Tão civilizada, a barbárie

(António Guerreiro, in Público, 15/04/2022)

António Guerreiro

Por razões bem conhecidas, a palavra “barbárie” voltou actualmente ao uso em larga escala e quase com um valor de interjeição. Diz-se “barbárie” para apontar e denunciar um mal radical que não se consegue compreender e que, de certo modo, não é completamente representável. Um reflexo imediato e quase instintivo leva-nos a opor essa palavra a uma outra, numa lógica de exclusão: a palavra “civilização”. E a ideia mais comum de civilização é que ela é consubstancial à ideia de progresso e de uma concepção evolucionista da História, em relação às quais a barbárie é sempre uma regressão — um “recuo civilizacional”, como se costuma dizer.

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Ora, já devíamos ter aprendido, muito especialmente por aquilo que aconteceu na Segunda Guerra mundial, que as coisas não são assim. Parece que a barbárie não é a emergência anómala de algo temporalmente e geograficamente longínquo: foi no coração da Europa que ela se revelou, em pleno século XX, num grau nunca antes alcançado; e esse grau último foi conseguido graças a um pacto necessário, por mais diabólico que pareça, com o progresso — o progresso técnico e industrial, para sermos mais precisos. A barbárie surgia assim numa condição interna à própria civilização e não exterior a ela nem tão-pouco fora da área de desenvolvimento da civilização. Aquilo a que chamamos barbárie é, afinal, um processo inscrito no próprio programa da civilização. Tão dolorosa é esta evidência, tão reveladora das contradições do progresso e da civilização, que muito se fez e se continua a fazer para recalcá-la. Mesmo um espírito lúcido como George Steiner achou que o facto de ter sido possível a existência do campo de Buchenwald tão próximo de Weimar, a cidade de Goethe e de Schiller, devia ser razão de espanto e até de incompreensão. Sabemos que esta interrogação de Steiner é uma versão culta de uma outra bastante mais popular: “Como é que isto acontece em pleno século XXI?” (uma pergunta que tem a sua origem na “grande narrativa” da modernidade).

Não faltam fontes muito respeitáveis para estas considerações mais ou menos triviais, suscitadas pela guerra em curso, sobre os modos de declinar a oposição entre civilização e barbárie. Cito uma, de um tempo anterior à cesura histórica do Holocausto, com a qual deparei recentemente: os Fragmentos Históricos que Burckhardt escreveu entre 1865 e 1885. Encontramos aí uma passagem onde Burckhardt diz que “não é possível começar pela passagem da barbárie à civilização”. Não propriamente por entender que elas são consubstanciais, no sentido em que existem no interior uma da outra, mas porque “o uso dessas palavras é finalmente uma questão de sentimento pessoal: eu considero, pela minha parte, que é uma barbárie fechar pássaros numa gaiola”. Este exemplo de Burckhardt, evocado hoje, até pode parecer ofensivo e de mau gosto, quando temos o “dever de memória” em relação a uma barbárie que não é a dos pássaros na gaiola, mas a dos homens em câmaras de gás (oh, como o gás volta novamente a estar tão presente!), e somos confrontados com as imagens e descrições da presente guerra. Os pássaros de Burckhardt convidam-nos aliás a pensar num dado novo: os animais de companhia tornaram-se muito visíveis nas reportagens sobre esta guerra. Há muita gente a fugir com os seus animais; há muitos relatos que fazem menção aos animais como vítimas da guerra, a par dos humanos; e há mesmo quem entre no teatro de guerra para resgatar animais. Trata-se de um “progresso civilizacional” em relação a guerras anteriores? Mas quantos testemunhos de barbárie se levantam, simultaneamente, e anulam estes gestos de civilização? Como se diz na linguagem desportiva: match nulo. Avança-se com uma perna e recua-se com a outra.

A ideia da barbárie como regressão a um fundo de violência arcaica é fraudulenta porque ela não é anterior a um estado de cultura. E são as civilizações que são mortais: “Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais”, escreveu Paul Valéry em 1919, sob o impacto causado pela Primeira Guerra mundial, um célebre texto intitulado La crise de l’esprit.

Para os antigos, os bárbaros eram os estrangeiros e selvagens, com hábitos e costumes cruéis; no nosso tempo, somos nós — e aqueles que são como nós — que em determinados momentos e sob determinadas condições nos tornamos bárbaros. Porque hoje toda a guerra, como previu Simone Weil, e nós estamos hoje em condições de poder confirmar, é uma guerra civil mundial.



