Montenegro vai ferido de asa

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 20/01/2023)

Miguel Sousa Tavares

Na caça, quando um caçador atira a uma perdiz brava em voo, acontece por vezes que não lhe acerta em cheio, mas apenas na asa, e a perdiz, apesar de ferida, continua a voar. O caçador sabe que ela está condenada, ela não. E por isso o caçador tenta imediatamente acertar-lhe novo tiro, o de misericórdia, mas também o que fará com que ela vá cair a uma distância capaz de ser “cobrada” por ele ou pelo seu cão.

De outro modo, a perdiz continuará a voar, impelida pelo balanço que leva e tirando partido do vento, até finalmente pousar fora de alcance. Então julgar-se-á a salvo, mas não está: se consegue manter o voo só com uma asa e sobreviver no chão, uma perdiz não consegue, porém, levantar voo só com uma asa, e o voo é a sua defesa. Ferida de asa, no solo, a perdiz, como dizem os caçadores, “fica para a raposa”. Para a raposa, para o saca-rabos, para o javali, para o lince, para a águia, para qualquer predador.

Não será exactamente assim na política, mas eu lembrei-me exactamente disto quando vi Luís Montenegro em claro desassossego para conseguir explicar a Bernardo Ferrão, na SIC, os seus negócios de advogado com as Câmaras de Espinho e Vagos. Quanto mais ele se abespinhava e exaltava, declarando não admitir a ninguém dúvidas sobre a sua conduta, mais eu via ali um voo de perdiz atingida por um tiro na asa. Porque aqui não há qualquer dúvida quanto aos factos, incontestados pelo próprio: durante os anos em que esteve afastado da política, o escritório de advogados de que o agora presidente do PSD detinha 50% de quota celebrou vários contratos de prestação de serviços jurídicos com as câmaras, à frente das quais estavam amigos, conterrâneos e correligionários de partido seus. O escritório facturou com isto mais de 400 mil euros e, uma vez regressado Montenegro à política como presidente do partido, fez do presidente da Câmara de Vagos membro da direcção do partido e do da Câmara de Espinho, que entretanto perdera a reeleição, vice-presidente da sua bancada parlamentar e presidente da comissão parlamentar de revisão constitucional. Tudo isto é absolutamente legal e juridicamente inatacável. Porém…

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Porém, como Luís Montenegro facilmente percebe e sabe que nós percebemos, a questão está em saber se ele e o seu escritório de advogados foram contratados por aquelas duas câmaras municipais por à frente de ambas estarem dois amigos e colegas de partido. Para quem, como eu, vê como um dos maiores perigos nas constantes tentativas de regionalizar o país o compadrio entre amigos e correligionários políticos que fatalmente se instalaria na distribuição de cargos, subsídios e dinheiros públicos, esta questão é tudo menos menor. Ora, para melhor se defender, Montenegro realçou que apenas tinha celebrado contrato com aquelas duas câmaras. Justamente: eis o que agrava a suspeita, em vez de a afastar. Fosse ele ou o seu escritório tidos como especialistas em acompanhamento jurídico de matérias do âmbito municipal, e o normal seria que outras câmaras e de outras filiações políticas recorressem aos seus serviços, e não apenas aquelas duas onde reinavam amigos e colegas de partido dele. E, vendo a questão pelo outro lado, uma consulta ao portal da Ordem dos Advogados revela-nos que há inscritos em Espinho 57 advogados e 67 em Ovar, e, mesmo não contando com as centenas que estão no Porto, ali mesmo ao lado, há uma profusão deles nas comarcas vizinhas de Espinho e Ovar: 177 em Aveiro, 74 em Oliveira de Azeméis, 60 em Paços de Ferreira, 78 em S. João da Madeira, 208 em Santa Maria da Feira. Como é que todos os contratos de Espinho durante vários anos foram sempre parar às mãos dos mesmos? E resta ainda uma outra questão, que também está longe de ser menor: como é sabido, a gestão do anterior presidente da Câmara de Espinho, Joaquim Pinto Moreira, que contratou durante anos os serviços do escritório de Luís Montenegro, está sob investigação criminal. Até agora ele não foi ainda declarado suspeito de nada nem constituído arguido, apenas alvo de buscas e apreensão do computador e telemóvel: o suficiente para ter de renunciar aos cargos que exercia na bancada parlamentar do PSD. Mas antes mesmo de as coisas avançarem mais um passo que seja, Luís Montenegro, na qualidade de ex-advogado da Câmara Municipal de Espinho nesse período, já deveria ter esclarecido que não teve conhecimento de nenhum acto ilícito da vereação e, menos ainda, deu aconselhamento ou cobertura jurídica ao mesmo.

