Nada como um dia depois do outro

(José Sócrates, in Diário de Notícias, 15/11/2023)

Veio a terça-feira, depois a quarta, e por aí fora. Há uma semana que o Partido Socialista é massacrado diariamente nas televisões, sendo apresentado como um partido dirigido por gente desonesta. Desta vez a ação do Ministério Público derrubou um Governo, acabou com uma maioria absoluta e dissolveu a Assembleia da República. Em apenas quatro horas a vontade popular livremente expressa nas urnas foi substituída pela decisão de realizar novas eleições. E, no entanto, o conselho dos estrategas do partido é que a luta é contra a direita, não contra o sistema judiciário. A caminho do cadafalso, os lábios dos socialistas entoam cânticos de confiança na Justiça. Esplêndido.

Mas desta vez há debate. Pelo menos há debate. Os procuradores expressam, apressadamente, o argumento de que todas as suspeitas têm de ser investigadas. Princípio da legalidade, dizem eles – investigar todas as suspeitas. E, no entanto, não é nada disso que está em causa. A investigação existe há quatro anos e ninguém protestou contra ela. O que está em causa são os motivos para prender, para fazer buscas e para tornar públicas suspeitas que, podendo fundamentar a decisão de investigar, não justificam a violência sobre as pessoas. Isso, sim, é o que está em causa.

E, depois, o tempo. O ponto crítico nesta história é o tempo. Quando o Ministério Público decide prender, fazer buscas em casas particulares e tornar pública uma investigação, deve ter já na sua posse provas que considere suficientes da culpabilidade dos envolvidos. Deve estar pronto para acusar. Pois bem, não está. Todos sabemos que esta investigação vai durar anos, que os suspeitos vão pedir a aceleração processual, que os prazos de inquérito não vão ser cumpridos e que os procuradores manterão os suspeitos devidamente presos na prisão da opinião pública durante o tempo necessário a que outro tempo político floresça.

Ainda assim, os socialistas acham que não podem passar os próximos quatro meses a discutir um processo judicial, mesmo que esse processo, esse processo em concreto, lhes tenha retirado ilegitimamente a maioria absoluta no Parlamento e o direito a governar. E, talvez mais importante, mesmo que esse processo tenha detido cinco pessoas por motivos fúteis e arruinado a sua reputação pública.

Parece que a declaração de princípios do PS ainda “considera primaciais a defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos (…).” Todavia, agora não há tempo para discutir a Constituição ou as garantias constitucionais. Os socialistas não têm tempo para discutir a liberdade. A armadilha mental da direita resulta em pleno – criticar os abusos do Ministério Público é “atacar a Justiça”, dizem eles. Quanto aos socialistas, não querem perder tempo, Nem quatro meses, nem quatro dias, nem quatro horas. Alguém disse que “todos os que se calam são dispépticos”. Sim, este silêncio faz mal ao estômago.

Parece que nos processos de Moscovo, os condenados, já encostados à parede e prontos para enfrentar o fuzilamento, ainda gritavam viva Estaline.

Aqui, nesta democracia, o Ministério Público presta contas a Deus, não aos homens, que se devem limitar a baixar a cabeça e expressar a sua confiança na Justiça. Daqui a quatro meses haverá novo governo, haverá novos escândalos e haverá novas oportunidades para dizer que confiamos na Justiça. Nada de novo debaixo do sol – apenas a Justiça a funcionar.


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Um país doente

(José Sócrates, in Diário de Notícias, 01/10/2023)

Dizem que o julgamento de Manuel Pinho vai começar e não quero fazer parte da coligação de silêncio nacional que se estabeleceu com o propósito de normalizar a inacreditável sucessão de abusos judiciais no processo penal que enfrenta.

No final de julho, como estarão lembrados, a sua pensão foi novamente arrestada. Ela tinha sido arrestada uma vez e a decisão revogada pelo Tribunal da Relação. Foi arrestada uma segunda vez e, mais uma vez, foi desarrestada pelo mesmo Tribunal. Foi agora arrestada uma terceira vez. Na altura alguém me disse que desta vez tinham ido longe demais, que era um escândalo e que iria haver uma reação. Grave engano.

