Quo Vadis, Justiça portuguesa? – (1)

(Carlos Esperança, 10/01/2022)

A absolvição do ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes, é justiça, mas tardia, depois de ser julgado nos media, obrigado a demitir-se e achincalhado pela falta de jeito para gerir respostas aos jornalistas por crimes de que era acusado e cuja existência ignorava.

Tal como Miguel Macedo, nos vistos Gold, ou Paulo Pedroso, no processo Casa Pia, a sua carreira terminou com uma insólita perseguição e julgamento na opinião pública, a que a violação do segredo de justiça nunca foi alheia.

Às vezes, fica a impressão de que, perante destacadas figuras da política, há uma agenda desconhecida que procura destruir na opinião pública quem, à falta de factos delituosos, urge destruir na praça púbica, através da divulgação de calúnias ou meras suspeitas.

Em que país um juiz de instrução que fosse ao Parlamento, acompanhado de câmaras de TV, prender um deputado, ex-ministro, que nem sequer seria acusado, seria promovido aos Tribunais superiores?

A violação sistemática do princípio do «juiz natural», um princípio sagrado em direito penal, causa as maiores apreensões, e perplexidades a reincidência do mesmo juiz. É o mais mediático juiz português, não pela qualidade da sua investigação, que até pode ser excelente, mas pela notoriedade dos arguidos e facilidade com que acolhe os palpites do Ministério Público. Acresce que este juiz, numa entrevista à SIC e, em clara alusão a um político que investigava, declarou que não tinha amigos ricos, embora beneficiado com um empréstimo do procurador amigo, Orlando Figueira, um dos principais arguidos da Operação Fizz.

No caso de Tancos, o juiz quis ouvir o PM, o que o Conselho de Estado recusou, e, para surpresa, os media referiam que insistia no depoimento presencial do PM, sem que em Belém fosse recebido novo pedido. Terá sido incontido desejo de consideração pessoal que o levou às desmedidas exigências e a discordar da decisão do Conselho de Estado?

Quando um juiz de instrução reiteradamente avisa a comunicação social do que decide, antes de o comunicar aos órgãos de soberania visados, e se permite tornar pública a sua discordância com o Conselho de Estado, não é a sua independência que está em causa, é o abuso da autoridade com que afronta os outros órgãos de soberania, é a insuportável arrogância, indigna de um Estado de direito, a pequenez de quem se julga ungido para todas as afrontas e a ameaça de uma ditadura de Juízes que a Assembleia da República, o Governo e o PR não podem consentir.


Quo Vadis, Justiça portuguesa? – (2) – Emídio Rangel e os sindicatos de magistrados

O falecido jornalista Emídio Rangel, fundador da TSF e ex-diretor-geral da SIC acusou, em 2010, na AR, numa comissão de inquérito sobre o tema da liberdade de expressão e os meios de comunicação social, a ASJP e o SMMP de serem “duas centrais de gestão de informação processual, concretizada através da promiscuidade com os jornalistas”.

O prestigiado jornalista foi alvo de uma ação movida pelos exóticos sindicatos e acabou condenado, em 8 de maio de 2012, a pagar a cada um, além de 50 mil euros, por danos não patrimoniais, 300 dias de multa à taxa diária de 20 euros, o que totalizou 106 mil euros, sendo parte desse valor já pago pelos herdeiros após a sua morte, em 2014.

Num país onde a liberdade de expressão honra a jurisprudência, a pena deixa a sensação de vingança corporativa. Foi a decisão de juízes sobre a queixa de outros juízes.

Emídio Rangel não se conformou e recorreu para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) que, agora, 7 anos depois da sua morte, condena o Estado Português a pagar 31.500 euros às herdeiras a título de danos materiais, e 19.874,23 euros a título de custas e despesas, no caso relacionado com liberdade de imprensa (Ver notícia aqui).

A vitória para a liberdade de imprensa e respeito por um dos jornalistas mais inovadores na informação televisiva, exigem a divulgação da decisão que redimiu a injustiça.

Não sei se é possível obrigar a ASJP e o SMMP a restituírem as importâncias recebidas, para ressarcir o Estado, mas exige-se aos cidadãos que reflitam na legitimidade sindical dos magistrados judiciais e no perigo dos seus sindicatos para a politização da Justiça.

A notícia, apesar de contrariar a jurisprudência portuguesa e de se referir a um dos mais proeminentes jornalistas, passou despercebida entre o ruído mediático para denegrir o governo e a constituição de arguido do ex-ministro Cabrita, passageiro do carro oficial em excesso de velocidade, por homicídio negligente, num acidente.

No dia seguinte à divulgação do acórdão do TEDH (12-1), o presidente da ASJP, no seu artigo quinzenal no Público, criticou os programas do PS e PSD para a Justiça, nas decisões e/ou omissões, mas foi omisso nas desculpas às filhas do ilustre jornalista e na restituição do dinheiro recebido da herança pela ASJP.

