A crise planetária e o resgate da democracia

(António Sales Ribeiro Neto, in Outras Palavras, 24/04/2022)

(Este artigo, cujo título original é A crise planetária e as crises da democracia, é o segundo de uma série que se propõe a investigar as raízes das dificuldades enfrentadas pelas tentativas de governança democrática pela humanidade até hoje e, ao mesmo tempo, buscar uma compreensão ampliada acerca do acelerado e preocupante declínio dos regimes democráticos na contemporaneidade e dos possíveis desdobramentos da onda autoritária num futuro próximo.
Leia o primeiro artigo da série aqui: A nova democracia e a abolição do patriarcado.)


“O progresso na ciência e na tecnologia é um fato, ao passo que o progresso na ética e na política é uma ficção. (…) Os velhos demônios regressam, geralmente com novos nomes. O que vemos como características inalteráveis da vida civilizada se desvanece em um piscar de olhos.”
John N. Gray


Para qualquer observador que não seja tão apegado às suas mais petrificadas convicções acerca do que move o mundo, e que tenha um conhecimento mínimo dos crimes e das loucuras que acompanharam a longa e penosa aventura humana – desde quando o Homo sapiens começou a se conformar à condição de uma vida civilizada, após a revolução neolítica ocorrida há cerca de 12 mil anos –, os acontecimentos deste alvorecer de milênio nos dizem de forma inequívoca que estamos, novamente, deslizando para uma profunda crise. No entanto, desta vez, ela se apresenta como uma crise de alcance global e, assim, indica ter desdobramentos cujos reflexos poderão perdurar por milhares e milhares de anos, ou até mesmo nos induzir a imaginar que inauguramos uma fase terminal para a conflituosa história da civilização. Porém, as raízes dessa crise, sobre as quais refletiremos adiante, já estava inscrita na própria dinâmica do processo civilizatório, que nos arrastou até a atual perspectiva de um colapso social e ambiental iminente com o qual nos defrontamos no presente, prenúncio de uma insondável agonia planetária já para os próximos 10 a 20 anos.

Nas cinco décadas mais recentes, afloraram, pelo menos, quatro principais fenômenos imbricados que confirmam esse prognóstico de matiz apocalíptico, representando os catalisadores de uma tragédia global anunciada e evidenciando a total incompatibilidade e inviabilidade do sistema-mundo capitalista – que sustentou a Era Industrial inaugurada 250 anos atrás – frente ao já gravemente perturbado metabolismo do sistema Terra. São eles:

1) a superpopulação que alcançou os 7,9 bilhões, em boa medida decorrente do axioma econômico do desenvolvimento e crescimento ilimitados, que, aliada ao superconsumo, gerou, a partir de 1970, um déficit ambiental (pegada ecológica superior à biocapacidade da Terra – a humanidade passa a consumir mais do que o planeta é capaz de regenerar) no qual a civilização vem consumindo, a partir de 2021, segundo o Global Footprint Network (GFN), 74% a mais do que o que os ecossistemas da Terra podem suportar, e com tendência de mais crescimento dessa taxa;

2) as mudanças climáticas irreversíveis, cujos alertas emitidos sistematicamente desde a Conferência de Estocolmo, em 1972, considerada a primeira grande reunião de líderes de Estado organizada pelas Nações Unidas (ONU), foram ignorados, e que, segundo relatórios mais recentes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), representam irrefutavelmente um fenômeno de origem antrópica;

3) a escassez de recursos naturais, especialmente aqueles que estão na base da matriz energética global e que são indispensáveis à dinâmica que move a sociedade capitalista do consumo e da acumulação, tais como petróleo, carvão, gás natural, urânio, minérios e água potável, e que têm alimentado e exacerbado as tensões geopolíticas, já bem conhecidas de todos, representando o principal vetor de desencadeamento de guerras e conflitos desde o final do século XX;

4) o capitalismo de vigilância – utilizando aqui a denominação para as novas conformações do capital, denunciadas pela filósofa e psicóloga social estadunidense Shoshana Zuboff –, principal responsável pelo declínio dos regimes democráticos, em escala global, pela desagregação do tecido social e pelo advento da Vigilância (que considero a última expressão da cultura patriarcal milenar, assunto que abordaremos mais adiante e sobre o qual já refleti aqui no Outras Palavras), a qual vem destronando o principal alicerce da modernidade, o Estado, assim como este destronou o cristianismo, alicerce da Idade Média.

Este é o nosso dramático contexto global, a revelar um cenário extremamente adverso e desalentador para a humanidade, em que se desdobram as múltiplas crises da atualidade. E ele está intimamente associado ao recorrente declínio das várias experiências democráticas ao longo do tortuoso percurso civilizatório. É fácil fazer essa inferência com uma rápida incursão na história. Desde o surgimento dos primeiros espaços públicos da política nas antigas Grécia e Roma, os regimes democráticos experimentaram distintos momentos e situações – umas poucas aparentemente promissoras e no geral violentamente regressivas –, em diversos lugares, dentre os quais vale destacar:

1) momento de fecundidade, na sua inauguração com a democracia direta nas ágoras atenienses (séc. V a.C.);

2) de enraizamento, com a fundação da República Romana (509 a.C. a 27 a.C.);

3) de total suspensão, durante toda a Idade Média, com o Sacro Império Romano-Germânico e com as monarquias absolutas;

