inverso, um estudo intitulado “Avoiding a Long War U.S. Policy and the Trajectory of the Russia-Ukraine Conflict” (evitar um conflito de longa duração – a política dos EUA e a trajectória do conflito russo-ucraniano).

Se os trabalhos anteriores apontavam para os objectivos que tão propalados foram por Anthony Blinken, Biden, Nuland ou Kirby, e que passavam por um conflito duradouro que esgotasse as energias russas, de forma a permitir a remoção do obstáculo, pela força, se necessário fosse, o estudo publicado, desta feita, aponta para a realização de uma análise custo-benefício entre os custos e riscos resultantes de uma guerra longa com Moscovo e os benefícios que os EUA podem retirar de uma trajetória, que se prevê de escalada e que pode resultar numa confrontação directa.

Algo mudou e de que maneira. Primeiro era o triunfalismo e a destruição da ameaça, agora, um conflito longo traz riscos e custos que impedem os EUA de se focarem em prioridades mais prementes. Como ficamos? No início pretendia-se, precisamente, um conflito duradouro… Agora, não apenas comporta custos e riscos, como parece ser a própria Rússia que está mais confortável com a previsível extensão do conflito no tempo, ao ponto de designar Gerasimov como comandante-chefe das forças armadas, prevendo mais do que um teatro de operações em simultâneo (a RAND apontava para a possibilidade bilateral polaca).

Segundo o site Moon of Alabama, uma das melhores fontes sobre política externa dos EUA, a publicação deste estudo não surge por acaso, surgindo após uma tentativa por parte do chefe de gabinete dos EUA, Mark Milley, em promover um debate interno sobre possíveis negociações de paz com a Rússia. Perdida a batalha na Casa Branca, não conseguindo demover Biden – pois este só ouve Nuland, Blinken e Sulivan (falcões de serviço) -, optou pela exposição pública da sua pretensão, vindo apelar ao início das negociações primeiro e, talvez, suscitar a publicação deste estudo, depois.

O problema é, como escreve Tyler Durden, num dos melhores sites de opinião da actualidade que é o ZeroHedge, no seu artigo “The most Egregious Mistake” (o erro mais egrégio), recuar e inverter a direcção da política dos EUA, nesta matéria, não é, simplesmente, uma opção. A Casa Branca levou todo o Ocidente numa direção e velocidade tal, em matéria de triunfalismo, arrogância e “egrégia” imbecilidade, que não existe retorno ou inversão possíveis, sem uma total derrota da narrativa oficial e a consequente vergonha eterna. Daí que, estes esforços de Mark Miller devam resultar em muito pouco, a não ser no aprofundamento das fracturas internas, o que pode ser positivo. O facto é que, já existe gente a pretender destoar deste caminho para o abismo.

Agora, ao contrário dos diversos escritos sobre a matéria – segundo os quais, inicialmente, esta estratégia não resultava propriamente de uma necessidade mas de uma escolha, traduzida no tal “erro egrégio” -, que tendem a explicar a impossibilidade de inversão na direção da estratégia suicida actual, com o sectarismo da narrativa oficial – que só oferece certezas e resultados inequívocos -, eu, pessoalmente, tendo a considerar que não se tratou de um “erro”, nem tão pouco de uma escolha, mas sim, de um acto de desespero.

Diz a narrativa – americana – alternativa à corrente oficial, que a estratégia delineada representava uma ameaça existencial para a Rússia, mas não para os EUA. Para os EUA seria possível enveredar por outros caminhos que não os da criação deste conflito.

A meu ver, esta é uma posição condescendente e que desvaloriza os sentimentos de urgência que resultaram da análise catastrófica (nunca tornada pública) que, provavelmente, muitos terão feito quanto à situação da hegemonia estado-unidense. O facto é que, enquanto os EUA gastaram 8 triliões de dólares na guerra ao terror, canalizando para aí todos os seus esforços diplomáticos, económicos e militares… o que fizeram Rússia e China?

Enquanto os EUA usavam o pretexto do terrorismo (que eles próprios tantas vezes fomentaram e instrumentalizaram como arma de arremesso contra adversários políticos – Síria, por exemplo) para dominarem as maiores reservas mundiais de petróleo (no Médio Oriente), secundarizando outros recursos naturais, hoje com importância (como o lítio, por exemplo), a China desenvolveu as suas infraestruturas, industria, exercito e, sobretudo, a sua plataforma internacional de trocas comerciais, hoje conhecida como Belt and Road Initiative (Novas Rotas da Seda). Neste período, o Sul Global pôde experimentar uma nova forma de “soft power”, que em vez de exigir privatizações, dolarização da economia e reformulação do sistema político à moda do que dava mais jeito, tendo o FMI e o Banco Mundial como os procuradores de serviço, a integração na BRI apenas exige que os projectos facilitem as trocas entre os países (daí as infraestruturas). Em troca de recursos naturais, estes países – ao invés de corporações ocidentais e “investimento” traduzido na compra das empresas publicas -, recebem escolas, hospitais, redes 4G e 5G, portos, aeroportos, pontes, e quanto maiores e mais desafiantes melhor.

Nem a propaganda da “armadilha da dívida”, bem conhecida do FMI e dos tratados de associação com os EUA, impediu mais de 120 países de aderirem a esta rede. Entretanto e no mesmo período de tempo, a Rússia pôde reerguer-se do pesadelo neoliberal dos anos 90, recuperando a sua indústria e, acima de tudo, a sua autoestima e orgulho nacional. Um pecado mortal aos olhos da Casa Branca. Foram feitos projectos de integração euroasiática (EUEA), de cooperação internacional (BRICS) e de infraestruturas (INSTC) que contornam a influência dos EUA através dos mares, o que ajuda a blindar a economia dos países envolvidos.

