Príncipe Ubu no Parlamento e na televisão

(António Guerreiro, in Público, 05/05/2023)

António Guerreiro

Não está André Ventura sujeito a uma degradação do seu valor quando os media o mostram como um clown?


Sobre André Ventura não me vem nada à cabeça. Esta frase, tirando o nome próprio que aqui comparece a substituir um outro muito mais infame, não me pertence. Mas irei fazer em seguida algumas observações que já não reclamam de maneira tão óbvia alheia pertença, intrometendo-me num assunto – como dizer? – “cadente”, isto é, em queda livre. E o assunto, objecto de discussão pública, recentemente amplificada pelo primeiro-ministro, é o espaço e o tempo que os media concedem a André Ventura e ao seu partido. “Desproporcionado”, disse António Costa e dizem muitos, em relação ao que esse partido representa em termos eleitorais.

Este juízo parte de um pressuposto que passou a ser um teorema: sempre que André Ventura aparece na televisão, na rádio, nos jornais, acumula valor político, reforça o seu poder grotesco porque ele lhe é outorgado, acima de tudo, pelos media. Em nenhum momento se pergunta porque é que esse poder grotesco, sendo explicável pelo fenómeno moderno da sociedade de massa, surgiu muito antes de a política e toda a vida social, governadas pelos media, se terem transformado numa fantasmagoria espectacular que não tinha ainda atingido a sua figura extrema e completamente naturalizada quando Guy Debord, esse grande moralista francês, tão moderno e tão antigo, redigiu esta proposição lapidar que condensa a sua concepção da “sociedade do espectáculo”: “O que aparece é bom, o que é bom aparece”.

Assine já

Tanto assim é, tanto as nossas mentes estão colonizadas pelo teorema que põe André Ventura a acumular valor através de parasitação mediática, que nunca se coloca, quanto mais não seja como hipótese teórica, a seguinte questão: não está André Ventura sujeito a uma degradação do valor quando os media o mostram como um clown e exibe uma eloquência patética que só mostra a facies do discurso grotesco?

Da discussão em curso, depreende-se que ninguém põe esta hipótese, ninguém acha que André Ventura pode perder seguidores e votos pelo modo como se representa e é representado. E a palavra “representação” é aqui obrigatória porque designa a tarefa em que ele está sempre empenhado e que lhe dita a entoação, a mímica, a sintaxe. E se ninguém põe essa hipótese, se se entende que André Ventura é o nome de uma mecânica de apropriação que expropria tudo à sua volta, incluindo a crítica e, portanto, a linguagem, é porque se desistiu de ver os media como factores de produção de um espaço público crítico (que está, aliás, na base da própria noção de “espaço público). Mas neste caso o problema maior não é André Ventura, são os media, não por mostrarem Ventura com uma frequência desproporcionada, mas porque, afinal, como demonstra este caso, produzem má publicidade, mesmo quando querem produzir informação. Não este ou aquele jornal, não este ou aquele canal de televisão, mas a totalidade feita de expropriações, de fetiches e de acumulação de espectáculos.

Para escrever este texto, fui ouvir um podcast feito pelo jornalista Vítor Matos, no Expresso. O título da peça é “Entre Deus e o Diabo, Como André se fez Ventura”. Vítor Matos é, sem dúvida, um bom jornalista, mas cai aqui num erro fatal: o título anuncia logo um “herói” cuja história, como a dos heróis predestinados, coincide com o destino (“como André se fez Ventura”). E, a pouco e pouco, esta personagem onde qualquer pessoa no uso do sentido crítico só consegue ver uma fantasmagórica vacuidade, é preenchida pelo jornalista com uma densidade que é legitimada até, no podcast, pela leitura enfática de excertos de um livro que André Ventura diz ter lido e o ter influenciado muito: o Doutor Fausto, de Thomas Mann.

Vítor Matos incorre no erro do biógrafo, tão comum no jornalismo: faz do seu biografado uma personagem “interessante” (o que não quer dizer que adira a ela), certamente porque seria de pouco interesse ter de biografar uma nulidade. Na genealogia do poder grotesco, o Doutor Fausto não entra, por mais que possa ter sido referido por esta ubuesca personagem.

Num texto intitulado Os Três Tipos Puros de Dominação Legítima, Max Weber distinguia três fontes de legitimidade política: a dominação de natureza racional, a dominação tradicional e a dominação carismática. O poder grotesco que Ventura representa não pertence a nenhuma destas categorias. Preenchê-lo com esta última, o carisma, é um erro de paralaxe.



Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

Afinal havia outros e foram em comitiva ao buraco negro de Kiev com Ventura à espera de Galamba

(Por oxisdaquestao, in Blog oxisdaquestao, 03/05/2023)

A menção da ida de Augustinho SS a Kiev fotografar-se com um dos maiores corruptos do planeta não ficaria completa se não se dissesse que com ele seguiu uma delegação da AR composta por deputados pró-NATO, fidelíssimos, democratas ocasionais e apreciadores das refeições a bordo dos aviões.

A comitiva seguiu muito animada e sempre atenta aos jornalistas de turno e às câmaras infatigáveis. Talvez o voo não tenha sido da TAP que, como se sabe, está presa ao Ventura e ao seu Chega; e de tal forma que enquanto houver TAP, há Ventura e vice-versa.

Como é da praxe, mandado pela dona Úrsula e transcrito pelo sr. Borrell, os visitantes devem mal aterrem dar notícia em todas as redes sociais, TikTok opcional por ter vagamente uma ligação chinesa. O nosso herói, PR da AR, já postou no Tweeter o seu discurso de 240 caracteres e as fotos programadas. Já disse que.


A previsão de que as fotos incluiriam gorilas e teriam como pano de fundo um edifício chamuscado não se concretizou; o pessoal de Zelensky passou a ambientes políticos mais formais com mesa extensível e bandeiras coloridas, no caso, por desgosto, pouco hitlerianas e nenhuma da NATO. De notar que o presidente anfitrião continua a usar roupa desportiva em tom militar.

O nosso PR da AR teve ocasião de verificar que as calças do presidente eram oferta de Gomes Caínho, confecção e linhas nacionais. Esta circunstância aproximou de imediato as duas figuras num ambiente que os fotógrafos ucranianos, do público, da CMTV e da CNN não desperdiçaram. Esperam-se mais fotos quando a comitiva for até à noite de Kiev beber uns copos nos bares entupidos de oligarcas e seus políticos além dos traficantes de armas emprestadas pelo Ocidente. E gente bonita para os portugas amigos e salvadores …

Ventura não aparece, entusiasmado que anda com a TAP e a corrupção no Brasil do outro. De resto o homem do Chega não acredita que em Kiev se faz a maior lavagem de dinheiro dos nossos tempos, pode lá ser! Nisso até concorda com o seu recente opositor, Augustinho SS, PR da AR. Que o pessoal da NATO e os ianques não controlem é uma coisa, que os nazis são uns tipos honestos e de contas a toda a prova, outra. De Zelensky nem se fala!

Por último e por cá: o Galamba que lhe olhe nos olhos!


Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

O medo das classes médias

(Carlos Matos Gomes, in Facebook, 28/11/2022)

O que levará que duas figuras risíveis, que em princípio deveriam provocar o riso e o desprezo devido aos bufões, a ter seguidores, a ser-lhes dada atenção como se fossem seres humanos respeitáveis, dotados de valores, de um discurso coerente?

O facto de Ventura e de Rangel aparecerem nos órgãos de comunicação e perante nós – Nós – a comunidade que anda por escolas, fábricas, hospitais, universidades, igrejas, cinemas, teatros, museus, que lavra, tece, conduz comboios, aviões, autocarros, que entra numa livraria, que diz bom dia, obrigado, faz favor dar atenção e levar a sério estas duas figuras de pechisbeque, de aceitar que se apresentem como candidatos a serem os seus dirigentes, a intervir nas suas – nossas – vidas é para mim um mistério e, assumo, uma vergonha.

Haverá uma explicação para estas aberrações merecerem um segundo de atenção, um cagagésimo de respeito e crédito?

Há, e não é um bom motivo. A explicação chama-se medo!

O jornal El País de hoje contém um artigo de Joaquin Estefania (ver aqui), que explica estes comportamentos em que os mais abjetos seres de entre nós podem ser tomados como remédio e salvação.

Vivemos um momento da História (como outros) em que se perdeu o “princípio da esperança” e se instalou o medo e a incerteza. Como consequência as classes médias enfrentam a realidade assustadas como um rebanho perante uma trovoada. A indefinição do conceito de “classes médias”, permite que todos os que não pertencem aos extremos sociais se sintam temerosos pelos estragos provocados pela crise que vem, recorde-se, de 2008 e do escândalo do Lheman Brothers.

A filósofa Hannah Arendt, no livro “Homens em tempos de escuridão” escreveu que o mundo se torna negro quando os cidadãos deixam de partilhar sentimentos de responsabilidade coletiva e apenas se preocupam com os seus interesses individuais, quando perdem por completo a confiança na política e voltam as costas a tudo o que diz respeito à esfera pública. Quando a população manifesta desconfiança e receio nas instituições democráticas e o individualismo alcança cumes sem precedentes.

Os Venturas, os Rangel surgem deste medo e deste individualismo extremo.Vivemos numa sociedade doente quando monos como estes surgem no espaço público a vender banha de cobra e têm compradores.

Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.