4) de restauração, na Renascença, com as cidades republicanas italianas (Florença, Milão, Pisa, Veneza), com a Revolução Holandesa (1581) e com a Revolução Inglesa (1648);

5) de retrocesso, com o surgimento e desenvolvimento do capitalismo mercantil (séculos XVII e XVIII);

6) de recrudescimento, com a Revolução Francesa (1789-1799) e com a revolução industrial inglesa do século XIX que inaugurou e impulsionou o sistema capitalista;

7) de profunda privação, durante a primeira metade do século XX, com os regimes nazista e fascista, que chegaram bem perto de suprimir a democracia em âmbito global;

8) de compensação, durante o curto período da democracia social instalada no pós-guerra (1947-1973), nas principais nações europeias devastadas pela conflagração mundial;

9) até chegar à situação atual de acelerado declínio, com o desmoronamento do Estado e de suas instituições, iniciado a partir dos anos 1970, provocado pelo surgimento da mais sofisticada forma de totalitarismo, o chamado neoliberalismo.

Em linhas gerais, foi esta a tortuosa trajetória da democracia pela história, que, submetida a diversos obstáculos, apresentando espasmos de vitalidade e ajustando-se aos contextos de cada momento histórico, conseguiu se sustentar e, nos dias atuais, experimenta talvez o seu pior drama, que aparenta apontar para um colapso irrefreável.

Uma das melhores análises acerca de como a democracia vem definhando na atualidade está no livro Como as democracias morrem (Zahar, 2018), dos professores de ciência política em Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Segundo eles, o novo meio pelo qual os regimes democráticos estão declinando é muito diferente dos métodos tradicionais, que invariavelmente se davam por meio de golpes de Estado sob forte coerção militar. Levitsky e Ziblatt desvendam, tomando como principal referência as circunstâncias (criadas desde os anos 1980) que permitiram a ascensão de Trump nos EUA, uma “outra maneira de arruinar uma democracia. É menos dramática, mas igualmente destrutiva.

Democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos – presidentes ou primeiros-ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder”. Trata-se, segundo eles, de um processo muito sutil, em que “as democracias decaem aos poucos, em etapas que mal chegam a ser visíveis”.

Esse fenômeno vem se alastrando rapidamente pelo mundo. Uma das avaliações que o identifica está consignada no relatório do Global State of Democracy (documento produzido pelo International Institute for Democracy and Electoral Assistance – IDEA, uma organização intergovernamental voltada ao fortalecimento da democracia no mundo), publicado em novembro de 2021. O relatório é inconteste ao afirmar que “a democracia está em risco. Sua sobrevivência está ameaçada por uma tempestade perfeita de ameaças, tanto internas quanto de uma maré crescente de autoritarismo”. Conforme mencionado nesse relatório, a erosão democrática nos últimos anos foi avassaladora, ao constatar que “43% das democracias sofreram declínios nos 5 anos anteriores; os padrões nos 10 anos anteriores foram semelhantes, afetando mais da metade das democracias”. O fenômeno alcança mais de dois terços da população mundial, ameaçando, de um lado, as grandes potências econômicas regionais como Estados Unidos, Brasil e Índia, cujas democracias eram aparentemente muito vigorosas até bem pouco tempo e, de outro, o avanço de regimes políticos tradicionalmente autocráticos, que inclui China e Rússia (a análise aqui não deve ser confundida com as riquíssimas tradições culturais das comunidades desses países) como protagonistas relevantes na nova configuração geopolítica multipolar da atualidade.

Outro estudo global sobre a democracia que vem obtendo resultados similares ao realizado pelo IDEA é o projeto Variedades de Democracia (V-Dem), coordenado pela Universidade de Gotemburgo, na Suécia. Ele adota uma abordagem para medir a democracia por meio de pesquisas realizadas junto a 3.700 especialistas de vários países, a partir das quais é montada uma base de dados que tenta mensurar o nível de democracia em cada país, considerando que a democracia está circunscrita aos seguintes princípios: eleitoral, liberal, participativo, deliberativo e igualitário.

Vale ressalvar, no entanto, que há um aspecto relevante que pode tornar reducionista esse método de avaliação do V-Dem, assim como a do relatório do IDEA, se levarmos em conta a noção de democracia em Maturana, que é a “democracia vivida”, aquela associada a uma nostalgia do modo de viver pré-patriarcal, chamado de matrístico. Nela se aceitava naturalmente a legitimidade do outro e a coexistência da diversidade de modos de vida, isto é, “os povos matrísticos europeus não tinham nada a defender, tanto porque viviam na consciência da harmonia da diversidade, quanto porque não viviam em apropriação”. Abordaremos este aspecto com mais profundidade nos textos subsequentes.

Esses dois modelos de avaliação de regimes democráticos (IDEA e V-Dem) não captam em sua análise o pluralismo de valores que são inerentes à diversidade de formas de convivência humana. O filósofo político John Gray foi um dos que estudou a fundo as sociedades liberais quanto a esse aspecto, chegando à conclusão paradoxal de que “uma sociedade pode ser civilizada sem reconhecer direitos, enquanto uma baseada em direitos pode ser contaminada pela barbárie”. Nesse caso, as duas avaliações podem se revelar muito limitadas por assumirem uma concepção ocidental de democracia que seria a melhor para todos, portanto, apropriável, universalizável e defensável (não raro, pela força das armas).