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Devo dizer que sempre tive Luís Montenegro em grande consideração. Julgo que foi um bom líder parlamentar do PSD e não me esqueci nunca quando Ferro Rodrigues, acabado de ser eleito presidente da Assembleia da República pela maioria de esquerda e contra a tradição de sempre de o cargo pertencer ao partido mais votado, fez um lastimável discurso de posse, revanchista e ressabiado. Montenegro pediu a palavra e tranquilamente explicou-lhe como é que ele tinha acabado de perder uma primeira e única oportunidade de se estrear com grandeza. Depois disso, também o vi afastar-se tranquilamente quando o PSD entendeu não ser a sua hora e ele foi à sua vida. Mas os factos são o que são: não sabia que a sua vida tinha passado por aquilo. E aquilo foi um tiro na asa.

2 A entrevista que a presidente da Comissão Técnica Independente para o Novo Aeroporto de Lisboa (NAEL), Rosário Partidário, deu esta semana ao “Público” é de deixar um português batido nestas coisas de cabelos em pé. A comissão, saída de uma resolução do Conselho de Ministros de 14 de Outubro passado, “já está a trabalhar” para apresentar até 31 de Dezembro um relatório final que indique ao Governo a localização do futuro aeroporto. Nesta fase, “temos cerca de 20 entidades com quem nos estamos a reunir agora para saber as perspectivas, as preocupações”. E depois, acrescenta ela, vão haver “vários momentos de interacção”, como “sessões com plataformas cívicas, associações de moradores… vários grupos desses”, pois que, confessa a presidente, a parte de que mais gosta do cronograma de trabalho elaborado é “diálogos, participação e envolvimento”. Ou, traduzido para português laboral, reunite aguda, intensa e inútil. Mas porque a discussão se quer o mais abrangente possível e “porque não se quer deixar ninguém de fora” nem nenhum devaneio por contemplar, a comissão não vai limitar a escolha final às cinco alternativas indicadas pelo Conselho de Ministros, mas sim alargá-la às sugestões de qualquer um, qualquer português que algum dia se descobriu capaz de decidir onde deveria ser o futuro aeroporto de Lisboa. “Vamos ter” — anunciou ela — “um mapa interactivo onde as pessoas vão poder pôr lá o aviãozinho no local que consideram ser adequado para o aeroporto e vamos acolher todas as propostas que recebermos. Não quero que ninguém fique insatisfeito”.

Eis um original método de adjudicação de obras públicas. O futuro aeroporto de Lisboa poderá ser em qualquer lugar de Portugal e ser decidido em assembleia-geral de todos os portugueses que se inscrevam para tal. Não admira que com tantas boas intenções e frutuosas reuniões no horizonte a senhora confesse que, quanto a prazos, “espera não ser controlada ao minuto, até porque ainda não consegui pôr equipas a trabalhar”. Mas, pelo sim pelo não, vai já pedir ao Governo uma prorrogação preventiva do prazo final de 31 de Dezembro, fixado apenas em Outubro passado. Presumindo que o que ela chama de “equipas” sejam os peritos que percebem do assunto e em quem temos de confiar para uma boa solução final, é estarrecedor pensar que há mais pressa em activar os curiosos que irão pôr aviõezinhos no mapa do que os que supostamente irão pôr o aeroporto no chão. Mas isto é Portugal no seu habitual.