Enquanto este mundo multipolar nascia nas barbas dos falcões mais arrogantes e sectários, o complexo militar industrial centrava as suas atenções na guerra ao terror. Os nossos noticiários, à data, em vez de Ucrânia, começavam e fechavam com atentados suicidas e bombas-relógio. Até que…

Quando começaram a surgir as informações sobre este mundo, sob a forma de dados concretos, o pânico começou a instalar-se. Foi por alturas de 2017/18. É claro que, na minha perspectiva, este pânico não pode confessar-se. A sua exteriorização começou a surgir através do Euromaidan, da pressão e desestabilização sobre nações da América Latina menos alinhadas, com a prisão de Lula da Silva e de outros líderes nacionais, promotores de políticas com as quais a Casa Branca não estava confortável. Aos poucos fomos vendo a política externa dos EUA dirigir-se novamente para o domínio dos recursos naturais e dos mercados e menos para o terrorismo. Chegaram mesmo a “abandonar” o Médio Oriente, deixando aí apenas os cães de guarda sionista e curdo. Era o tempo dos noticiários que abriam e fechavam com a Venezuela.

Contudo, esta inversão de rumo já denunciava, a meu ver, uma espécie de corrida contra o tempo. Tempo que tinha que ser ganho.

Perante a contínua perda de terreno, lá chegámos ao tempo do Covid (que segundo muitos é uma “cartada” da Casa Branca, provocada ou oportunista, logo veremos, a seu tempo) e à construção de uma estratégia militar que terá sido eleita como, o último dos meios – longe de ser remoto –, para “conter” a China, recém classificada como “ameaça existencial”.  O confronto no Pacífico passaria pela criação de uma NATO oriental, baptizada de AUKUS. Nessa estratégia havia que remover os obstáculos que poderiam fazer pender a balança para o lado do inimigo. Esse obstáculo era a Federação Russa. A celebração de uma verdadeira aliança estratégica entre a Federação Russa e a China demonstra que as lideranças destes dois países deixaram de ter qualquer ilusão sobre as reais intenções dos EUA. Quanto mais juntos estiverem, maior a sua protecção e maior a ameaça para os EUA.

É aqui que surge a opção “ucraniana”! A estratégia de estender a Rússia até que partisse não foi uma opção. Foi uma acção desesperada. Absolutamente! E porquê?

Não o digo apenas por causa do que antes referi e da urgência que os dirigentes da elite das Corporações Transnacionais (a espinha dorsal do Império estado-unidense) deverão ter sentido perante a informação que lhes foi chegando. Nesta fase, convém dizer que o “falhanço” da estratégia chinesa teve a sua importância nesse desespero. Para a elite corporativa que controla o poder político dos EUA, a “abertura” económica da China levaria de certeza (não sei em que ciência se basearam) à destruição do poder do Partido Comunista e à instalação de um governo de tipo neoliberal. Hong-Kong já terá sido uma etapa forçada, pois esta gente acreditava que o processo seria mais ou menos “natural”, resultando num colapso de tipo “URSS”, desta feita, na China. Mas não… Em 2015 já se dizia na Casa Branca que teriam de aprender a viver com a China como ela era. Não haveria um novo “Tiananmen” à vista.

Para a elite corporativa transnacional não existe cooperação. Existe domínio. Afinal é esse o combustível e a adrenalina do império. De qualquer um. Mas, voltando ao leste europeu, porque digo que a opção ucraniana foi desesperada?

Primeiro, foi forçada. E foi forçada porque resultou do fracasso de gente como Navalny e outros fantoches neoliberais, que deveriam ter conseguido produzir um desgaste do poder do Rússia Unida. A opção preferencial é sempre a que passa pela desconstrução e submissão interna do adversário. Não o conseguindo, sobrou apenas a militar. A militar é a componente em que os EUA ainda se consideram superiores.

O relatório da RAND apontava para um conjunto de “tarefas” que deveriam ser cumpridas para atingir-se o objectivo de “estender a Rússia” e assim conseguir uma “posição mais vantajosa no terreno”. Foi atingido esse desiderato? Não, nem por sombras.

Primeiro, falharam as revoluções “coloridas” na Bielorrússia e Cazaquistão. Não apenas não removeram os respectivos governantes como pioraram a sua situação no terreno, reforçando o poder da Rússia sobre esses países (os respetivos governos por ela “salvos”). Segundo, falharam as sanções de 2014 em diante, ao não destruírem a economia russa. Pior, deram ao país uma capacidade de viver com as sanções do Ocidente. As sanções foram “a” oportunidade de desenvolvimento, o pretexto que faltava para passar de uma economia apenas baseada na extracção de recursos, para uma economia industrial, em alguns casos de ponta e de ciclo completo, ou seja, com setores-chave soberanos e blindados contra manobras de sabotagem, a partir do exterior. Terceiro, a Geórgia não mordeu o isco e não se armou em exército por procuração, falhando o plano de criação de várias frentes de batalha. De tudo isto a Federação Russa saiu mais forte.

Enquanto o discurso para fora, por motivos ideológicos e estratégicos, continuava a ser o da “bomba de gasolina”, as acções denunciavam apenas desespero. A própria instrumentalização dos acordos de Minsk, acordos sancionados pela ONU, como forma de ganhar tempo para armar a Ucrânia, descredibilizou totalmente o Ocidente aos olhos do Sul Global. Quem engana assim, um país como a Rússia, apoiando-se num processo como o de Minsk, é capaz de tudo.

