Animais e humanos

(António Guerreiro, in Público, 05/05/2017)

Autor

António Guerreiro

A ideia de que há uma linha intransponível entre os homens e os animais que permite a estes trata-los como “coisas” já não é defensável.


A nossa tradição metafísica “antropo-centrada”, exacerbando a diferença zoo-antropológica e traçando uma linha intransponível entre o humano e o animal, tem sofrido fortes abalos no plano do pensamento do humano e do animal. Uma “questão animal” está cada vez mais presente na opinião pública e passou a ter existência política. A legislação que consagra direitos aos animais domésticos e estabelece deveres dos humanos para com eles (e todo o debate jurídico em torno dela) é uma prova disso. As coisas estão a mudar: o “animal-máquina”, incapaz de aceder à linguagem, desprovido de subjectividade e, portanto, privado de todo o direito, é uma representação que só um humanismo atávico e imbecil continua a defender. O humanismo, como lembrou uma vez Claude Lévi-Strauss, está implicado no colonialismo, no fascismo e nos campos de extermínio nazi. Evidentemente, a indústria agro-alimentar há muito tempo que rompeu com o “contrato natural” e precisa de proteger com cuidado os seus domínios. Por isso os mantém resguardados do olhar exterior. A criação, transporte e abate de animais para a alimentação é um sector secreto, um mundo paralelo completamente subtraído ao conhecimento e à consciência dos cidadãos, do qual quase não há imagens. Até nisso parece um espelho do Holocausto. O escritor judeu Isaac Bashevis Singer, que teve o Nobel da Literatura em 1978, escreveu uma vez: “Para os animais, todos os humanos são nazis […], há um eterno Treblinka”. Um dos motivos maiores da bibliografia referente aos direitos dos animais tem a ver precisamente com a dupla analogia histórica entre os matadouros e as fábricas Ford, e entre a standardização do fordismo e a organização racionalizada dos campos de morte. Impôs-se de facto nos últimos anos a ideia de uma continuidade entre a industrialização da produção e abate de animais, o trabalho em cadeia e os campos de extermínio (cfr. um livro do historiador americano Charles Patterson, Eternal Treblinka: Our Treatment of Animals and the Holocaust).

Um argumento é muitas vezes utilizado contra quem acha que se está a ir demasiado longe na destruição da “linha intransponível” a separar o homem do animal e que este não pode ser sujeito de direitos: os escravos também foram tratados como “coisas”, como um “eles” irredutível ao “nós”. Até que se reconheceu que eles também diziam “Eu”, eram detentores de uma subjectividade. Os argumentos de quem contesta a empatia que os animais suscitam e acha ridícula a legislação que os protege parecem decalcados da argumentação contra o fim da escravatura. O filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham (1748-1832), mais conhecido pela sua teoria do panóptico, é um importante percursor da actual sensibilidade. Foi ele que em 1789, o ano em que foi redigida a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, escreveu a sua Introduction to the Principles of Morals and Legislation, onde consagrou um parágrafo às crueldades que os humanos impõem às outras espécies, declarando-as inaceitáveis, ao mesmo tempo que lamentava o facto de os animais terem sido reduzidos no direito à condição de “coisas” (essa condição que começa agora, mais de dois séculos depois a ser contestada por nova legislação), devido à insensibilidade dos juristas. Ora, Bentham, achou que a boa questão, aquela que se devia colocar, não era “podem os animais raciocinar?”, isto é, ter capacidade linguística, mas uma outra: “podem os animais sofrer? E esta pergunta deixava claro que, para além da linha aparentemente intransponível da razão, há uma comunidade de sofrimento e de empatia que os animais estabelecem com os homens.

Defender a Filosofia, contra a cegueira neoliberal

(Fran Alavina, in Blog OutrasPalavras, 11/02/2017)

bruguel

Pieter Bruegel, The Parable of the Blind Leading the Blind, 1568

Projeto do governo brasileiro para Ensino Médio chega ao Senado. Resistiremos: porque só uma visão não-fragmentada do mundo permite transformá-lo.


De novo, querem nos calar! De fato, não se trata de nenhuma novidade. Contra o silêncio da dúvida que precede toda contestação, querem impor o emudecimento forçado. Com efeito, a história da Filosofia está marcada por tentativas de fazer calar a potência do pensamento. Não foi assim contra Giordano Bruno, morto pela inquisição vaticana por ter nos mostrado as possibilidades abertas pelo alcance da infinitude? Não foi assim também com Walter Benjamim, perseguido até a morte pelos nazifascistas? Nessas, e em tantas outras tentativas, mesmo naquelas ocasiões em que os filósofos não são mortos, trata-se de realizar ações violentas contra uma forma de saber que sempre se coloca contra toda imposição.

