(António Guerreiro, in Público, 13/08/2021)

De que espécie são os portugueses que ganharam medalhas nos Jogos Olímpicos de Tóquio? Esta questão formula os termos de uma discussão bastante difundida e ainda em curso no espaço público (em boa verdade, não só em Portugal). Nalguns momentos mais incisivos nos domínios da teoria política, a discussão até permitiu que se definisse o conceito de Nação e Estado-nação. E, sobre esta matéria, cada um mobiliza o autor que mais lhe agrada, ou o único que leu, e emite uma sentença pretensamente definitiva. Fica por dizer que não há conceito mais maleável e disponível para quase todos os gostos e ideologias que o conceito de Nação; e que são tão diferentes os modos como tem sido abordado e definido que, tentando uma síntese, só subsistem alguns pontos genéricos comuns: 1) na sua acepção política, a forma nacional é recente; 2) o conceito que a designa, não sendo muito claro e dependendo dos contextos culturais, tem permitido amálgamas e confusões com os conceitos de Pátria, Estado, Povo e — como acontece em França — República (a qual funda um conceito de nacionalidade baseado no pacto constitucional que prescreve um quadro de direitos e deveres igual para todos os cidadãos); 3) Sempre que se representa uma Nação na sua plenitude simbólica, edificando aquilo a que Benedict Anderson chamou “comunidade imaginada”, triunfa a estetização da política e as suas argúcias ideológicas.
Os mais puristas nesta questão da pertença nacional recorrem ao aspecto étnico-genealógico do conceito, isto é, ao princípio da natividade que o conceito transporta na sua etimologia: o temo latino natio deriva do particípio do verbo nascor; daí a contiguidade semântica entre “nacionalidade” e pertença de sangue. Os menos puristas e que até abjuram publicamente o nacionalismo (alguns dos quais resolvem o assunto dizendo-se patriotas — isso sim, uma virtude a cultivar) não querem que a inscrição no Estado-nação seja baseada num direito adquirido por laços de sangue (ius sanguinis), nem sequer no lugar do nascimento (o ius soli), mas num contrato de cidadania. Aqueles que adquirem a nacionalidade portuguesa (mas certamente que o mesmo se passa com outras “nacionalidades) ficam submetidos aos mesmos deveres e gozam dos mesmos direitos que todos os outros portugueses. Mas ficam vinculados a uma restrição tácita: não podem vacilar no seu nacionalismo e têm de mostrar uma gratidão incondicional pelo país que lhes ofereceu o direito de cidadania. Neste aspecto, dando provas de que entenderam o contrato e o respeitam, todos acabam por ter um discurso parecido ao daquele judeu assimilado que Hannah Arendt, num texto de 1943, em inglês, chamado We refugees, retratou desta maneira: o sr. Cohen foi sucessivamente alemão a 150%, vienense a 150% e depois francês também a 150%. Ora, os triunfos olímpicos (ou noutros domínios) destes portugueses a 150% dão origem a manifestações públicas, como aquelas a que agora assistimos, assim resumíveis: os que só lhes conferem um teor de portugalidade de 50%, ou ainda menos, e por isso falam em nome de um “genuíno” nacionalismo, da ordem do incomensurável e do sublime; e os que os reconhecem como cidadãos portugueses a 150% e, por conseguinte, encontram neles motivo para atingirem esse nível de nacionalismo explosivo (100% de teor português sem aditivos, mais 50% de português moderno, cosmopolita, que compreendeu plenamente a revolução multi-étnica e sabe que o “nós” já não tem o mesmo significado de outrora). Os primeiros são nacionalistas irredutíveis; os segundos são nacionalistas que não ousam dizer o seu nome. Uns e outros não conseguem pensar fora destes pressupostos identitários.
É verdade que, no que diz respeito aos Jogos Olímpicos, toda a competição se baseia na pertença nacional e nenhum atleta chega lá numa condição de singularidade, não é possível vê-lo como exemplo de comunidade sem pressupostos. Mas quem quer combater os defensores da Nação “genuína” não pode cair na armadilha do português a 150%, precisa de fazer mais um esforço. Talvez deva começar por recitar com convicção um verso do poeta italiano Francesco Nappo que alguém um dia grafitou numa parede em Veneza “A pátria será quando todos formos estrangeiros”.