3 Quando o ministro da Educação resolve perguntar à Procuradoria-Geral da República se esta engenhosa greve dos professores é legal — o que, além de um direito que lhe assiste, é um dever para quem governa num Estado de direito —, o líder do S.T.O.P. ameaça que, se o ministro for avante com a sua “chantagem”, convocará outros sectores para greves iguais. Mas, com a honrosa excepção do director do “Público”, Manuel Carvalho, que lhe chamou uma “greve cobarde”, tenho visto como toda a gente, todo o espectro político e a sociedade civil, se curva no temor reverencial de criticar os métodos jamais vistos desta forma de “luta”. Para uns, são 120 mil votos, para outros, são os filhos e os netos na escola.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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Carreiras não paga aos traidores

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 17/01/2020)

Daniel Oliveira

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O presidente da Câmara de Cascais, Carlos Carreiras, conseguiu a proeza de me envolver no confronto interno do PSD. Usando a lógica que entusiasma sempre o sectarismo de todos os partidos, explicou que se um adversário elogia alguém do lado oposto é porque o elogiado está a falhar. Numa ação de Luís Montenegro, a que foi declarar apoio depois do seu vice se ter ficado abaixo dos 9%, disse: “Não vi, até agora a extrema-esquerda a fazer grandes elogios ao doutor Luís Montenegro.” E acrescentou: “Quando vi Daniel Oliveira fazer grandes elogios ao doutor Rui Rio, no mínimo é de nós desconfiarmos.”

Quanto a eu ser de extrema-esquerda, não perco muito tempo, sobretudo quando é dito para consumo de militantes partidários. Apenas fico preocupado com o peso absurdo com que a extrema-esquerda fica se usarem os critérios de Carreira. Porque se eu sou de extrema-esquerda o BE é de extremíssima-esquerda, o PCP é de ultra-extremíssima-esquerda, as alas mais esquerdistas destes partidos serão de mega-ultra-extremíssima-esquerda e partidos como o MAS e o MRPP serão de super-mega-ultra-extremíssima esquerda. Tendo em conta que partilho valores e posições políticas com muitos militantes socialistas e do Livre, isto implicaria que a extrema-esquerda, da sua versão paradoxalmente mais moderada à mais radical, valerá uma parte nada negligenciável do eleitorado. Um ponto de vista aceitável para a Iniciativa Liberal ou o Chega, que acham que o socialismo começa no CDS, mas mais difícil de defender por um quadro do PSD. Mas adiante.

Como não quero “tomar por lorpas” os militantes do PSD (expressão de Carreiras), penso que vale a pena explicar porque é que o raciocínio de que um elogio de um adversário é a prova do nosso erro, sendo sedutor, não é uma boa forma de pensar a política. E é revelador de uma das razões que me levam a criticar o espírito que rodeia a candidatura de Montenegro – incluindo, ao que parece, os apoiantes que vêm de Pinto Luz.

Esclareço o óbvio: sou de esquerda. Serei socialista ou social-democrata (no sentido clássico e original do termo, e não no seu abastardamento, que até permite um partido de centro-direita a identificar-se como tal). Desde muito antes de ter sequer aderido ao BE e, por isso, desde sempre da sua ala moderada até a rutura se ter tornado inevitável. Mas sou seguramente contrário à linha programática do PSD. Deste ponto de vista, apesar de não ter filiação partidária, sou um adversário do PSD. E é assim que devo ser ouvido e lido. Nunca fingi, ao contrário de muitos propagandistas da direita mais radical que se tentam fazer passar por puros analistas políticos, ser o que não sou. Acho que a declaração explícita do meu posicionamento político é um contrato de confiança com os meus leitores, sobretudo os que de mim discordam.