Por outro lado, o melhor diagnóstico que evidencia com mais consistência a crise global da democracia talvez esteja refletido na falta de percepção do fenômeno por parte do mercado, que é quem no final das contas conduz toda a dinâmica civilizacional, sobretudo após o laissez-faire global ter se instalado a partir dos anos 1980.

Nos anos mais recentes, o Relatório de Riscos Globais do Fórum Econômico Mundial de Davos começou a tangenciar as profundas contradições e incompatibilidades do sistema-mundo capitalista. Suas conclusões estão lastreadas nas opiniões de mais de 12 mil líderes nacionais, responsáveis por identificar e monitorar riscos críticos a curto prazo para os seus 124 países. O relatório que foi publicado agora em janeiro de 2022 constatou que as ameaças mais preocupantes para suas sociedades nos próximos dois anos são: “erosão da coesão social”, “crise de subsistência” e “deterioração da saúde mental”.

No entanto, esse relatório de Davos não faz nenhuma menção a risco associado ao declínio de regimes democráticos pelo mundo, mesmo o “capitalismo democrático” do Ocidente estando num irrefreável processo de decadência, frente à ascensão do capitalismo iliberal asiático. Esse dado confirma aquilo que a longa história da conflituosa e contraditória dinâmica política da democracia liberal, também conhecida por “democracia de mercado”, tem demonstrado: no fundo, mercado e democracia nunca foram parceiros, mas concorrentes.

Diante desse cenário de acentuado declínio dos regimes democráticos, cabe-nos indagar o que estaria por trás dessa dificuldade dos seres humanos em conviver de forma democrática. Por que, após 2.500 anos de tantas experiências democráticas, não foi possível trilhar um caminho diferente do que nos fez chegar à emblemática e perigosa situação atual? É possível vislumbrar uma volta à estabilidade civilizatória sem que haja um resgate mais abrangente e capilarizado da democracia, que considere a necessidade de sua realização também no cotidiano, nos espaços micropolíticos e, sobretudo, em relação ao meio ambiente com o qual o animal humano tem uma dependência umbilical para viver? Mesmo que aquela parcela de 0,003% da população mundial, que compreende os proprietários e os administradores das megacorporações – os chamados Ultra high-net-worth individual (UHNWI), os multimilionários que em 2020 acumularam US$ 35,5 trilhões – que ditam os descaminhos da civilização, se convença a tempo da inadaptabilidade do sistema-mundo capitalista em relação aos ecossistemas da Terra, qualquer novo arranjo pós-capitalista não passaria necessariamente por uma forma democrática irrestrita de convivência inclusiva, tolerante e plural entre o homem e o sistema Terra, do qual ele é parte integrante e inseparável?

Essa reflexão precisa também olhar para as premissas filosóficas que sustentaram o longo processo histórico, a partir das quais a civilização foi sendo moldada. Após o fracasso dos absolutismos sustentados na fé cristã, da lógica de mercado que canaliza as subjetividades para o consumo e a acumulação, dos excessos e equívocos do Estado-nação fundado nas fantasias iluministas do progresso, da razão e do individualismo e, mais recentemente, da Vigilância desencadeada pela revolução tecnológica, ainda há imaginação política e, sobretudo, tolerância ambiental por parte da Terra para comportar novas formas imperiais de convivência que, mesmo combinada com mecanismos democráticos retóricos e de baixa intensidade, possam estabilizar os impulsos humanos autodestrutivos?

Enfim, o que explicaria essa fragilidade da democracia e a inevitabilidade dos totalitarismos, das degenerações, da barbárie e da crescente perspectiva de autodestruição da humanidade?

Embora estas questões, aparentemente tão insolúveis, possam nos induzir a pensar que não há alternativas à civilização, isso só é verdade enquanto ainda estivermos presos ao padrão de pensamento que tem gerado o déficit de democracia e o consequente estado permanente de mal-estar civilizatório. O notável filósofo francês Edgar Morin, que celebrou seu centenário em 2021, em seu livro Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro (Cortez – UNESCO/ONU Brasil, 2000), nos dá algumas pistas para repensarmos o ideal de democracia. Para Morin, “a democracia fundamenta-se no controle da máquina do poder pelos controlados e, desse modo, reduz a servidão. A democracia é mais do que um regime político; é a regeneração contínua de uma cadeia complexa e retroativa: os cidadãos produzem a democracia que produz cidadãos.”

Ao que parece, a tarefa mais urgente de nossa época será questionarmos nossas mais incrustadas certezas, sobretudo aquelas que fundamentam o que entendemos por democracia. Um bom começo é refletirmos até que ponto nós somos cidadãos que produzem a democracia, como sugere Morin, isto é, em que medida realmente a vivemos em nosso dia a dia, e não nos dobramos à servidão das tiranias que a capturam e impedem a sua realização.

Enfim, o que explicaria essa enorme contradição do comportamento humano, que só alimenta cada vez mais a relação patológica da servidão voluntária? Iniciaremos essa investigação no próximo texto.

Fonte aqui


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Tão civilizada, a barbárie

(António Guerreiro, in Público, 15/04/2022)

António Guerreiro

Por razões bem conhecidas, a palavra “barbárie” voltou actualmente ao uso em larga escala e quase com um valor de interjeição. Diz-se “barbárie” para apontar e denunciar um mal radical que não se consegue compreender e que, de certo modo, não é completamente representável. Um reflexo imediato e quase instintivo leva-nos a opor essa palavra a uma outra, numa lógica de exclusão: a palavra “civilização”. E a ideia mais comum de civilização é que ela é consubstancial à ideia de progresso e de uma concepção evolucionista da História, em relação às quais a barbárie é sempre uma regressão — um “recuo civilizacional”, como se costuma dizer.