Os que assim pensam não perceberam ainda onde chegou a falta de escrúpulos com o direito democrático. O jornalismo começou imediatamente a operação de normalização – o incidente é reportado como um exercício de contorcionismo. Desta forma, dizem os jornalistas, o Ministério Público contornou o acórdão do Tribunal da Relação. Pronto, contornaram. Simples exercício de inteligência – contornaram. A especialidade do jornalismo português é normalizar o absurdo.

O que se passou não foi nenhum contorno, foi um infame espetáculo de desobediência a uma sentença de um tribunal superior. Os veredictos dos tribunais não são um obstáculo que possa ser contornado – são decisões que devem ser acatadas por todos, em particular pelas autoridades penais. O que se passou é, pura e simplesmente, um abuso de poder. Um episódio de bandalheira judicial. O Departamento Central de Instrução a Ação Penal exibe assim o seu esplêndido poder, cumprindo apenas as decisões judiciais que lhe agradam, não as outras. As outras devem ser contornadas. E o que é absolutamente extraordinário neste episódio é que são sempre os mesmos protagonistas a recusar obedecer, uma, duas, três vezes. Sempre o mesmo procurador e sempre o mesmo juiz. Os dois recusam aplicar as decisões dos tribunais superiores. Os dois acham que estão acima da lei. Melhor, os dois acham que eles são a lei.

A violência estatal contra Manuel Pinho é obscena. E o silêncio à volta dessa violência mais ainda. Está preso preventivamente há quase dois anos em razão de perigo de fuga que foi deduzido de três factos. O primeiro facto é a venda de património em Portugal, o que é falso. É verdade que no final de 2016 vendeu a sua casa em Lisboa para amortizar o empréstimo bancário, mas nessa altura não havia nenhuma notícia de que era suspeito em qualquer processo e, por essa razão, é impossível ligar essa venda a qualquer intento de fuga. Mais ainda, depois dessa venda Manuel Pinho herdou várias propriedades e não vendeu nenhuma, tendo investido, aliás, na recuperação da antiga casa de sua mãe onde habita presentemente. Portanto, e em conclusão, toda a história da venda de património é uma fraude.

O segundo facto é o de encerramento de contas bancárias em Portugal. Igualmente falso. Manuel Pinho não encerrou nenhuma conta bancária em Portugal. Pura e simplesmente isso nunca aconteceu.

Finalmente, o terceiro facto que levou os procuradores a invocarem perigo de fuga, é que Manuel Pinho terá decidido viver no estrangeiro (mais concretamente em Alicante, Espanha) quando soube da constituição como arguidos dos dirigentes da EDP. De novo, a história é falsa. As medidas de coação a António Mexia e Manso Neto foram decididas em 2020 e Manuel Pinho decidiu viver em Espanha em 2018, antes, portanto, de ambos terem sido constituídos arguidos. Esse facto consta do documento oficial passado pelas autoridades espanholas datado de julho de 2018. Em conclusão, os três argumentos são falsos.

Há, todavia, um outro argumento, um quarto argumento, para justificar o perigo de fuga – Manuel Pinho tem filhos a viver no estrangeiro. Bom, esse argumento é verdadeiro, mas o leitor que julgue por si próprio o que ele significa. Para mim, a invocação desta razão é tão repugnante que me faz imediatamente lembrar o tempo em que as polícias de Estado convidavam os filhos a denunciar os pais.

Bem vistas as coisas, e pondo de lado o cinismo que envolve tudo isto, a verdadeira razão por que Manuel Pinho está preso não tem nada a ver com estes argumentos, mas com o facto de ser um antigo ministro de um Governo socialista ou, melhor dizendo, um antigo ministro de Sócrates. Assim sendo, não tem direito a ser levado a sério. A sua defesa não tem direito a ser ouvida. Os juízes que validaram a prisão não pediram ao procurador que apresentasse as provas do que afirma porque há muito que o processo penal foi virado do avesso – o Estado acusa sem ter de provar seja o que for, basta o apontar do dedo.

Em última análise, o caso de Manuel Pinho segue o padrão das modernas táticas penais do DCIAP – difamação, prisão e mentira. Muita mentira. Sem culpa formada, sem direito a defesa e, é claro, sem direito a presunção de inocência.

Ficámos agora a saber que o Estado português lhe nega a mais elementar das garantias constitucionais, qual seja a de ver cumpridas as decisões judiciais que lhe dizem respeito. Foi a isto que chegámos. Quanto ao jornalismo, com afetuosa lembrança de tempos melhores, há muito que se deixou de interessar pela verdade.