De fato, o outro nome da Filosofia é Liberdade. São justamente os que querem a servidão dos ânimos, a subordinação do pensamento, em vez da sua autonomia doadora de pluralidade, que, mais uma vez, agindo violentamente, querem calar a voz rouca de um saber secular. Desta vez, trata-se de uma violência em forma de lei, por conseguinte uma violência constitucional. No final do ano passado, a Câmara dos Deputados votou pela não obrigatoriedade da Filosofia e da Sociologia na grade curricular do ensino médio. Para “disfarçarem” a violência de uma lei sem legitimidade, pois feita sem a devida discussão e sem a anuência da comunidade escolar, disseram que tratar-se-ia de dissolver os conteúdos filosóficos em outras disciplinas da grade curricular. Agora, ainda nesse primeiro semestre de 2017, o projeto deve ser discutido e votado no Senado Federal. Esta dissolução tentar enfraquecer a Filosofia e a Sociologia à medida que tenta fazer crer que seus conteúdos possam ser simplesmente dissolvidos em outros saberes.

Na verdade, não se trata de ensejar o diálogo interdisciplinar, mais sim de reduzir ao mínimo do mínimo possível o espaço propício ao pensamento crítico. Os conteúdos filosóficos e sociológicos possuem especificidades que lhes são próprias, demandando, por isso, tempo e espaço particulares. São conteúdos sólidos, que ao mesmo tempo em que ensejam um saber específico, podem colocar em diálogo disciplinas aparentemente díspares como a matemática e a literatura. Portanto, a via não é a dissolução dos conteúdos filosóficos e sociológicos, mas, pelo contrário, o fortalecimento deles, garantindo-lhes maior espaço e consideração na vida escolar.

Esta ação contra a Filosofia e a Sociologia está no bojo da famigerada reforma do ensino médio, que nada mais é que o retrocesso do sistema público de ensino. Se aprovada esta reforma-desmache, teremos dando dez passos para trás. Caindo em um tipo de ensino médio tecnicista capenga, reforçador das desigualdades sociais à medida que retira das classes populares o direito ao saber em sua completude. Para a imensa maioria, o mínimo; para alguns poucos, o tudo. Ademais, este gesto autoritário contra a Filosofia e a Sociologia dá margem a uma estupenda queda da qualidade do ensino, pois junta-se a isto, a possibilidade de que pessoas de “notório saber”, portanto sem a qualificação específica para o ensino, possam ministrar aulas. Desse modo, a reforma-desmanche do ensino médio tenta “flexibilizar” o saber para torná-lo um simples acúmulo de opções mínimas, dando aos alunos uma visão de mundo fragmentada e dispersa. Esta fragmentação e dispersão impede uma interpretação crítica da realidade, uma vez que faz parecer distante aquilo que está próximo. Retorna, em alguma medida, o lema do dividir para dominar melhor.

É esta visão dispersa de uma realidade apresentada como justaposição de fragmentos autônomos que possibilita, por exemplo, a ilusão de que a justificativa econômica está acima do argumento político; ou a fantasia desastrosa de que homens “não políticos” possam fazer política; ou ainda a crença supersticiosa de que todos nós somos empreendedores de nós mesmos; e, que, portanto, ao trabalharmos não somos trabalhadores, mas “prestadores de serviços”. Neste último caso, a reforma-desmanche do ensino médio está de mãos dadas com a ideologia neoliberal. É próprio da ideologia neoliberal fragmentar e dispersar para reduzir e limitar nossa visão de mundo. Não por mera coincidência, seu produto mais acabado no campo do saber é o aparecimento da figura do especialista. Aquele que sabe cada vez mais sobre cada vez menos. Conforme avança a sanha neoliberal, mais pobre se torna a compreensão do que seja o processo educativo: reduzindo a dignidade do saber ao utilitarismo do mercado. Quem sabe em virtude da utilidade do mercado nunca sabe por si mesmo, portanto é um sujeito-objeto.

Um sujeito incapaz de dar um sentido único à dispersão que o aprisiona, um sujeito dócil, útil à servidão voluntária.

Dessa forma, tentam formar uma geração muda e resignada, mas que já deu mostras de não se deixar calar facilmente. Trata-se de um projeto de médio prazo: incapacitar o pensamento crítico no presente para fechar a possibilidade de qualquer futuro melhor e diferente do que temos hoje.

Ao neoliberalismo não interessa o saber na verdadeira acepção do termo, mas a ignorância disfarçada de conhecimento. Na medida em que não são ofertados os meios necessários para se constituir uma visão integral da realidade em suas diversas instâncias, conforme quer fazer a reforma-desmanche do ensino médio, mais de uma geração sofrerá um genocídio educacional. Não será apenas um genocídio simbólico, mas também material, uma vez que o tipo de saber construído afetará materialmente e politicamente as próximas gerações das classes trabalhadoras. Um genocídio típico dos regimes ditatoriais, mas, dessa vez, feito sob a tutela “democrática”.