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Ora, já devíamos ter aprendido, muito especialmente por aquilo que aconteceu na Segunda Guerra mundial, que as coisas não são assim. Parece que a barbárie não é a emergência anómala de algo temporalmente e geograficamente longínquo: foi no coração da Europa que ela se revelou, em pleno século XX, num grau nunca antes alcançado; e esse grau último foi conseguido graças a um pacto necessário, por mais diabólico que pareça, com o progresso — o progresso técnico e industrial, para sermos mais precisos. A barbárie surgia assim numa condição interna à própria civilização e não exterior a ela nem tão-pouco fora da área de desenvolvimento da civilização. Aquilo a que chamamos barbárie é, afinal, um processo inscrito no próprio programa da civilização. Tão dolorosa é esta evidência, tão reveladora das contradições do progresso e da civilização, que muito se fez e se continua a fazer para recalcá-la. Mesmo um espírito lúcido como George Steiner achou que o facto de ter sido possível a existência do campo de Buchenwald tão próximo de Weimar, a cidade de Goethe e de Schiller, devia ser razão de espanto e até de incompreensão. Sabemos que esta interrogação de Steiner é uma versão culta de uma outra bastante mais popular: “Como é que isto acontece em pleno século XXI?” (uma pergunta que tem a sua origem na “grande narrativa” da modernidade).

Não faltam fontes muito respeitáveis para estas considerações mais ou menos triviais, suscitadas pela guerra em curso, sobre os modos de declinar a oposição entre civilização e barbárie. Cito uma, de um tempo anterior à cesura histórica do Holocausto, com a qual deparei recentemente: os Fragmentos Históricos que Burckhardt escreveu entre 1865 e 1885. Encontramos aí uma passagem onde Burckhardt diz que “não é possível começar pela passagem da barbárie à civilização”. Não propriamente por entender que elas são consubstanciais, no sentido em que existem no interior uma da outra, mas porque “o uso dessas palavras é finalmente uma questão de sentimento pessoal: eu considero, pela minha parte, que é uma barbárie fechar pássaros numa gaiola”. Este exemplo de Burckhardt, evocado hoje, até pode parecer ofensivo e de mau gosto, quando temos o “dever de memória” em relação a uma barbárie que não é a dos pássaros na gaiola, mas a dos homens em câmaras de gás (oh, como o gás volta novamente a estar tão presente!), e somos confrontados com as imagens e descrições da presente guerra. Os pássaros de Burckhardt convidam-nos aliás a pensar num dado novo: os animais de companhia tornaram-se muito visíveis nas reportagens sobre esta guerra. Há muita gente a fugir com os seus animais; há muitos relatos que fazem menção aos animais como vítimas da guerra, a par dos humanos; e há mesmo quem entre no teatro de guerra para resgatar animais. Trata-se de um “progresso civilizacional” em relação a guerras anteriores? Mas quantos testemunhos de barbárie se levantam, simultaneamente, e anulam estes gestos de civilização? Como se diz na linguagem desportiva: match nulo. Avança-se com uma perna e recua-se com a outra.

A ideia da barbárie como regressão a um fundo de violência arcaica é fraudulenta porque ela não é anterior a um estado de cultura. E são as civilizações que são mortais: “Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais”, escreveu Paul Valéry em 1919, sob o impacto causado pela Primeira Guerra mundial, um célebre texto intitulado La crise de l’esprit.

Para os antigos, os bárbaros eram os estrangeiros e selvagens, com hábitos e costumes cruéis; no nosso tempo, somos nós — e aqueles que são como nós — que em determinados momentos e sob determinadas condições nos tornamos bárbaros. Porque hoje toda a guerra, como previu Simone Weil, e nós estamos hoje em condições de poder confirmar, é uma guerra civil mundial.



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O sadismo tornou-se um símbolo dos Estados Unidos – Parte II

(Por Chris Hedges, 27/06/2021)

(E aqui fica a segunda parte, tão ou mais brutal do que a primeira.

Estátua de Sal, 21/08/2021)


A classe dominante dedica enormes recursos para mascarar o sadismo social e o assassinato. Controla as narrativas na imprensa. Inunda os nossos ecrãs com imagens e propaganda amigáveis e alegres, aperfeiçoadas pelas empresas de publicidade e relações públicas. Essas alucinações eletrónicas distraem-nos das limitações das nossas próprias vidas. Ofuscam a natureza fundamental do capitalismo corporativo. Atacam a nossa auto-estima e suscitam uma tomada de consciência embaraçosa sobre a nossa aparência, posição social e funções corporais. Falsificam a ciência e os dados, como fizeram as indústrias de combustíveis fósseis, pecuária e tabaco durante décadas.

Criam, como escreve Guy Debord , a “espetacular sociedade mercantil” que é um substituto sedutor para a democracia participativa. Essa tirania empresarial reduz a escolha política às prescrições sádicas fornecidas pelo poder corporativo. Isso cria uma sociedade onde há uma ausência de quase todas as construções sociais e políticas positivas. Mesmo a mudança social, reduzida a políticas de identidade e multiculturalismo, foi efetivamente castrada pela propaganda corporativa. O sentimento de agir, poder pessoal e estatuto social veem quase exclusivamente, como Nietzsche previu, a servir à máquina sádica.