O facto de conseguirem “convencer” um país ao sacrifício por causa do poder de outro, fazendo assentar esse “convencimento” na instauração de uma doutrina neonazi, que recupera Bandera (responsável direto pela morte de milhões de polacos, ucranianos e judeus), assente na xenofobia, no ódio racial e cultural, conduzindo esse país a um golpe de estado perpetrado por forças comparáveis às SS, e fazerem esta gente toda passar por mártires e heróis, chegando mesmo a retirar o batalhão Azov da lista de organizações extremistas… Tratou-se de outra facada na confiança, por parte de um mundo composto por nações a quem ainda não foi apagada a memória e conhecem o que de mal o fascismo e o nazismo lhes trouxe. Esse mesmo mundo também sabe a contribuição decisiva que a URSS – e a Rússia, por maioria de razões – deram, no século XX, para a derrota do colonialismo e para a libertação nacional da maioria da Humanidade.

Tratou-se, também, da libertação das garras do imperialismo e colonialismo ocidentais. Do mesmo Ocidente que usou a pilhagem como momento de apropriação primitiva de riqueza, que lhe permitiu chegar primeiro ao desenvolvimento e que depois o usou para submeter, ainda mais, os pilhados. Não, este mundo já não confia no Ocidente. Este mundo não é o mesmo mundo que a média corporativa diz estar com Zelinsky.

O discurso oficial negou toda esta realidade e vendeu uma “banha da cobra”, segundo a qual, a Ucrânia, com a ajuda da poderosa NATO, venceria, sem apelo nem agravo, uma guerra de atrito contra a Rússia. Claro, a vitória seria tão retumbante que o atrito nem se iniciaria, pois, às primeiras sanções, o poder cairia na rua. Nem os milhares de agentes russos que a CIA tem no seu bolso foram capazes de o conseguir. O poder não só não caiu como se reforçou, demonstrando que ainda está por nascer a nação orgulhosa que, sendo acossada a partir de fora, se volta contra si própria. Os pressupostos da RAND continuavam a estar cada vez mais longe de se verificarem.

Segundo a imbecilidade resultante do complexo de superioridade das elites ocidentais, um país com 3% do PIB global não teria hipótese contra o poderoso G7/NATO/EU. O que diz muito da metodologia de mensuração do PIB e do uso deste enquanto forma de caracterização de uma economia. Como explicou o “velhinho” Marx, só o trabalho produz riqueza e só a transformação da matéria em algo com valor de uso traduz essa riqueza. É isso a “economia real” de que tanto fala Martyanov. Ao contrário da economia especulativa e ultra-financeirizada do Ocidente, a Rússia tem uma economia real, que produz coisas com valor de uso. Com valor “real” de uso, sem as quais não vivemos, ao contrário de um Iphone ou de um perfume Chanel. Aliás, o Sul Global tem vindo, paulatinamente, a descobrir que tem os recursos, a tecnologia e a riqueza para possuir uma economia real. E não precisa do Ocidente para isso. É o Ocidente que não vive sem o Sul Global e não o contrário. O Sul Global já o percebeu, e os EUA também.

Ao constatá-lo, e ao assistir ao espectáculo deplorável que é o constante confisco de quantias soberanas depositadas em dólares ou euros, que o Ocidente, a mando dos EUA, tanto rouba, hoje assistimos a um movimento de fuga ao dólar…

Também nisto temos muito desespero, como o processo que levou à “instauração” de um Guaidó na Venezuela ou as sucessivas tentativas de revolução “colorida” no Irão. Em ambos os casos, os dois países viram “congelados” as suas reservas no espaço G7/NATO/EU. Se este movimento, por si, já tinha colocado em sobreaviso muitos países – pois já não eram apenas os “comunistas” Cuba e República Popular da Coreia -, desta feita, o congelamento e intenção de confisco das reservas russas fez, claramente, apertar o botão de pânico. Qualquer país, independentemente da dimensão, se não aceitar a submissão, é alvo de confisco de tudo o que tenha em moedas do Ocidente colectivo.

O resultado? O resultado é BRICS+ e a cesta de moedas, é a proposta de moeda latino-americana entre Brasil e Argentina, é o retorno ao ouro, o criptoyuan e a multiplicação das trocas em moedas nacionais, como já sucede entre países euroasiáticos, Irão, China, India, Turquia e Rússia, a que muito recentemente se juntou o Paquistão, ou o caso da Arábia Saudita e China. O desafio parece ser simples: fugir às moedas “malditas”, mas sem parecer que se está a fazê-lo com urgência, não vá tudo cair aos trambolhões.

Este resultado era óbvio e foi tantas vezes previsto ao longo da última década. Inclusive em canais insuspeitos do ponto de vista da ideologia neoliberal como o Bloomberg ou Politico. Mas nem esses avisos demoveram a suicida arrogância e prepotência que resulta de 500 anos de supremacia racial ocidental.

Hoje, depois de Annalena Berbock nos confirmar que fomos arrastados para uma guerra, sem qualquer discussão democrática de fundo e reflexão pública, a não ser as infindáveis horas de propaganda “slava Ukraini” na média corporativa; tal guerra parte, também ela, de uma subavaliação das capacidades militares e industriais da própria federação russa.  Lêssemos o relatório feito pelo Congresso há uns dois anos sobre as capacidades militares da Federação Russa e veríamos que a conclusão geral era qualquer coisa como: muito armamento, mas pouco sofisticado, com problemas de precisão e ultrapassado em relação ao dos EUA. Ora, não é essa a história que contam os mais de 7500 tanques abatidos, os mais de 300 aviões, mais de 200 helicópteros e, mais importante que tudo, as centenas de milhares de vidas perdidas, principalmente de soldados (Zaluzhny terá dito ao Pentágono que seriam 232.000, fontes da CIA falam em 305.000 e a inteligência Chinesa já fala em 500.000 a 680.000). Seja o maior ou o mais pequeno, especialmente quando comparado com as perdas russas, dá-nos uma ideia catastrófica da desproporção de forças. Assistimos, de facto, a um processo de desmilitarização e desnazificação.