Ora, a última vez que a Filosofia foi retirada da grade curricular foi justamente nos anos da ditadura militar. Os artífices do poder autoritário e dos regimes de exceção sabem que o exercício do pensamento quando feito livremente, e na sua plenitude, é por natureza indômito. Estavam cientes naquela época, como agora, que o pensamento é ousado e que nunca se dobra aos cerceamentos.

Ante a violência do poder que impõe, a Filosofia afasta toda forma de resignação. Nunca está resignado quem se põe a pensar sobras as causas de obviedades aparentes que sustentam a servidão voluntária. Questionar, por mais simples que seja o questionamento, já é não resignar-se.

Por isso, a relação entre Filosofia e Democracia é algo inconteste. Quando os regimes democráticos estão ameaçados ou em crise, como no nosso caso, sempre se atenta contra a Filosofia, pois se reconhece nela uma forma de saber que mesmo sendo considerada inútil, se presta ao mais digno dos trabalhos: o reconhecimento da liberdade como único meio pelo qual se dá uma existência verdadeiramente humana. A Filosofia é, por excelência, o saber que interpela o poder. Por isso, não são poucos os que querem o seu silêncio.

Resistiremos, pois a Filosofia nunca se resigna. Ela resistiu desde quando aquele grego inoportuno fazia, no espaço público, simples perguntas aos seus concidadãos. Ele mostrou que a verdadeira vida democrática é aquela que não teme a dúvida, nem exaspera ante o reconhecimento dos opostos, fazendo da contestação um índice de vitalidade da vida democrática. Por isso, agora, que mais uma vez se tenta agir com violência contra a Filosofia, é a hora de fazer como fez o velho grego: ocupar os espaços públicos possíveis, fazer indagações simples e aparentemente inoportunas, pois este tipo de indagação é aquela que se presta ao desmoronamento das falsas certezas. Assim, talvez a primeira destas indagações seja esta: quem quer nos calar?


Fonte aqui

A máquina da ignorância ao serviço da política que não ousa dizer o nome

 

(José Pacheco Pereira, in Público, 04/06/2016)

Autor

                      Pacheco Pereira

Muitas das polémicas políticas usando a história que se estão a dar em Portugal estão cheias de ignorância presumida.

Um dos efeitos perversos da cultura da Internet é a desvalorização do saber, do conhecimento, do estudo. Há muita gente que fica irritada quando se lhes toca no deslumbramento tecnológico e também, por arrasto, no direito de dizer alto, que é o que significa “publicar” na Internet, todas as asneiras possíveis visto que “todos têm direito à sua opinião”.

Acham que criticar isto é “presunçoso”? Então acabou a ignorância? Lá porque cada um pode colocar o que quer na Internet isso dá-lhe um atestado de sabedoria? Não, é uma doença dos tempos modernos e está-se agravar principalmente nos mais jovens que obtêm na rede quase toda a informação e não tem literacias para a mediar. A “democracia” das “redes sociais” é uma forma de populismo moderno.

Eu costumava chumbar os alunos de filosofia que, para esconder infantilmente a sua ignorância, diziam que também tinham uma “opinião pessoal” sobre Kant. Ai tem? Mas que sorte, é que eu não tenho e a esmagadora maioria das pessoas letradas do mundo também não tem, incluindo 99% dos professores de filosofia e a maioria absoluta dos especialistas em Kant, pela simples razão que ter uma “opinião pessoal”, que não seja uma repetição, ou seja, que seja “pessoal”, exige muito estudo, muito conhecimento de Kant, e muita criatividade filosófica. Se não é do domínio do génio filosófico, fica perto. Não é Habermas quem quer.

Mas a Internet está cheia disto, gente que escreve sobre um livro começando por dizer que não o leu, que escreve sobre cinema porque viu uns filmes, que se torna crítico literário porque “também pode dizer o que quiser”, ou melhor, “que tem o direito de dizer o que quiser” e só os passadistas de duvidosa democraticidade é que não querem que este “direito seja de todos”. E depois dizem “habituem-se que o mundo mudou”. Sim o mundo mudou, mas ninguém tem obrigação de aturar este ruído das “redes sociais” dos comentários, do “todos temos direito a falar, mesmo que não tenhamos nada para dizer”: “é a minha opinião pessoal sobre Kant, embora nunca o tenha lido e, se me criticam, berro que é censura e elitismo e nostalgia do mundo em que só os “sábios” (dito com desprezo) podiam falar…”.