Intermediários de energia da Enron, num diálogo que poderia ter vindo de qualquer grande corporação, gravado em 2000, discutindo como “roubar” a Califórnia. Identificados como Kevin e Bob, rejeitaram os pedidos dos reguladores da Califórnia de reembolsos por causa da constante manipulação de preços da empresa:

Kevin: Então o que está sendo dito é verdade? Esses filhos da puta vão tirar todo o dinheiro de vocês? Todo aquele dinheiro que vocês roubaram daquelas pobres avós na Califórnia?
Bob: Sim, caro. Mas foram elas que não souberam votar com essa porra do voto automático.
Kevin: Sim, agora querem a porra do dinheiro de volta por toda a eletricidade que você cobrou a 250 dólares o megawatt-hora.
Bob: Você sabe, você sabe, você sabe… mas isso é aquilo por que Al Gore está lutando, já viu?

Mais tarde, na mesma conversa, Kevin e Bob menosprezam os californianos:

Kevin: Oh, a melhor coisa que pode acontecer é a porra de um terremoto, deixe essa coisa flutuar no Pacífico e coloque velas neles.
Bob: Eu sei. Esses tipos, você só precisa demiti-los.
Kevin: Eles estão tão metidos na merda e tão, como posso dizer…
Bob: Eles estão tão fodidos

A obscena avareza dos muito ricos agora supera o hedonismo e os excessos dos déspotas mais hediondos e dos capitalistas mais ricos do passado. Em 2015, pouco antes de sua morte, a [revista] Forbes estimou que o património líquido de David Rockefeller era de 3 mil milhões. O Xá do Irão roubou cerca de mil milhões ao seu país. Ferdinand e Imelda Marcos acumularam entre 5 e 10 mil milhões. O ex-presidente do Zimbabué, Robert Mugabe, valia cerca de mil milhões. Jeff Bezos e Elon Musk valem cada um 180 mil milhões. Sim, o decoro da presidência de Biden difere da presidência de Trump. Mas a exploração mercenária subjacente e o sadismo da sociedade americana permanecem intactos.

O Plano de Empregos Americanos de Biden nunca criará “milhões de empregos bem remunerados – empregos com os quais os americanos possam criar suas famílias”, assim como o NAFTA, que ele apoiou, não criou como também havia sido prometido milhões de empregos bem remunerados. Seu mantra do “compre americano” é inútil. A grande maioria de nossos produtos eletrónicos, roupas, móveis e produtos industriais é feita na China por trabalhadores que ganham em média um ou dois dólares por hora e não têm sindicatos e direitos sindicais básicos [NT] . Seu apelo para reduzir as franquias e os custos dos medicamentos prescritos no Affordable Care Act nunca será permitido pelas empresas que lucram com os cuidados de saúde.

Suas promessas de tributação justa, apesar de os homens mais ricos do mundo – Jeff Bezos, Elon Musk, Warren Buffett, Carl Icahn, Michael Bloomberg e George Soros – pagarem uma taxa de impostos real de 3,4%, não serão alteradas. Os subsídios corporativos e incentivos fiscais que ele propõe como solução para a crise climática [NR] nada farão para deter a fraturação hidráulica para extrair petróleo e gás, fechar centrais a carvão ou interromper a construção de novos gasodutos para centrais movidas a gás. O dinheiro para projetos de infraestrutura é destinado a grandes corporações e governos estaduais.

O sistema de saúde continuará privatizado, o que significa que as seguradoras e as empresas farmacêuticas colherão dezenas de milhares de milhões de dólares com o Plano de Resgate Americano, e isto quando já estavam tendo lucros recordes. Os lucros que os grandes bancos, Wall Street e os especuladores globais predatórios obtêm com os níveis maciços de escravidão por dívida imposta a uma classe trabalhadora mal paga, incluindo os empréstimos estudantis, continuarão a direcionar dinheiro para as mãos de uma pequena minoria oligárquica.

Não haverá reforma do financiamento das campanhas para acabar com o sistema de suborno legalizado. Os gigantescos monopólios de tecnologia permanecerão intactos. A censura imposta pelas plataformas de media digitais, a obliteração de nossas liberdades civis e a vigilância do governo por atacado continuarão a ser aplicadas. O pedido de Biden de 715 mil milhões para o Departamento de Defesa no ano fiscal de 2022, um aumento de 1,3 mil milhões (1,6%) em relação a 2021, irá exacerbar as provocações militares com a China e a Rússia, as guerras intermináveis no Médio Oriente e a inchada indústria de defesa.

As indústrias que foram enviadas para o exterior e os empregos sindicalizados bem remunerados não voltarão. Os 81 milhões de americanos que lutam para cobrir as despesas domésticas básicas, os 22 milhões que não têm comida suficiente e os 11 milhões que não podem atender ao próximo pagamento da casa estão prestes a bater numa parede quando os parcos benefícios do alívio de contas pelo COVID acabarem e a moratória sobre despejos e execuções hipotecárias for levantada. A máquina do capitalismo predatório, e o sadismo que o define, envenenarão a sociedade com a mesma crueldade com Biden como quando Trump geria a presidência no Twitter. Essas chamadas reformas não têm mais peso do que as promovidas por Bill Clinton e Barack Obama, com quem Biden colaborou servilmente e que também prometeram igualdade social enquanto traíam homens e mulheres trabalhadores.