Ao perguntar “se nem Roma pagou aos traidores, porque é que o PSD há de agora pagar aos traidores?” Carlos Carreiras explicita o pior da política partidária. Eu próprio ouvi-o vezes sem conta como libelo contra qualquer pensamento crítico e livre. O extremismo não se mede pela radicalidade política. Mede-se pela intolerância para com o outro, que cava fossos de incomutabilidade entre pessoas que partilham valores fundamentais.

Apesar disto, os elogios que mais aprecio são os que vêm de pessoas que começam por dizer que não concordam comigo em quase nada. Porque sei que refletem um respeito intelectual e ético que não depende de afinidades políticas. Porque, mesmo que Carlos Carreiras me enfie no indiferenciado saco da extrema-esquerda que uma análise séria ao meu posicionamento ideológico dificilmente lhe permitiria, acredito que a tolerância intelectual nos permite respeitar e admirar aqueles a que nos opomos. E a defender o seu papel no jogo democrático.

Já fiz muitas críticas a Rui Rio. Considero-o pouco claro do ponto de vista programático e pouco preparado do ponto de vista ideológico. No mesmíssimo dia em que Carlos Carreiras terá ouvido um elogio meu a Rui Rio, disse que parece acreditar que o programa do PSD é ele e que isso chega. Que não parece ter perfil para conseguir conquistar o governo do país. Isso não me impede de o considerar, a partir da minha subjetividade, um homem sério. Já fiz elogios semelhantes a Adriano Moreira, Diogo Feio, Adolfo Mesquita Nunes, Bagão Félix, David Justino ou Roberto Carneiro. Se há coisa que os que me conhecem sabem, para lamento dos sectários deste e do outro lado da barricada, é a facilidade que tenho em construir relações de respeito e amizade com pessoas de direita. Porque se acreditam no que defendem e o que defendem não promove a cultura do ódio, não avalio o seu caráter pelas suas convicções políticas.

Na realidade, Carlos Carreiras não acredita no que disse. O Presidente da Câmara de Cascais já fez grandes elogios a Pedro Nuno Santos, de quem estou ideologicamente muito mais próximo do que ele. Não me passaria pela cabeça dizer que isso é razão para a esquerda desconfiar do ministro. Pelo contrário, o respeito dos adversários pode ser sinal de qualidade. Não deixam de ser adversários por isso. Ainda assim, com capacidade de, aqui e ali, convergirem.

Os dois elogios que faço a Rui Rio é achar que ele é um produto genuíno, coisa de que a democracia precisa como de pão para a boca, e por me parecer globalmente honesto na sua relação com a coisa pública. E digo-o em contraste com a avaliação que faço, provavelmente injusta, do seu oponente. E, por estranho que possa parecer, prefiro pessoas de direita honestas e genuínas. Ao contrário dos maniqueístas, não atribuo essas características a nenhum espaço político-ideológico específico e acho que elas são úteis em qualquer democrata.

É claro que também faço uma análise política das duas candidaturas. É a mais relevante, aliás. Considero que Montenegro, pelo seu percurso e por muitos dos que o apoiam, corresponde a um retorno ao passismo, que o PSD, seja qual for o balanço que faz desse período, precisa de superar. E aprofunda uma cultura de trincheira que não é saudável para a democracia. Parece-me que este caminho entregará todos os que não votaram no PSD nas duas últimas eleições ao PS e fará do PS um partido charneira. E que isso é mau para a esquerda, para a direita e para a democracia. Para a esquerda, porque deslocará o PS ainda mais para o centro, tornando difícil a construção de maiorias de esquerda coerentes no futuro. Para a direita, porque a reduz a uma representação de fação, sem capacidade de construir alternativas políticas. Para a democracia porque ela precisa que alternativas de poder com alguma coerência se confrontem.