Os presidentes dos sindicatos de magistrados, ansiosos por conhecerem os colegas que pertençam à maçonaria ou à Opus Dei e, já agora, porque não ao Opus Gay, podiam informar o País se os juízes que condenaram Emídio Rangel eram sindicalizados.

É bem mais importante para os cidadãos saberem se são sindicalizados os juízes que julgaram as ações propostas pelos seus sindicatos do que se pertencem a associações cívicas ou religiosas, tanto mais que o TEDH considerou que os tribunais portugueses não fundamentaram adequadamente a decisão judicial na qual condenaram Emídio Rangel e que tudo o que se passou não era necessário numa sociedade democrática.

Segundo o TEDH, o tribunal português deu como provado que Emídio Rangel agiu com dolo e proferiu juízos e declarações consideradas ofensivas para as duas organizações judiciárias, sentença confirmada pela Relação de Lisboa, que reduziu para 10 mil euros a indemnização para cada um dos sindicatos, e que o STJ decidiu a favor dos sindicatos, aumentando, de novo, o valor da indemnização.

A sentença do TEDH é uma séria derrota do corporativismo judicial e uma vitória da liberdade de imprensa que se saúda.


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O escândalo do dia

(José Sócrates, in Diário de Notícias, 03/12/2021)

Nesta nova temporada televisiva do “cartão azul”, o único crime de que temos a certeza que foi cometido é o crime de violação do segredo de justiça. Enquanto decorre tranquilamente em frente dos nossos olhos, este parece ser o elemento ausente- presente da história, o crime de que ninguém quer falar. O nosso sistema penal evolui assim por transgressão. A continuada infração acabará por criar a sua própria lei e o crime acabará consentido e reservado aos agentes estatais. Um crime institucional, por assim dizer. Eis no que que se transformou o nosso sistema penal – o Estado acima da sua própria lei.

A tolerância social a estes crimes tem sido habilidosamente promovida sob a alegação de que estas violações do segredo de justiça têm objetivos nobres e visam um respeitável interesse público. Nem uma coisa nem a outra. Desde logo, em razão dos autores. Os que dão as informações ou que sugerem as suspeitas, são aqueles a quem está atribuída a responsabilidade institucional de guardar o segredo do processo penal em nome dos direitos constitucionais. Por outro lado, se pusermos de lado a hipocrisia do discurso social dominante, facilmente verificaremos que não há aqui nenhum “superior interesse público”, mas uma motivação muito mais humana, a venalidade. O que se passa é um negócio, uma troca de favores: dá-me informação que pago com elogios; eu ganho audiência, tu ganhas uma biografia.

Agora é o Porto, ontem foi o Benfica. Primeiro, as buscas, depois as suspeitas, depois a campanha de difamação, tudo devidamente encenado para o espetáculo televisivo. Eis o padrão que virou método. Aos visados nada mais resta senão assistir incrédulos à violência que lhes é dirigida no jornal das oito. Na verdade, nada podem fazer a não ser declarar que estão a colaborar com a justiça porque não sabem exatamente de que são acusados.

Por ora só sabem que são suspeitos. Mais à frente se verá, que os autos estão ainda em segredo de justiça. Fica também a sensação de que desta vez só não houve prisões por temerem que os aficionados do Porto não aceitassem, como aceitaram no Benfica, mudar a sua direção por decisão judicial. Seja como for, durante três dias é um festim – de maledicência, de infâmia, de covardia. Depois o silêncio. A violência simbólica do silêncio geral sobre o método e sobre o crime. O ministério público já nem se dá ao trabalho de disfarçar – fora de questão abrir um inquérito.

Há uns anos, num interessante episódio porventura já esquecido, o inspetor de finanças que liderava a investigação afirmava que uma certa notícia só poderia ter tido origem nele próprio, no procurador ou no juiz. Nenhuma consequência. Agora a nova operação desenrola-se com o mesmo inspetor, o mesmo procurador, o mesmo juiz e, de novo, nada acontece. A cumplicidade do sistema judiciário com estas práticas começa a ser absolutamente escandalosa. Não é apenas abuso de poder, mas a obscena exibição pública de um poder ilegítimo que acabará por corroer a confiança nas instituições de investigação. O que estamos a ver é um Estado a ajoelhar perante agentes que, em seu nome e por via de regra, violam a lei.

E, todavia, não deixa de ser extraordinário que com tanta gente a falar do assunto, sobre negócios que não conhecem e sobre pessoas publicas que têm uma reputação a defender, ninguém pergunte pelas provas do que afirmam com tanta certeza. Ninguém pergunte onde estão os factos que justificam as suspeitas. Ninguém pergunte nada. E, já agora, onde está a acusação do Benfica? Onde estão as provas contra o Benfica que justificaram as prisões e a mudança de direção? Silêncio. O escândalo de hoje como forma de esquecimento do escândalo anterior.