Biden é a epítome da criatura vazia e amoral produzida pelo sistema de suborno legalizado, aqueles que construíram a cultura de sadismo. Sua longa carreira política no Congresso foi definida pela representação dos interesses das grandes empresas, especialmente as de cartão de crédito sediadas em Delaware. Ele foi alcunhado de Senador do Cartão de Crédito. Sempre disse ao público o que ele queria ouvir e depois os vendeu.

Foi um proeminente promotor e arquiteto de uma geração de leis federais “duras com o crime” que militarizaram a polícia do país e mais do que duplicaram a população do sistema prisional, a maior do mundo, com diretrizes severas de condenação obrigatória e leis que colocam pessoas na prisão por toda a vida por crimes não violentos com drogas, mesmo enquanto o seu filho lutava contra o vício. Ele foi o principal autor do Patriot Act . E nunca houve um sistema de armas ou uma guerra que ele não apoiasse. Nada de substancial mudará sob Biden, apesar da propaganda sobre ser o próximo Franklin Roosevelt.

A administração Biden assemelha-se ao governo alemão ineficaz formado por Franz von Papen em 1932, tentando recriar o antigo regime, um conservadorismo utópico que garantiu a queda da Alemanha para o fascismo. Biden está privado, como von Papen, de novas ideias e programas. Manterá a máquina de repressão bem lubrificada, uma máquina que foi fundamental na construção da sua carreira política. Aqueles que resistirem serão atacados como agentes de uma potência estrangeira e censurados, como muitos já estão a ser, através de algoritmos e de plataformas eletrónicas nas redes sociais. Os dissidentes mais ardentes, como Julian Assange, serão criminalizados.

As elites fingem que Trump era uma anomalia bizarra. Ingenuamente acreditam que podem fazer Trump e seus apoiantes mais vociferantes desaparecerem, banindo-os das redes sociais. O “antigo regime” irá, afirmam, voltar com o decoro da sua presidência imperial, respeito pelas normas procedimentais, eleições elaboradamente coreografadas e fidelidade às políticas neoliberais e imperiais. Mas o que as elites governantes estabelecidas ainda não compreenderam, apesar da estreita vitória eleitoral de Joe Biden sobre Trump e da tomada da capital em seis de janeiro por uma multidão enfurecida, é que a credibilidade da velha ordem está morta. A era Trump, se não o próprio Trump, é, a menos que quebremos o domínio do poder corporativo, o futuro. As elites governantes, representadas por Biden e o Partido Democrata e a ala bem educada do Partido Republicano representada por Jeb Bush e Mitt Romney, estão indo para o caixote do lixo da história.

O crescente ressentimento dos desapossados é alimentado pelos media que dividiram o público em grupos demográficos concorrentes. As plataformas dos media tomam como alvo um grupo, alimentando as suas opiniões e tendências, enquanto demonizam estridentemente o grupo demográfico do outro lado do xadrez político. Isto provou ser um êxito comercial. Mas também dividiu o país em facções irreconciliáveis que não podem mais comunicar entre si, sendo a verdade e a realidade dos factos ambas sacrificadas.

O Partido Democrata, numa tentativa desesperada de controlar a narrativa mediática, construiu uma aliança com gigantes da indústria dos media sociais como Twitter, YouTube, Facebook, Patreon, Substack e Spotify para restringir ou censurar os seus críticos. O objetivo é levar o público de volta às organizações de notícias aliadas do Partido Democrata, como The New York Times, The Washington Post CNN. Mas estes meios de comunicação, que prestam serviço a anunciantes corporativos, tornaram invisíveis as vidas da classe trabalhadora e dos pobres. Eles são tão desprezados quanto as próprias elites no poder.

A perda de credibilidade também deu origem a novos grupos, muitas vezes espontâneos, bem como à franja lunática de direita que abraça as teorias da conspiração como o QAnon . Eles aproveitam a indignação emocional, muitas vezes substituindo uma indignação por outra. Fornecem novas formas de identidade para substituir as identidades perdidas por dezenas de milhões de americanos que foram postos de lado. Essa indignação emocional pode ser aproveitada para causas louváveis, como acabar com o abuso policial, mas muitas vezes é efémera. Transforma o debate político em protestos de queixa, na melhor das hipóteses, e mais frequentemente em espetáculo televisivo.

Estes episódios não representam nenhuma ameaça para as elites, a menos que construam estruturas organizacionais disciplinadas, o que leva anos, e articulem uma visão do que poderia vir a seguir. É por isso que apoio a Extinction Rebellion, que tem uma grande rede de base, especialmente na Europa, realiza atos efetivos de desobediência civil e tem um objetivo claramente declarado de derrubar as elites governantes e construir um novo sistema de governo por meio de comités populares e seleção aleatória. Mas essa indignação emocional, que colocou Trump na Casa Branca, também pode atiçar o sadismo americano, especialmente entre uma classe trabalhadora branca que se sente destronada e abandonada.

O colapso de nossa sociedade não é apenas político. É ecológico. Os cientistas há muito alertam que, à medida que as temperaturas globais [NR] aumentam, aumentando a precipitação e as ondas de calor em muitas partes do mundo, as doenças infecciosas disseminadas por animais afetarão as populações e se expandirão para as regiões do norte. Doenças zoonóticas – doenças que saltam de animais para humanos – como SIDA que matou aproximadamente 36 milhões de pessoas, gripe aviária, gripe suína, ébola e COVID-19, que já matou cerca de 4 milhões, se espalharão pelo mundo em variantes cada vez mais virulentas, frequentemente sofrendo mutações além do nosso controlo.