Como Carlos Carreiras, Marcelo Rebelo de Sousa e quase todo o país, acho que o bloco central seria uma tragédia que só faria crescer a extrema-direita. Mas o confronto tem de manter mínimos de diálogo para ser produtivo. E esse diálogo faz-se com base em alguns adquiridos civilizacionais – que eram firmes até ao advento da extrema-direita na Europa, EUA e Brasil – e evitando a demonização moral do opositor, que se tornou habitual depois do caso Sócrates.

Ao contrário do que Carreira pensa, eu quero uma direita democrática forte. Primeiro, porque sei que a esquerda se afirma quando tem opositores sólidos, e não no meio da sua decadência. Depois, porque sei que a decadência da direita democrática não atirará os seus eleitores para a esquerda, mas para a extrema-direita. E é a incompreensão de que mesmo entre mim e Carlos Carreiras poderá haver alguma partilha de valores mínimos que me assusta, como forma de olhar para a política.

A lógica proposta por Carlos Carreiras, que chamou “traidor” a Rui Rio por ter apoiado posições críticas ao comportamento do Governo no tempo da intervenção da troika e que vê o elogio e respeito de um opositor como sinal de fraqueza, ajuda a explicar o estado de degradação do debate político. Ao perguntar “se nem Roma pagou aos traidores, porque é que o PSD há de agora pagar aos traidores?” Carlos Carreiras revela o pior da política partidária. Eu próprio, na minha militância política, ouvi-o vezes sem conta como libelo contra qualquer pensamento crítico e livre.

Esta postura é, ela sim, típica de um extremista. O extremismo não se mede pela radicalidade política. Foram radicais os que defenderam coisas tão disruptivas como o fim da escravatura ou da pena de morte, a Escola Pública para todos ou o Serviço Nacional de Saúde gratuito, as férias pagas ou a instituição do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Já o extremismo mede-se pela intolerância para com o outro, que cava fossos de incomutabilidade entre pessoas que partilham valores fundamentais. Entre pessoas que acreditam em coisas tão básicas como a democracia representativa, a liberdade de imprensa e de expressão ou os direitos humanos. Entre elas, há confrontos que até podem ser violentos. Não há traidores.

Rio não oferece oposição ao PS. Montenegro oferece-lhe o centro

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 13/01/2020)

Daniel Oliveira

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Rui Rio não é um líder empolgante. Ou pode ser apenas uma questão de tempo. Lembro-me de António Guterres ser um burocrata cinzento, Durão Barroso um falhado e Passos Coelho um eterno “jotinha”. Se a proximidade do poder pode oferecer carisma a uma alforreca, a sua distância pode tirar carisma a quem nasceu para liderar. Não estou a dizer que é o caso de Rio. Mas sua história política está mais ligada a vitórias do que a derrotas. É indiscutível que tem um estilo próprio, que joga bem com este tempo e que o tem favorecido quando deixa de ter intermediários na relação com o eleitorado de direita. É muito difícil reconhecer isto em Luís Montenegro, o típico político dos corredores e dos golpes palacianos. Bom tribuno, dificilmente desperta empatia com os eleitores. Mais uma vez, esta imagem pode mudar se tiver o poder ao seu alcance.

Mas este não é o momento em que o PSD se limita a escolher entre perfis de liderança. Os anos de chumbo da austeridade tiveram um altíssimo preço na base eleitoral do partido e as mudanças na direita europeia fazem tremer os seus frágeis pilares doutrinários.

Por conveniência interna ou impreparação política, Rui Rio e o partido não olharam para os efeitos profundos que os anos da troika tiveram na sua base de apoio. E, tirando umas frases desgarradas sobre o Chega, são incapazes de se posicionar em relação à radicalização de parte do eleitorado da direita. Nascido para ser “uma coisa em forma de assim”, o PSD não tem tradição de debate ideológico e político e, mesmo em crise, continua a comportar-se como uma mera plataforma de conquista do poder. Não faz esta discussão de forma explícita. Mas ela está lá.