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4 pensamentos sobre “Tão civilizada, a barbárie

  1. O civilizado precisa do bárbaro para se sentir e reconhecer. Sem o bárbaro como saberia ele que é civilizado? No bárbaro vê o civilizado a sua própria barbárie que procura ocultar e recalcar, distinguindo-se. Este esforço de distinção e afirmação do civilizado só pode ser feito à custa do bárbaro. Por seu lado, perante o civilizado reconhece o bárbaro a sua condição humana. Mais, ele vê que a distinção/superioridade/civilização do civilizado tem algo que lhe foi tirado. À custa de quem terá sido construída a civilização americana, com a qual todos nos identificamos e nos sentimos tão superiores? Não será a guerra na Ucrânia uma forma da luta de afirmação do “bárbaro”, contra a barbárie da exploração do “civilizado”?

    • “civilização americana com a qual todos nos identificamos”. Nunca me identifiquei com semelhante”civilização”.
      No resto, concordo inteiramente consigo

  2. Finalmente, leio aqui, no Estátua de Sal, e a propósito desta guerra infame declarada pela Rússia à Ucrânia, um texto que merece ser lido e que dignifica o blogue.
    Desde o início da História, iniciada há cerca 3.000 anos a.C., que o percurso da humanidade tem sido marcado pela intercalação de progresso material crescente com fenómenos dilacerantes como guerras, genocídios e barbárie sob várias formas, fazendo com que os mais pessimistas considerem negativo o saldo civilizacional, e até questionando o sentido da existência humana. Ilustra-o Edgar Morin em obras como “O paradigma perdido: a natureza humana”, com a afirmação de que o Homo sapiens contém em si um lado de loucura, ilusão, confusão, que representa o seu lado “demens”, adiantando que não existe uma fronteira nítida entre este e o outro lado, pelo que as relações do ser subjectivo com o mundo objectivo são sempre incertas e aconselham a olhar para a racionalidade com restrições. Daqui se pode inferir que os problemas mais intrincados do homem são os que ele próprio fermenta e gera no âmago da sua natureza complexa e enigmática. Porque as calamidades causadas pelos fenómenos naturais que escapam ao controlo do homem não têm impacto tão recorrente e tenebroso como os males que emergem da sua mente.
    É essa fronteira indefinível na mente humana que explica que as nações herdeiras do legado do Iluminismo foram precisamente as protagonistas das guerras até hoje as mais sangrentas da história da civilização. É ela que justifica o surgimento de criaturas malignas como Hitler e Stalin e ao mesmo tempo seres superiores como Mandela e Teresa de Calcutá. E agora os ucranianos, assim como o mundo inteiro, têm pela frente o Sr. Putin. Este, ainda agora viu destruído o seu melhor navio e retaliou atacando áreas habitacionais civis, no que, aliás, se têm resumido as suas tácticas e estratégias: bombardear cidades para mascarar a sua incompetência no confronto com as forças militares adversárias, ainda que estas sejam inferiores em número e em meios.
    Seres dessa estirpe não se classificam como espécie “não-humana”, ou seja, o animal propriamente dito, uma vez que o “inumano” conserva a racionalidade, mas que muitas vezes utiliza, paradoxalmente, contra si próprio e a ordem natural do mundo, ao passo que ao animal é vedada a faculdade da razão. É assim que o homem entra em autonegação ao despojar-se arbitrariamente da sua humanidade, como se ela fosse um fardo insuportável ou algo estranho à sua essência biológica. É assim que a racionalização da maldade humana se predispõe a estados mentais de perfeita demonização, como sucedeu em Auschwitz-Birkenau e em suas réplicas menores ocorridas em tempos já mais próximos de nós.
    E nestes dias que correm, em pleno século XXI, regressaram para nos afligir: violência inaudita contra civis, com militares a matar pessoas indefesas, a violar mulheres e crianças e até a roubar as vítimas.

  3. Tanto os militares russos como os militares ucranianos, quando de sentem atacados a partir da janela de um apartamento, o que fazem é virar a bazuca para lá, e enviar uma granada o mais certeira possível, que aniquile aquela ameaça.

    Isto é, segundo os mentecaptos que há por aí “atacam populações indefesas, nas suas casas”…

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