O uso indevido de antibióticos na indústria de criação de animais, que responde por 80% de todo o uso de antibióticos, produziu variantes de bactérias que são resistentes aos antibióticos e fatais. Uma versão moderna da Peste Negra, que no século XIV matou entre 75 e 200 milhões de pessoas, eliminando talvez metade da população da Europa, é provavelmente inevitável, desde que as indústrias farmacêutica e médica estejam configuradas para ganhar dinheiro em vez de proteger e economizar vidas.

Mesmo com as vacinas, não temos infraestrutura nacional para distribuí-las de maneira eficiente porque o lucro supera a saúde. E os do sul global estão, como sempre, abandonados, como se as doenças que os matam nunca nos alcancem. A decisão de Israel de distribuir vacinas COVID-19 para 19 países, enquanto se recusa a vacinar os 5 milhões de palestinos que vivem sob sua ocupação, é emblemática da impressionante miopia da elite governante, para não mencionar da imoralidade.

O que está a acontecer não é negligência. Não é inépcia. Não é uma falha política. É um assassinato social. É assassinato porque é premeditado. É assassinato porque uma escolha consciente foi feita pelas classes dominantes globais para extinguir a vida em vez de protegê-la. É um assassinato porque o lucro, apesar das estatísticas, das crescentes perturbações climáticas e da modelagem científica, é considerado mais importante do que a sobrevivência humana.

As elites globais prosperam neste sistema, contanto que cumpram os ditames do que Lewis Mumford chamou de “megamáquina”, a convergência de ciência, economia, tecnologia e poder político unificados numa estrutura burocrática integrada cujo único objetivo é perpetuar-se. Essa estrutura, observou Mumford, é antitética aos “valores que melhoram a vida”. Mas desafiar a megamáquina, nomear e condenar o seu desejo de morte, é ser expulso de seu santuário interno. Há, sem dúvida, alguns dentro da megamáquina que temem o futuro, que estão horrorizados com o assassinato social, que se preocupam com o que vai acontecer aos seus filhos, mas não querem perder seus empregos e sua condição social para se tornarem párias.

Os militares dos Estados Unidos – que respondem por 38% dos gastos militares em todo o mundo – são, naturalmente, incapazes de combater a grave crise existencial diante de nós. Os caças, satélites, porta-aviões, frotas de navios de guerra, submarinos nucleares, mísseis, tanques e vastos arsenais de armas são inúteis contra as pandemias e a crise climática. A máquina de guerra, que gasta 1,2 milhões de milhões de dólares para modernizar o arsenal nuclear, não faz nada para mitigar o sofrimento humano causado por ambientes degradados que adoecem e envenenam populações ou tornam a vida insustentável.

A poluição do ar já mata cerca de 200 mil americanos por ano, enquanto as crianças em cidades decadentes como Flint, Michigan ficam afetadas para o resto da vida com a contaminação de chumbo na água potável. E, além de tudo isto, os militares dos EUA emitiram 1 200 mil milhões de toneladas de emissões de CO2 entre 2001 e 2017, o dobro da produção anual dos veículos de passageiros do país.

As gerações futuras, se houver alguma, olharão para trás, para a atual classe dominante global como a mais criminosa da História da humanidade, condenando deliberadamente milhares de milhões de pessoas à morte. Esses crimes estão a ser cometidos à nossa frente. E, com poucas exceções, somos conduzidos como ovelhas para o matadouro.

O mal radical que torna possível este assassinato social é perpetrado por burocratas e tecnocratas incolores que saem das escolas de negócios, faculdades de direito, programas de gestão e universidades de elite. Nulidades demoníacas. São estes os gestores de sistemas que realizam as tarefas que fazem com que os vastos e complicados sistemas de exploração e morte funcionem. Eles coletam, armazenam e manipulam nossos dados pessoais para monopólios digitais e o Estado de segurança e vigilância. Lubrificam as rodas da ExxonMobil, BP e Goldman Sachs. Escrevem as leis que a classe política, comprada e paga, aprova. Conduzem drones que aterrorizam os pobres no Afeganistão, Iraque, Síria e Paquistão.

Eles lucram com as guerras sem fim. São os propagandistas corporativos, especialistas em relações públicas, especialistas em televisão que inundam com mentiras. Dirigem os bancos. Supervisionam as prisões. Emitem formulários. Processam papéis. Negam vales-refeição e cobertura médica para alguns e benefícios de desemprego para outros. Realizam os despejos. Fazem cumprir as leis e os regulamentos. Eles não fazem perguntas, eles vivem num vácuo intelectual, um mundo de minúcias embrutecedoras. Eles são “os homens vazios”, “os homens coisa” de T.S. Eliot. “Forma sem forma, sombra sem cor”, como escreveu o poeta. “Força paralisada, gesto sem movimento.”

Estes gestores do sistema possibilitaram os genocídios do passado. Mantiveram os comboios a funcionar. Preencheram a papelada. Apreenderam a propriedade e confiscaram as contas bancárias. Fizeram o seu processamento. Racionaram a comida. Administraram os campos de concentração e as câmaras de gás. Impuseram a lei. Eles fizeram o seu trabalho. Estes gestores do sistema, sem nenhuma educação, exceto na sua minúscula especialidade técnica, carecem de linguagem e autonomia moral para questionar as suposições ou estruturas dominantes.