Com este pano de fundo, discutiu-se o envio de tanques, em mais um episódio de “armas maravilha”. Mas, desta feita, e depois de as outras não terem surtido o efeito desejado, os EUA já não querem atirar para a fogueira mais negócios de venda de armamento, como aconteceu com os “maravilhosos” HIMAR ou M777. Enviassem para lá os seus tanques Abrams e logo cairia o número de vendas. Assim, os alemães que mandem para lá os seus Panzer Gepard. Sholz não queria? Quando o ouvi dizer que só os enviaria se… Logo pensei: “ainda não recebeu o pedido não recusável de Biden e companhia”. Não demorou um dia a aparecerem imagens dos tanques a caminho da Polónia, ainda antes do anúncio público. É assim a Alemanha dos nossos dias: um aglomerado de cavaleiros teutónicos identitários montados em unicórnios, com armaduras rosa e com girassóis não mão, em vez de espadas. Uma tristeza!

Seja como for, lá se vai preparando uma campanha de primavera em que, para defender os EUA, mais 100.000 militares ucranianos, recrutados à força, serão sacrificados em nome de Bandera (multiplicam-se a velocidade alucinante os vídeos de gente a ser apanhada nas ruas, nos centros comerciais, a esconder-se da polícia…)!

Podendo já garantir-se a derrota da ofensiva (vá lá… um país como a Rússia prefere sacrificar milhões dos seus melhores filhos a submeter-se a um qualquer império ocidental), os EUA preparam-se já para a próxima manobra desesperada. A jogar em Taiwan, Japão e Coreia do Sul. Entretanto seguem-se as tentativas de revolução “colorida”, até agora frustradas (os outros estão a aprender a desarmar o exército de ONG’s da CIA), para arranjar mais candidatos a “Ucrânia” no Pacífico.

O estudo da RAND aponta precisamente para essa “prioridade”. Mais uma que levará a acções cujos requisitos prévios não se verificam e, por isso mesmo, condenadas ao fracasso. Mas como alguém, dos EUA, disse há algum tempo: “já não existem opções boas”. Só as desesperadas. Faz lembrar os últimos tempos do Reich com a sua procura pelas “armas maravilha”.

Mas se o resto do mundo já viu as cenas dos próximos capítulos, aqui no território da NATO, a média corporativa ainda anda em modo ilusório, segundo o qual, o mundo é um quintal dos EUA e o Ocidente coletivo é a referência civilizacional… É como o chavão “a Ucrânia está a ganhar a guerra”.

Será com prazer que assistirei a toda a uma multidão de jornaleiros, analistas, politólogos e outros charlatães a fazer o pino… e a dizer “ninguém previa isto”!

Não é o que fazem sempre? Em sinal de desespero?

E ainda há quem acredite neles!

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A seita

(Hugo Dionísio, in Facebook, 25/01/2023)

Hoje em dia, quem se libertar para fora da esfera “liderada” pelos EUA e acantonada no G7, EU e NATO, e assim romper com o circuito comunicacional, político-ideológico e também cultural, constituído pelo identitarismo individualista anglo-saxónico e judaico-cristão, identificativo do que se designa como “o bilião de ouro”, não pode senão chegar à conclusão de que a elite privilegiada que exerce, de facto, o poder, está cristalizada numa espécie de seita ou sociedade secreta, tão mais hermética quanto maiores são as ameaças externas ao seu domínio. O clube de Nações “livres” a que aludiu Biden na reunião do G7, é um clube seleto, mas fechado e, como em qualquer seita, para entrar é preciso prescindir de algo importante: da liberdade!

Como todas as seitas, a sua existência parte de uma noção de “exclusividade”, associada a uma certa “excecionalidade”, que justifica diferentes tratamentos e entendimentos. Acho que todos podemos concordar, que aquilo que identificamos como ideologia neoliberal se funda, pelo menos primariamente, numa ideia de excecionalismo civilizacional, fundador de uma cultura única, “eleita” para liderar o Mundo e a Humanidade. Nem os mais empedernidos fanboys da NATO podem negar o ideal, herdado das luzes europeias e do supremacismo britânico e hiperbóreo, que posiciona os EUA como líderes “eleitos” da Humanidade. Sem falar de Hollywood, no canal História (que disso tem muito pouco), sucedem-se os programas, documentários e peças sobre a origem divina, excecional, até “extraterrestre” da nação norte americana e da sua vocação civilizadora.

Aliás, é neste excecionalismo racial que radica a origem do individualismo neoliberal por oposição a uma visão mais coletiva e cooperante da Humanidade. É neste excecionalismo que se funda a lógica da competição – diz a teoria que é o melhor quem ganha (meritocracia) – por oposição à lógica que fundou as sociedades humanas e, em última análise, a própria existência do animal que somos – a cooperação, a capacidade de trabalhar coletivamente, o animal social e político.