Era só uma questão de tempo até que este tipo de “escola” chegasse à política. Muitas das polémicas políticas usando a história que se estão a dar em Portugal estão cheias deste tipo de ignorância presumida, e louvo quem se dá ao trabalho de os tomar a sério naquilo que dizem, embora a intencionalidade política já seja mais séria e justifique maior discussão. O problema é político e tem a ver com a emergência de uma direita agressiva e muito ignorante, que acha que está a escancarar uma porta ideológica que a esquerda tem cerrada a sete pés, e nem sequer percebe que essa porta está mais que aberta há muitos anos. Atiram-se à porta com denodo verbal e voam para o outro lado sem travagem.

Vejam-se os cartazes virtuais da JSD que metem dó no seu simplismo político e ignorância. Por exemplo, este particularmente simpático para Stalin.

NOGUEIRA

Nem os portugueses votaram em Stalin, nem Mário Nogueira está, nem de perto nem de longe, encafuado nas vestes de um Stalin português. Eles não percebem a diferença, só lhes interessa o epíteto. E é de um ridículo atroz dizer que o cancelamento de alguns contratos com colégios privados, que são negócios legítimos, mas negócios, tem alguma coisa a ver com o estalinismo. Bastavam estes excessos de linguagem para se perceber que quem fala de uma forte radicalização à direita tem toda a razão com que então o nosso Stalin é Mário Nogueira? A linguagem e os epítetos revelam esse radicalismo. Acresce, como já disse acima, que é boa propaganda para Stalin. Stalin não “manipulava” as pessoas, matava-as.

Na ridícula imagem que a JSD tinha feito, antes da do Mário Nogueira, em que Lenine preside à coligação de esquerda com Costa no meio, também nada sabem de Lenine cuja evocação é tão despropositada que, de novo, é o anátema e não a substância que conta. São cartazes de insulto, nada mais e o resto é folclore político. Acresce que de todas as bandeiras com a foice e o martelo que podiam representar escolheram aquela que a prudência implicava não terem escolhido, uma das raras que simbolizou um acto festejado muito para além do comunismo: a bandeira soviética hasteada no Reichstag na vitória contra os nazis, com Berlim destruído em fundo. Quando começou a polémica sobre o significado ambíguo da imagem, um antigo deputado do CDS justificou-a com a seguinte frase: “se é um facto que Hitler foi derrotado no momento em que esse exército chegou a Berlim, vindo de Leste, é um reescrever da história chamar-lhe libertação ou celebrar esse dia”.

COSTA_PUBLICO

Churchill, que certamente esse deputado incluirá entre os seus heróis, explicar-lhe-ia com alguns expletivos, o que “esse dia significou”, e por que razão disse uma vez que se o Diabo resolvesse atacar Hitler, proferiria no Parlamento algumas frases simpáticas sobre o Inferno. É que Churchill não fez só o discurso de Fulton. Defendeu intransigentemente a colaboração com aquilo que o deputado do CDS chama “esse exército(…) vindo de Leste”, que foi quem num certo sentido ganhou a guerra na frente decisiva para os alemães, a de Leste.

Veja-se o caso de Rodrigues dos Santos que diz que o fascismo nasceu do marxismo e que acha que ao dizer isto descobriu alguma coisa e que incomoda muita gente. Desengana-se, não incomoda ninguém. Há nas ideias troncos comuns e derivações e, no caso do marxismo e do fascismo, genealogias, semelhanças e diferenças que são das coisas mais estudadas pela historiografia contemporânea no complexo mundo teórico e filosófico do século XIX. Já quanto ao século XX e aos movimentos que personificaram variantes políticas dessas ideias, seja o anarquismo, o anarco-sindicalismo, o sindicalismo revolucionário, o fascismo, o nacional-socialismo, o comunismo, partilham influências e acima de tudo partilham história concreta. Não é, como diz, uma verdade escondida que “pouquíssima gente” conhece, mas uma matéria abundantemente estudada, polémica no grau e na dimensão, mas consideravelmente conhecida.

Fora da teoria e das ideias, na história concreta, as coisas são muito diferentes, e é isso que estas frases bombásticas escondem. Há de facto uma coisa em comum entre comunismo e fascismo — aconteceram no mesmo tempo histórico. Na “guerra civil europeia”, fascistas e comunistas combateram-se, mas são para esta variante da “cultura” política da Internet, “duas faces da mesma moeda”. Até colaboraram, no Pacto Germano-Soviético. Mas perguntem a um comunista francês fuzilado pelos alemães, ou a um fascista francês fuzilado pelos gaullistas, se são “duas faces da mesma moeda”? Presumo que com a fúria da resposta do morto, o pelotão de fuzilamento mudará de direcção.

Historiador

A segunda parte deste texto será publicada no próximo sábado.