O romancista russo Vasily Grossman no seu livro Forever Flowing observou que “o novo Estado não exigia santos apóstolos, fanáticos, construtores inspirados, discípulos fiéis e devotos. O novo Estado nem mesmo exigia criados – apenas escriturários.” Essa ignorância metafísica, produto de um sistema educacional que é principalmente vocacional, une as engrenagens da cultura do sadismo e do assassinato social. Não nos livraremos do capitalismo predatório e de sua cultura de sadismo com escassas esmolas do governo. Não vamos desviar-nos porque os habilidosos escritores dos discursos de Biden e especialistas em relações públicas, que usam sondagens e fazedores de opinião para nos dizer o que queremos ouvir e fazer-nos sentir que a administração está do nosso lado. Não há boa vontade na Casa Branca de Biden, no Congresso, nos tribunais, nos media – que se tornaram uma câmara de eco das classes privilegiadas – ou nas salas de reunião corporativas. Eles são o inimigo.

Vamos libertar-nos desta cultura de sadismo da mesma forma que os desapossados se afastaram do estrangulamento do capitalismo de compadrio durante a Grande Depressão, organizando, protestando e desorganizando o sistema até as elites governantes serem forçadas a conceder medidas de justiça social e económica. O Bonus Army , dos veteranos da Primeira Guerra Mundial a quem foi negado o pagamento de pensões, montou enormes acampamentos em Washington, que foram violentamente dispersos pelo exército. Grupos de vizinhança, muitos deles membros dos Wobblies ou do Partido Comunista, na década de 1930 impediram fisicamente os xerifes de despejarem famílias. Em 1936 e 1937, o sindicato United Auto Workers realizou uma greve dentro das fábricas que paralisou a General Motors, forçando a empresa a reconhecer o sindicato, aumentar os salários e satisfazer as exigências sindicais de proteção do emprego e condições de segurança no trabalho.

Os agricultores, forçados à falência e execuções hipotecárias pelos grandes bancos e Wall Street, fundaram a Farmer’s Holiday Association para protestar contra a apreensão de fazendas familiares, uma das razões pelas quais ladrões de bancos como John Dillinger, Bonnie e Clyde e a Barker Gang eram heróis populares. Os fazendeiros bloquearam estradas e destruíram montanhas de produtos agrícolas, reduzindo a oferta e aumentando os preços. Os agricultores, tal como os trabalhadores sindicalizados da indústria automobilística, suportaram ampla vigilância do governo e ataques violentos do FBI, capangas da empresa, assassinos contratados, milícias e departamentos do xerife. Mas a militância funcionou. Os fazendeiros forçaram o Estado a aceitar uma moratória nas execuções de hipotecas. Ao mesmo tempo, as manifestações em massa fora das capitais pressionaram os parlamentos estaduais a bloquear a cobrança de hipotecas vencidas.

Agricultores e rendeiros do sul sindicalizaram-se. O Departamento do Trabalho chamou à sua ação coletiva de “guerra civil em miniatura”. Em todo o país, os desempregados e os famintos ocuparam casas e terrenos baldios, formando favelas conhecidas como Hoovervilles . Os destituídos ocuparam prédios públicos e serviços públicos. Essa pressão constante e não a boa vontade de Roosevelt criou o New Deal. Ele e seus companheiros oligarcas acabaram entendendo que se não houvesse reforma haveria revolução, algo que Roosevelt reconheceu na sua correspondência privada.

Até que as pessoas sejam reintegradas na sociedade, até que o controle das corporações e oligarquias sobre os nossos sistemas educacionais, políticos e dos media sejam removidos, até recuperarmos a ética do bem comum, não temos qualquer esperança de reconstruir os laços sociais positivos que promovem uma sociedade saudável.

A história ilustrou amplamente como esse processo funciona. É um jogo de medo. E até deixarmos as elites governantes com medo, até que um aterrorizado Joe Biden e os oligarcas que ele serve olhem para um mar de gente com forcados, não pararemos a cultura do sadismo e do assassinato social que eles engendraram.

A rebelião, no entanto, deve ter sua própria justificativa. É um imperativo moral, não prático. Não apenas corrói, ainda que impercetivelmente, as estruturas de opressão, mas mantém o lume da empatia e compaixão, bem como da justiça, dentro de nós, desafiando o sadismo que impregna todas as camadas da nossa existência. Em suma, mantém-nos humanos. A rebelião deve ser abraçada, finalmente, não apenas pelo que ela vai realizar, mas pelo que ela permitirá que nos tornemos. Nesse devir, encontramos esperança.


[NT] A China, conforme declarou Xi Jinping, concretizou o objetivo da construção de uma sociedade moderadamente próspera em todos os aspetos, alcançando a histórica situação de ter erradicado a pobreza extrema. Algo que nem a UE e muito menos os EUA conseguem.
[NR] Ver A impostura global .


A primeira parte deste artigo encontra-se aqui .

[*] Jornalista. Ver Chris Hedges . Palestra feita em The Sanctuary for Independent Media , em Troy, Nova York, 27/Jun/21.

O original encontra-se em scheerpost.com/2021/06/29/chris-hedges-speaks-on-american-sadism/


Fonte aqui


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