Ericeira, 2 de dezembro de 2021


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Os justiçáveis

(José Sócrates, in Diário de Notícias, 26/07/2021)

Tudo igual, tudo igual, tudo desesperadamente igual. A detenção usada para investigar e a violação do segredo de justiça usada para difamar. No centro da ação mediática já não está uma pessoa com os seus direitos, mas um alvo a que ninguém dará ouvidos quando chegar a sua vez de dizer qualquer coisa em sua defesa. A maledicência estatal resultou em pleno e o plano foi repetido sem falhas, pouco importando se toda a atuação se baseou na ação criminosa de violação de segredo de justiça. Afinal, quem ainda liga a isso? Quem se interessa ainda por saber se havia ou não fundamento legal para a detenção? Salvo honrosas exceções, os jornalistas, encantados por tanto escândalo e por tanta audiência, apenas divulgam e festejam e aplaudem. Por eles está tudo bem e não há razão nenhuma para questionar as autoridades, que só poderiam ver nisso ingratidão. Afinal de contas, são elas que fornecem a informação que lhes alimenta a ação.

O direito penal evolui assim por transgressões. Se violarmos as normas muitas vezes, as pessoas acostumam-se e aceitam. Agora, prende-se primeiro e pergunta-se depois; agora, arrastam-se as pessoas para a cadeia para humilhar, para despersonalizar e para intimidar os outros – calem-se, que vos pode acontecer o mesmo. A detenção para interrogatório deixou de ser um dispositivo extraordinário da ação judicial para se transformar num vulgar instrumento da violência estatal quando identifica o inimigo social. O segredo de justiça há muito que se transformou em ferramenta à disposição das autoridades, usada por forma a substituir a presunção de inocência pela presunção pública de culpabilidade. Um novo tempo e uma velha cultura. Lentamente, a caminho de um estado policial.

O espetáculo de violência estatal concentra-se, portanto, nestes dois pontos – a prisão abusiva e a campanha de difamação alimentada pela violação do segredo de justiça. Abuso e crime, eis o comportamento institucional onde se já se vislumbra o que a senhora ministra da Justiça chamou, em artigo recente, “direito dos justiçáveis”. Este novo mundo precisa de novas categorias e novas gramáticas. A expressão põe de lado o clássico fundamento da dignidade pessoal e dos direitos universais e convida a separar uns e outros. Eis como tudo encaixa. Na verdade, Joe Berardo e Luís Filipe Vieira já não são indivíduos com direitos, são “justiçáveis”.

No livro O nosso agente em Havana, Graham Greene expõe a teoria sobre as classes “torturáveis” e não “torturáveis”: ” Há pessoas que esperam ser torturadas e pessoas a quem tal ideia enche de indignação ( …) a polícia pode usar de toda a brutalidade que quiser com os imigrantes da América Latina e dos estados do Báltico, mas não com os visitantes do seu país ou da Escandinávia (…) Os católicos são mais torturáveis do que os protestantes “. A nova linguagem da ministra não é, portanto, completamente nova. O que é novo é que, para lhe encontrarmos o rasto, tenhamos que regressar a um mundo de guerra fria, de tortura, de ditaduras latino-americanas e de conversas de chefes de polícia.

Impossível também não reparar na primeira entrevista do senhor presidente do Supremo Tribunal de Justiça dada ao jornal Observador: “Há um excesso de garantias de defesa. Se queremos uma justiça mais rápida temos que cortar com isso”. Cortar com isso, nada menos. Ao senhor juiz presidente não impressiona que as autoridades penais prendam durante onze meses sem que apresentem qualquer acusação durante esse período. Não impressiona que se adiem indefinidamente uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes os prazos legais de inquérito. Não o impressiona a despudorada e ostensiva violação do segredo de justiça. Nada disto lhe suscita qualquer reflexão. Na nova dialética “justiceiro – justiçáveis” que nos é proposta, esse problema parece não vir ao caso, já que estamos a falar dos segundos, que são problemáticos, e não dos primeiros que são intocáveis. Mas vamos ao que importa. O que é extraordinário é que a única preocupação do senhor Presidente seja a de se perguntar se ainda faz sentido que o Estado Democrático garanta ao cidadão o direito a poder recorrer de uma decisão judicial que considere errada ou injusta. É absolutamente extraordinário. E mais extraordinário ainda é o silêncio. A violência do silêncio.

Finalmente, no Benfica, a cena em palco é ainda mais repulsiva. Nem uma palavra de simpatia por quem ainda ontem era o líder da equipa. Nem uma palavra. O cadáver ainda não arrefeceu e ali só se vê cálculo e ambição e poder e oportunismo. Aquelas pessoas perderam-se ali mesmo, no preciso momento em que encenaram o megalómano espetáculo do estádio vazio de onde emergiria a figura redentora. No final, o pano desce tristemente, mostrando que por detrás dele nada existe – nem legitimidade, nem gravitas. Os mais calculistas são frequentemente os mais incautos. À volta, de novo, o silêncio.

Ex-primeiro-ministro


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