Como em todas as seitas, existe um jargão próprio e uma tendência para o ensimesmamento, provocado pelo fechamento do circuito em que opera. Quanto maior a incapacidade para estabelecer pontes e linhas de contacto com outras existências, maior o radicalismo e sectarismo das suas posições, que se corporiza, precisamente, numa contradição a que não conseguem fugir: quanto mais querem arrastar, mais os outros lhes fogem. Se a reação da maioria dos países ao conflito no leste europeu demonstra a desconexão entre a narrativa oficial propalada no Ocidente coletivo e o entendimento que a maioria das nações e da população mundial têm do mesmo, a identificação de nações como a China, a Rússia ou o Irão como entidades agressoras e opressoras é algo que só cabe mesmo nas mentes mais sectárias da seita, ou dos seus seguidores.

Atentemos, por exemplo, ao encontro promovido pela Casa Branca para África (US-Africa Leaders Summit). À partida poderíamos vê-lo como um sucesso; afinal, mais de 40 nações africanas compareceram. Os fundos também não faltavam: à cabeça, prometiam-se 55 biliões de dólares para “ajudar” a África a desenvolver-se, combater as alterações climáticas e o terrorismo. Contudo, foi apresentado um senão: para receber o “investimento” há que “desacoplar” da  China e da Rússia. O habitual jargão da “democracia” e dos “direitos humanos” estava bem identificado, principalmente como forma de garantir a manutenção da dolarização através da adesão às instituições que o impõem (FMI e Banco Mundial). Toda a Casa Branca estava otimista. Contudo, uma vez mais, o grosso dos enviados africanos não pode ter deixado de pensar: “mas quem é que esta seita de brancos anglo-saxónicos pensa que somos? Parvos?” Choveram artigos internacionais dizendo o que soubemos logo: “para convencer África não basta conversa”!

Se nas ideologias com conexão à realidade, é a própria realidade que valida os respetivos pressupostos teóricos (mais fácil dizer do que fazer), as seitas tendem a funcionar ao contrário, optando por uma abordagem mais idealista, no sentido em que é a própria realidade que tem de se moldar às suas ideias. Os EUA não ouviram África, como não ouviram outros. Os EUA tentaram arrastar África para as suas ideias.

Quando a realidade – essa teimosa inexorável – insiste em não validar os pressupostos teóricos que justificam a existência da seita, ela opta por mover uma guerra contra a realidade, identificando os principais agentes da sua transformação e elegendo-os seus inimigos. No fundo, toda a estratégia de “contenção da China” é uma luta contra a própria realidade, consubstanciada em 5000 anos de história. Daí que, como seita que são, o resultado é também ele previsível; ou estás comigo, ou estás contra mim! O sectarismo da seita não deixa espaço para meios-termos, soluções de conjunto ou compromisso.

Analisar, hoje, a privilegiada elite ocidental, aquela que compõe a superestrutura do sistema, as suas características sociais de origem, os percursos académicos e sociais e a postura ideológica profundamente idealista, é constatar, não apenas a existência, mas o reforço e aprofundamento da lógica de seita. Neste caso, uma seita em divórcio acelerado com o mundo real e numa luta desenfreada contra a mudança das condições materiais que, numa primeira fase, não apenas originaram, como sustentaram, alimentaram e fizeram desenvolver a sua própria existência. Dos cursos Ivy League, aos postos CEO, passando por glamorosos e exclusivos cargos institucionais nas instâncias internacionais, fechados ao comum dos mortais, por “incumprimento” originário dos “requisitos” de mérito, a constituição da elite económica e política numa seita, representa também a sua aristocratização e a consequente drástica redução da mobilidade social a que tanto alude o “sonho americano”. É uma espécie de volta ao tempo dos “senhores feudais”, num claro recuo civilizacional em matéria de divisão social de classes.

Outro exemplo concreto deste funcionamento em circuito fechado é o que se passa no conflito no leste europeu. Basta ouvir as notícias no território NATO/EU/G7 para apreciarmos algumas das variáveis em que assenta a narrativa oficial. Como em todas as seitas, são os dogmas que produzem a força agregadora e centrífuga que mantém a periferia fiel ao centro. A repetição destes dogmas até à exaustão tem uma função ritualística que visa manter os fiéis mais periféricos o mais centrados possível, quase como uma reza ou ladainha. São muitas as ladainhas que, neste caso, visam manter a coesão do conjunto:

  • “Tratou-se de um conflito não provocado”, omitindo a sua origem num golpe de estado perpetrado por forças de extrema-direita e neonazis, profundamente racistas contra a população russófona, obrigando esta a acantonar-se no leste.
  • “A guerra começou em 24 de Fevereiro de 2021, com a invasão”, omitindo o real início da guerra em 2014, momento a partir do qual as regiões em secessão foram bombardeadas diariamente.
  • “O povo está todo contra o invasor”, omitindo a profunda divisão étnica da população daquele país, que levava a uma rotação constante do poder entre fações, originando 3 “revoluções coloridas” organizadas pela CIA, como forma de afastar os governos eleitos pela população russófona.
  • “As democracias contra as autocracias”, omitindo o facto de o país que designam como “democrático” ter elegido o seu governo após impedir milhões de cidadãos russófonos de exercerem o seu direito ao voto, de ter ilegalizando cerca de 13 partidos, fazendo apenas restar os que são pró Nato, que por acaso também são os de extrema-direita, sendo que, o país que a narrativa aponta como “autocrático”, assenta num sistema pluripartidário, não se lhe conhecendo casos de ilegalização de partidos.
  • “Foi invadido um país pacífico”, omitindo que este país “pacífico” tinha um exército de 600.000 homens e uma capacidade bélica composta por centenas de aviões, milhares de tanques, centenas de sistemas de defesa aérea, centenas de lançadores de misseis e milhares e canhões, tudo de fazer inveja, em qualidade e quantidade, a qualquer país da NATO, com exceção do pai da aliança, os EUA.

