(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 04/11/2021)

Quando o PSOE e a Unidas Podemos andavam a negociar a revogação das leis laborais aprovadas por Mariano Rajoy durante a ofensiva austeritária de 2012, a nossa imprensa deu conta do impasse (aqui, aqui, aqui e aqui, por exemplo). Fazendo eco da propaganda do PP espanhol, Marques Mendes até avisou para o risco do chumbo do PRR de Espanha. A conversa casava bem com a narrativa da irrazoabilidade do PCP e do BE, ao quererem fazer com as leis laborais impostas pela troika o mesmo que a “geringonça” fez com tudo o resto: revertê-las. Que era inaceitável pedir ao PS que regressasse às leis laborais… do PS. Em alguns casos, para propostas que o próprio PS defendeu na campanha eleitoral de 2015. Lá, como cá, isto poderia levar a uma crise política.

Um dos argumentos era a reação dos dirigentes das associações patronais – os mesmos que agora pressionam o Presidente para dar tempo ao PSD para ganhar as eleições. A birra que fizeram por causa de um suposto incidente processual que se resolveria com um telefonema, abandonando a Concertação Social, deixou claro a Costa que compraria uma guerra. E Costa, que nem com o seu camarada de partido e líder da UGT conversa, respondeu com um pedido de desculpas. Tivesse sido assim com os aumentos do Salário Mínimo Nacional, e ainda estaríamos nos 505 euros. Se bem se lembram, as confederações patronais e a oposição diziam que levaria ao colapso da economia e do emprego.
O outro argumento, que vem sempre que se quer impedir qualquer reforma de esquerda, é que a União Europeia não deixaria. Que isso nos ia pôr no radar da Comissão. O governo português só tinha de fazer o que fez o governo espanhol: remeter as alterações para o único limite aceitável – o da consonância com o PRR proposto. No caso, a Componente 23 do Plano. Que, aliás, tenta responder a dois problemas graves em Espanha – o excesso de sazonalidade e de precariedade.
Esta semana, PSOE e Podemos chegaram finalmente a um acordo. Até ontem, não tinha sido dado o mesmo destaque mediático que teve o impasse. Porque o acordo choca com a narrativa que tornava impossível o que afinal é possível: socialistas e forças à sua esquerda reverterem os pacotes laborais do início da década passada. Dizer que isto aconteceu em Espanha é dizer que o interdito português resulta de uma opção política, e não de uma impossibilidade. E isso não dá jeito nem à direita, nem ao PS.
“O Governo está comprometido com a revogação da reforma laboral de 2012, nos termos que estabelece o acordo de coligação e o Plano de Recuperação enviado à Comissão” Europeia, diz o primeiro dos 3 pontos do acordo, abrindo portas para “construir um novo modelo de relações laborais”, acompanhando a modernização da economia, “graças aos fundos europeus”. Os pontos mais urgentes já são conhecidos: a revogação das limitações ao âmbito de aplicação temporária da convenção coletiva, “alargando-a para além das disposições nela contidas, após o fim da sua validade e até à negociação de uma nova” (talvez o debate mais relevante para nós, em torno na caducidade das convenções coletivas) e a revogação da prioridade de aplicação dos acordos empresariais sobre os acordos sectoriais.
O apoio da maioria parlamentar não é difícil, mas os detalhes finais das propostas vão continuar, ao fim de mais de sete meses de negociações (não foi apresentado num Conselho de Ministros à margem daqueles a que se pede maioria para governar), a ser discutidos com patrões e sindicatos. A ministra do Trabalho, Yolanda Diaz, denuncia que, graças ao “modelo de precariedade” firmado pela reforma laboral do PP, registaram-se 180 milhões de contratos na última década, sendo um em cada quatro com uma duração inferior a sete dias.
Há, de facto, algumas diferenças entre a nossa “geringonça” e a espanhola, que até a teve como modelo. Em Espanha, a função do Podemos não é dedicar-se à mercearia orçamental uma vez por ano, enfeitando as contas públicas com adereços que possam ser exibidos em cartazes quando vierem as eleições. O Podemos tem ministros e, para o bem e para o mal, é corresponsável pela governação. Há um acordo de legislatura (com negociação em cada Orçamento), que é o mínimo dos mínimos para se falar de “parceiros”, e não habilidades de um primeiro-ministro a jogar com a cenoura de uns apoios sociais e o pau de uma crise política.
Mas, acima de tudo, o PSOE é um partido de origem operária, com forte implantação sindical. E os sindicalistas socialistas pressionar para esta solução. Ao contrário da generalidade dos partidos socialistas e social-democratas, o PS não tem o trabalhismo no seu ADN. Por isso, as alas esquerdas são, ao contrário do que acontece por essa Europa fora, vistas como corpos estranhos ao PS; as exigências laborais aparecem como sinais de esquerdismo e somos dos poucos países europeus em que os sindicatos são em grande parte dominados por comunistas. E tudo isto contou para que a nossa “geringonça” (original) não fosse tão a sério como a (cópia).