Luís Montenegro representa o regresso ao passismo. Muitos dirão que esse passismo de que se fala não foi mais do que a máscara nacional para o que a troika ou as circunstâncias obrigaram o governo que herdou a bancarrota a fazer. Essa é, aliás, a tese de Rui Rio. Só que isso não é verdade. Mesmo assumindo que expressões como “ir para além da troika” foram meros artifícios para um governo de um país intervencionado fingir que tinha alguma autonomia, Passos Coelho teve um programa às eleições internas do PSD. As que perdeu e as que venceu. E teve um projeto de revisão constitucional ideologicamente claro e radical. Na realidade, a troika não o afastou da sua vontade, permitiu-lhe aplicar parte do seu programa. E os portugueses sentiram-no nas medidas que tomou e nas que não tomou, no que cedeu à troika e no que não se opôs, no que disse para justificar os seus atos e nos alvos que escolheu para eles.

Tenham sido as escolhas que fez fruto da convicção ou da necessidade, o PSD precisa de superar Passos Coelho. Assim como o PS precisou de superar José Sócrates. Paradoxalmente, o processo judicial contra Sócrates facilitou, apenas nisto, a vida aos socialistas. O corte, mesmo dos que eram próximos do ex-primeiro-ministro, foi inevitável. Compreensivelmente, ninguém se sente órfão de Sócrates no PS. Compreensivelmente, ainda há muitos órfãos de Passos no PSD.

Só que Passos é a ferida que deixou o PSD debilitado. Porque a sua política de austeridade atingiu sobretudo os mais velhos e reformados, indispensáveis aos partidos de direita. Aqueles que, ao contrário dos restantes, não têm como se adaptar à perda de rendimentos. Porque, depois disso, desprezou as eleições autárquicas, de que o PSD precisava para resistir à travessia do deserto. E porque o fez especialmente em Lisboa e Porto, agravando um processo de esvaziamento do centro-direita nos grandes centros urbanos. O PSD perdeu os reformados, perdeu os pobres e perdeu as autarquias. E tudo isso é, por culpas próprias e alheias, o legado de Passos Coelho. Montenegro, em vez de o superar, regressa a ele. Rio não faz nem uma coisa nem outra. O que quer dizer que não melhora nada, mas ao menos não volta para trás.

Depois, há o que está a acontecer na Europa e no mundo. O centro-direita está a deixar-se encantar pela direita antidemocrática e ultraconservadora. Em vez de lhe disputar o espaço, combatendo-a, imita-lhe o estilo. Legitima a sua agenda aos olhos dos seus eleitores que, depois, tendem a preferir o original à cópia.

Não é claro que este seja o caminho proposto por Luís Montenegro, mas é acarinhado por uma parte razoável dos que gravitam à sua volta. De Maria Luís Albuquerque a Miguel Morgado, os sinais de aproximação a um discurso mais musculado da direita são evidentes. E esta opção representaria, como representou em quase todo o lado, o suicídio do centro-direita português. Rui Rio está, pelo percurso pessoal, pela geração a que pertence e pela sua estratégia, a léguas desta tentação. Não estou seguro que represente uma alternativa clara. Mas não dará um passo para o abismo.

Uma vitória de Luís Montenegro seria um recuo para o passismo, em vez de o superar, e um avanço para o abismo da radicalização, em vez de o combater. Rui Rio, não estimulando, deixa tudo onde está. Esperando, como fizeram outros líderes do PSD, que António Costa se desgaste.

O que, sem maioria nem estratégia para além da gestão do pântano político que está a criar, não será difícil. Rio não oferece, por agora, grande oposição a António Costa. Luís Montenegro oferecer-lhe-ia o centro, transformando o PS no partido charneira. É mau para todos. Para a esquerda, que perde o seu partido hegemónico. Para a direita, que fica encostada a um canto radicalizado. E para a democracia, que deixa de garantir a escolha entre duas alternativas.