A este propósito, o New York Times ou a CNN surgem como os teólogos de serviço, definindo à partida as linhas dogmáticas a seguir. O editorial do New York Times de dia 21 de Janeiro (órgão que é o verdadeiro farol ideológico da imprensa do Atlântico Norte) demonstra toda a incapacidade que a seita composta pela elite privilegiada que exerce o poder de facto tem, em lidar com uma realidade que, cada vez mais, lhe foge. Como em qualquer seita, para a qual – e também face à cristalização – a realidade não se molda às suas pretensões, a opção pelo histerismo, pela demagogia, hipocrisia e cinismo, constitui um recurso necessário. No fundo, passam a mover uma guerra contra a própria realidade. Vejamos a que ponto o círculo se fecha em si mesmo:

  • A “invasão” é resultado da “loucura de um homem” solitário. Ora, acho que esta apresentação do presidente do país “invasor” como sendo um homem “louco”, é daquelas que não joga, nem na aparência, nem tão pouco na substância. Se há característica que sempre foi apontada ao presidente daquela nação foi a sua “ponderação”, “frieza” e “calculismo”. Nenhuma das características físicas ou psicológicas denuncia qualquer espécie de “loucura”, ainda para mais “descontrolada”. Por outro lado, custa a crer que um homem que colidera organizações regionais importantes – algumas das que reúnem a maioria da população mundial, como a Organização de Cooperação de Xangai, para não falar dos acordos bilaterais que vai fazendo, e das parcerias estratégicas com India, Irão, China, Turquia e muitos outros, sendo sempre visto como um parceiro confiável m-, seja efetivamente um “louco incontrolável”. Acreditar que países como a Argentina, Arábia Saudita, Indonésia, Argélia, Turquia, Emirados, Paquistão e outros – que querem entrar para os BRICS+, o fariam caso o NYT tivesse razão -, vale tanto como a “revelação” do comediante sem graça sobre o facto de tal presidente estar morto. Lá está, uma luta contra a realidade.
  • O “louco” é “cruel” e vai distribuindo um “horror regular” contra “alvos civis”. Ora, quando no mesmo artigo em que se acusa o “invasor” de provocar tais coisas (e se a guerra provoca tais coisas!), o próprio editor chefe, que o redige, vem defender uma escalada da guerra através da entrega pelos EUA de armas ainda mais letais… Afinal, o que é que faz impressão ao NYT? É a morte de civis inocentes por uma guerra que apoia claramente, ou é o facto de o objeto do seu apoio estar a perder, também claramente, essa guerra? E porque não refere, o mesmo editor, os custos que advieram para a Humanidade das outras guerras provocadas pelos EUA nos pós 11 de Setembro, que custaram ao povo americano mais de 8 triliões de dólares e milhões de sem abrigo, cerca de 1 milhão de mortos diretos e mais de 30 milhões de refugiados, cálculos feitos por organizações ocidentais (como o Brown University Watson Institute)?

O artigo continua com um sem fim de acusações deste tipo, apontando para uma narrativa heroica de um lado e uma ilusão, de outro. Esta visão é ela própria resultante de uma incapacidade, também própria da lógica de seita, de se colocar acima dos fenómenos e de os analisar numa perspetiva objetiva. O mesmo NYT que tanta tinta perde neste conflito, é o mesmo NYT que nenhuma tinta gasta relativamente aos 85 países intervencionados, atualmente, do ponto de vista militar, pelos EUA (79 operações de treino contraterrorista; 41 exercícios militares conjuntos; 12 participações em combate; 7 bombardeamentos).

Típico do funcionamento numa lógica de seita é também a pretensão de que as ações dos seus membros são todas justificadas, aceitáveis e benignas; ao passo que as ações dos inimigos são sempre malévolas. Aliás, basta olhar para o que diz a documentação oficial americana (como a 2022 National Defense Strategy, entre muita outra), referindo-se à intervenção da Rússia como “influência maligna”, e recorrendo a uma verborreia de cariz quase-religioso.

E, tal como as seitas, incapazes de fazer uma análise objetiva dos movimentos do real, basta ver como se relaciona o bloco ocidental, formado pelo G7/EU/NATO, com o resto do mundo, para se perceber o estado de negação e fechamento em que operam: “o mundo condena a “invasão””, sendo que, este “mundo” se resume a cerca de 50 países, que votam sempre isolados ou em contradição com os restantes 140, o que é bem patente no caso das sanções, cuja aplicação apenas é assumida por este “mundo” cada vez mais fechado atrás de uma barricada que diz ser “democrática”.

Vejamos o caso do artigo que desmonta totalmente a ideia de que o ocidente formado pelo bloco imperialista lidera uma qualquer pretensão democrática, emancipatória ou de libertação dos países do Sul Global ver aqui. A análise que faz das votações na AG da ONU, permite-nos retirar a conclusão de que este “mundo” unipolar, supremacista, fechado e acantonado atrás da sua própria esquizofrenia – identificando ataques em todos os que não o seguem acriticamente -, está em perfeita contradição com o mundo real, cada vez mais multipolar. Todas as votações da AG da ONU sobre a criação de um sistema económico mais justo, igualdade ou desenvolvimento sustentável, colocam o bloco “ocidental” em oposição à esmagadora maioria da Humanidade. Vejamos:

  • Em 12 de dezembro de 2022, 123 países votaram a favor da criação de uma “nova ordem económica internacional” baseada nos princípios da “igualdade, soberania, interdependência, interesse comum, cooperação e solidariedade entre Nações”. Quem votou contra? Pois… A seita. 50 Nações do Ocidente coletivo.
  • Numa votação sobre “comercio internacional e desenvolvimento”, 122 votaram a favor, 48 contra. A proposta visava regular o abuso de posições dominantes e o uso de sanções unilaterais que não sejam autorizadas pelos órgãos da ONU. Os sancionadores-mor votaram contra os sancionados ou sancionáveis.
  • Na convenção sobre diversidade biológica e o seu papel no desenvolvimento sustentável, 166 votaram a favor e só três nações se opuseram: EUA, Israel e Japão. Todos os 193 países da ONU ratificaram esta convenção, com uma exceção, os EUA.
  • Numa votação sobre a “soberania do povo Palestiniano” (aqui o NYT não consegue ver atrocidades!), 159 países aprovaram, e apenas 8 votaram contra. EUA, Canadá, Israel, Chade, Ilhas Marshall e outros que tais.

Aliás, esta votação é exemplificativa do que sucede de cada vez que se vota a condenação do bloqueio a Cuba, em que EUA e Israel, repetidamente surgem isolados contra o mundo. Este padrão repete-se constantemente quando se tratam de resoluções sobre controlo das armas nucleares de Israel. Recentemente, até em matéria de resoluções que visam condenar a ideologia Nazi e a propagação do fascismo, o mundo todo votou a favor (7 biliões de seres humanos) contra o Ocidente coletivo (1 bilião). Quando a seita bilionária ou capataz de bilionários acusa o presidente da Rússia de ser um Hitler, parece que o resto do mundo continua, muito bem, a saber quem foi Hitler e a não embarcar em hediondas transmutações históricas.

Imaginem o que pensarão os líderes das 140 nações que governam 7 biliões de seres humanos, quando lhes entra um grupo de engravatados de fato azul pela frente, a prometer “democracia” e “direitos humanos”, a troco de guerra, armas e quezílias com os países vizinhos…: “- Mas que seita esta…” – não deixarão de pensar, através dos seus diversos mas ameaçados idiomas e por entre as suas exóticas mas acossadas vestimentas tradicionais!

Como alguém disse: “só a verdade liberta”. E, ao contrário do que se diz, mesmo em guerra a verdade continua a existir, assim a saibamos identificar!

A ideia de que “na guerra a verdade é a primeira baixa” é apenas mais um dogma inventado pela seita aristocrática para poder mentir sem ser, por isso, responsabilizada.

Não espere é encontrar a verdade por entre a informação de quem usa a guerra para mentir.

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Montenegro vai ferido de asa

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 20/01/2023)

Miguel Sousa Tavares

Na caça, quando um caçador atira a uma perdiz brava em voo, acontece por vezes que não lhe acerta em cheio, mas apenas na asa, e a perdiz, apesar de ferida, continua a voar. O caçador sabe que ela está condenada, ela não. E por isso o caçador tenta imediatamente acertar-lhe novo tiro, o de misericórdia, mas também o que fará com que ela vá cair a uma distância capaz de ser “cobrada” por ele ou pelo seu cão.

De outro modo, a perdiz continuará a voar, impelida pelo balanço que leva e tirando partido do vento, até finalmente pousar fora de alcance. Então julgar-se-á a salvo, mas não está: se consegue manter o voo só com uma asa e sobreviver no chão, uma perdiz não consegue, porém, levantar voo só com uma asa, e o voo é a sua defesa. Ferida de asa, no solo, a perdiz, como dizem os caçadores, “fica para a raposa”. Para a raposa, para o saca-rabos, para o javali, para o lince, para a águia, para qualquer predador.

Não será exactamente assim na política, mas eu lembrei-me exactamente disto quando vi Luís Montenegro em claro desassossego para conseguir explicar a Bernardo Ferrão, na SIC, os seus negócios de advogado com as Câmaras de Espinho e Vagos. Quanto mais ele se abespinhava e exaltava, declarando não admitir a ninguém dúvidas sobre a sua conduta, mais eu via ali um voo de perdiz atingida por um tiro na asa. Porque aqui não há qualquer dúvida quanto aos factos, incontestados pelo próprio: durante os anos em que esteve afastado da política, o escritório de advogados de que o agora presidente do PSD detinha 50% de quota celebrou vários contratos de prestação de serviços jurídicos com as câmaras, à frente das quais estavam amigos, conterrâneos e correligionários de partido seus. O escritório facturou com isto mais de 400 mil euros e, uma vez regressado Montenegro à política como presidente do partido, fez do presidente da Câmara de Vagos membro da direcção do partido e do da Câmara de Espinho, que entretanto perdera a reeleição, vice-presidente da sua bancada parlamentar e presidente da comissão parlamentar de revisão constitucional. Tudo isto é absolutamente legal e juridicamente inatacável. Porém…