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Uma manhã no combate ao crime

(José Sócrates, in Expresso, 16/07/2023)

O antigo primeiro-ministro escreve sobre a manhã de buscas à casa de Rui Rio: “A espetacular ação judicial daquela manhã não decorreu sob o rigor do Estado de Direito, mas do arbítrio do Estado de exceção. E no Estado de exceção quem decide a exceção é o verdadeiro soberano”.


Sim, aquelas buscas são um caso sério. Muito sério. A começar pelo que está mesmo à frente dos nossos olhos: o único crime que temos a certeza de ter sido cometido é o crime de violação do segredo de justiça. Um crime em direto na televisão. Um crime cuja especial gravidade consiste em ter sido praticado por agentes do Estado, aqueles a quem confiamos o cumprimento da lei – o polícia, o procurador ou o juiz.Ninguém mais sabia. Assim começa o dia no prodigioso mundo do combate ao crime económico – cometendo um crime. Mais de cem agentes policiais envolvidos, dizem com orgulho. A desvalorização deste crime é um dos silêncios da conversa oficial sobre a atuação judicial. Ela tem sido habilidosamente promovida sob a alegação de que tem objetivos nobres e de que visa um respeitável interesse público. Na verdade, nem uma coisa nem a outra.

Nenhum interesse público justifica o crime e a violação da lei e nenhuma moral particular disfarça o que é: evidentemente, um abuso de poder. Os que dão estas informações aos jornalistas não são justiceiros, são criminosos. A espetacular ação judicial daquela manhã não decorreu sob o rigor do Estado de Direito, mas do arbítrio do Estado de exceção. E no Estado de exceção quem decide a exceção é o verdadeiro soberano. Mas há mais. Há também as buscas por motivos frívolos.

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A operação escancara perante todos a costumeira e escandalosa prática de ordenar buscas exclusivamente destinadas ao espetáculo televisivo. Há muito que as invasões policiais do domicílio privado deixaram de ser decididas em função da utilidade para a investigação ou da necessidade de obter provas que, de outra forma, não se poderiam obter. Acompanhadas das câmaras de televisão, as buscas servem para ferir, para humilhar, para intimidar, para destruir a reputação dos visados. A câmara de televisão transforma-se assim no novo instrumento do poder estatal. O novo punhal do assassinato político. Nada disto é precipitação ou maluqueira. Não. Há um método e um propósito por detrás de tudo isto.

A tese é que o direito penal evolui por transgressões. Se violarmos as normas legais com frequência, elas passam a ser outras. Reescrevemos a lei, violando-a muitas vezes. Há muito que a separação de poderes está ameaçada, não por invasões do poder político no poder judicial, mas exatamente ao contrário – quem tem mandato apenas para aplicar a lei acha que chegou o momento de se substituir ao Parlamento para a mudar segundo a sua vontade e o seu interesse.

Tudo isso está a acontecer a uma velocidade assustadora. A ação judicial contemporânea foi lentamente transformando as buscas domiciliarias em ações rotineiras, como se o direito à inviolabilidade residencial constituísse agora uma garantia constitucional obsoleta e arcaica. As buscas sem fundamento sério são um dos mais sérios indicadores da deriva penal autoritária em desenvolvimento.

Finalmente, o motivo. O sério motivo.

Aparentemente, dizem os relatos, a ação policial, com tantos agentes, com procuradores no terreno e com a assinatura de juízes, destina-se a esclarecer a distinção legal entre atividade parlamentar e atividade partidária, questão que julgávamos reservada a quem tem falta de assunto para uma tese de doutoramento. Para os outros, para os que têm ainda alguma cultura democrática, parece óbvio que toda a atividade parlamentar é também atividade partidária, visto que os lugares do parlamento ainda são monopólio dos partidos e na medida em que só eles têm a prerrogativa de propor candidatos a sufrágio. Mas servirá a explicação de alguma coisa? Não me parece. No espaço televisivo basta pronunciar as palavras deputados e partidos para acabar de vez com a conversa e despertar a fúria da taverna. E eles contam com isso.

P.S. – As maravilhas que a ausência de rivalidade política é capaz de fazer. O que antes era “à justiça o que é da justiça” transformou-se subitamente em “julgamento de tabacaria”. Sempre esteve de acordo, faltou-lhe a coragem de o dizer.

Ericeira, 16 de julho de 2023


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