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Porém, como Luís Montenegro facilmente percebe e sabe que nós percebemos, a questão está em saber se ele e o seu escritório de advogados foram contratados por aquelas duas câmaras municipais por à frente de ambas estarem dois amigos e colegas de partido. Para quem, como eu, vê como um dos maiores perigos nas constantes tentativas de regionalizar o país o compadrio entre amigos e correligionários políticos que fatalmente se instalaria na distribuição de cargos, subsídios e dinheiros públicos, esta questão é tudo menos menor. Ora, para melhor se defender, Montenegro realçou que apenas tinha celebrado contrato com aquelas duas câmaras. Justamente: eis o que agrava a suspeita, em vez de a afastar. Fosse ele ou o seu escritório tidos como especialistas em acompanhamento jurídico de matérias do âmbito municipal, e o normal seria que outras câmaras e de outras filiações políticas recorressem aos seus serviços, e não apenas aquelas duas onde reinavam amigos e colegas de partido dele. E, vendo a questão pelo outro lado, uma consulta ao portal da Ordem dos Advogados revela-nos que há inscritos em Espinho 57 advogados e 67 em Ovar, e, mesmo não contando com as centenas que estão no Porto, ali mesmo ao lado, há uma profusão deles nas comarcas vizinhas de Espinho e Ovar: 177 em Aveiro, 74 em Oliveira de Azeméis, 60 em Paços de Ferreira, 78 em S. João da Madeira, 208 em Santa Maria da Feira. Como é que todos os contratos de Espinho durante vários anos foram sempre parar às mãos dos mesmos? E resta ainda uma outra questão, que também está longe de ser menor: como é sabido, a gestão do anterior presidente da Câmara de Espinho, Joaquim Pinto Moreira, que contratou durante anos os serviços do escritório de Luís Montenegro, está sob investigação criminal. Até agora ele não foi ainda declarado suspeito de nada nem constituído arguido, apenas alvo de buscas e apreensão do computador e telemóvel: o suficiente para ter de renunciar aos cargos que exercia na bancada parlamentar do PSD. Mas antes mesmo de as coisas avançarem mais um passo que seja, Luís Montenegro, na qualidade de ex-advogado da Câmara Municipal de Espinho nesse período, já deveria ter esclarecido que não teve conhecimento de nenhum acto ilícito da vereação e, menos ainda, deu aconselhamento ou cobertura jurídica ao mesmo.

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Devo dizer que sempre tive Luís Montenegro em grande consideração. Julgo que foi um bom líder parlamentar do PSD e não me esqueci nunca quando Ferro Rodrigues, acabado de ser eleito presidente da Assembleia da República pela maioria de esquerda e contra a tradição de sempre de o cargo pertencer ao partido mais votado, fez um lastimável discurso de posse, revanchista e ressabiado. Montenegro pediu a palavra e tranquilamente explicou-lhe como é que ele tinha acabado de perder uma primeira e única oportunidade de se estrear com grandeza. Depois disso, também o vi afastar-se tranquilamente quando o PSD entendeu não ser a sua hora e ele foi à sua vida. Mas os factos são o que são: não sabia que a sua vida tinha passado por aquilo. E aquilo foi um tiro na asa.

2 A entrevista que a presidente da Comissão Técnica Independente para o Novo Aeroporto de Lisboa (NAEL), Rosário Partidário, deu esta semana ao “Público” é de deixar um português batido nestas coisas de cabelos em pé. A comissão, saída de uma resolução do Conselho de Ministros de 14 de Outubro passado, “já está a trabalhar” para apresentar até 31 de Dezembro um relatório final que indique ao Governo a localização do futuro aeroporto. Nesta fase, “temos cerca de 20 entidades com quem nos estamos a reunir agora para saber as perspectivas, as preocupações”. E depois, acrescenta ela, vão haver “vários momentos de interacção”, como “sessões com plataformas cívicas, associações de moradores… vários grupos desses”, pois que, confessa a presidente, a parte de que mais gosta do cronograma de trabalho elaborado é “diálogos, participação e envolvimento”. Ou, traduzido para português laboral, reunite aguda, intensa e inútil. Mas porque a discussão se quer o mais abrangente possível e “porque não se quer deixar ninguém de fora” nem nenhum devaneio por contemplar, a comissão não vai limitar a escolha final às cinco alternativas indicadas pelo Conselho de Ministros, mas sim alargá-la às sugestões de qualquer um, qualquer português que algum dia se descobriu capaz de decidir onde deveria ser o futuro aeroporto de Lisboa. “Vamos ter” — anunciou ela — “um mapa interactivo onde as pessoas vão poder pôr lá o aviãozinho no local que consideram ser adequado para o aeroporto e vamos acolher todas as propostas que recebermos. Não quero que ninguém fique insatisfeito”.

Eis um original método de adjudicação de obras públicas. O futuro aeroporto de Lisboa poderá ser em qualquer lugar de Portugal e ser decidido em assembleia-geral de todos os portugueses que se inscrevam para tal. Não admira que com tantas boas intenções e frutuosas reuniões no horizonte a senhora confesse que, quanto a prazos, “espera não ser controlada ao minuto, até porque ainda não consegui pôr equipas a trabalhar”. Mas, pelo sim pelo não, vai já pedir ao Governo uma prorrogação preventiva do prazo final de 31 de Dezembro, fixado apenas em Outubro passado. Presumindo que o que ela chama de “equipas” sejam os peritos que percebem do assunto e em quem temos de confiar para uma boa solução final, é estarrecedor pensar que há mais pressa em activar os curiosos que irão pôr aviõezinhos no mapa do que os que supostamente irão pôr o aeroporto no chão. Mas isto é Portugal no seu habitual.

3 Quando o ministro da Educação resolve perguntar à Procuradoria-Geral da República se esta engenhosa greve dos professores é legal — o que, além de um direito que lhe assiste, é um dever para quem governa num Estado de direito —, o líder do S.T.O.P. ameaça que, se o ministro for avante com a sua “chantagem”, convocará outros sectores para greves iguais. Mas, com a honrosa excepção do director do “Público”, Manuel Carvalho, que lhe chamou uma “greve cobarde”, tenho visto como toda a gente, todo o espectro político e a sociedade civil, se curva no temor reverencial de criticar os métodos jamais vistos desta forma de “luta”. Para uns, são 120 mil votos, para outros, são os filhos e os netos na escola.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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