A ditadura do presente, a força do passado

(António Guerreiro, in Público, 24/08/2018)

Guerreiro

António Guerreiro

Deve-se ao historiador francês François Hartog a invenção de um conceito com o qual designa um “regime de historicidade” marcado pelo ditadura do presente — o conceito de presentismo. O presentismo faz com que não consigamos sair do tempo da urgência, do imediato, do horizonte de onde desapareceu qualquer ideia de progresso. Num tempo presentista, a lei fundamental é a da aceleração (e daí o fascínio do nosso tempo pelo fim e pela catástrofe).

A política que hoje vigora exclusivamente é presentista, vive na lógica da reacção e remeteu para o domínio da efabulação encantatória todo o discurso que abre para o futuro. A política não tem tempo e tudo aquilo que precisa de tempo encontra hoje imensas dificuldades para subsistir.

Tudo conspira para que não sejam admitidas as discordâncias dos tempos. Tornando-se presentista, a política nega-se enquanto tal e torna-se gestionária. É verdade que esse problema não começou hoje: o presentismo é o culminar do processo da modernidade, que impôs um novo ritmo temporal que já não é o da maturação lenta e orgânica próprio de outras épocas.

O presentismo é incompatível com tudo o que precisa de tempo: a investigação científica, as artes, a literatura. Há manifestações evidentes de mal-estar em todos estes campos por causa do imperativo da aceleração do tempo. O ritmo de publicação de um escritor, actualmente, não é — salvo algumas excepções – comparável ao que era até há pouco mais de meio século. O publish or perish que se tornou uma palavra de ordem nas universidades está hoje instalado na edição literária: os escritores desaparecem do horizonte se não dão provas publicamente e com frequência de que estão activos enquanto escritores, de que estão presentes.

E estar presente tornou-se quase sempre responder ao apelo do presentismo. Se Proust estivesse submetido à lei do presentismo nunca teria escrito a Receherche. Nem Joyce teria escrito o Ulisses. Os grandes edifícios da literatura moderna parece que foram projectados não para o presente mas para o futuro. Por isso, são muitas vezes obras inacabadas, reclamando mais tempo e menos história.

Uma das mais radicais reacções ao presentismo, encontramo-la em toda a obra de Pasolini. Recordemos La Ricotta (1963), onde a personagem de Orson Welles, no papel de realizador de cinema se identifica com o próprio Pasolini. Sentado na cadeira de realizador, Orson Welles responde às perguntas um pouco idiotas de um jornalista: “O que quer exprimir com esta sua nova obra?”. Resposta: O meu profundo, arcaico, catolicismo”. “O que pensa da sociedade italiana?”. Resposta: “O povo mais analfabeto, a burguesia mais ignorante da Europa”. Como sabemos, Pasolini sempre tentou traduzir em termos acessíveis às massas a tradição cultural, com uma operação pedagógica em grande estilo. E no final da entrevista o realizador interpretado por Orson Welles faz uma verdadeira declaração poética que é na realidade a citação de um poema de Pasolini. Começa assim: “Io sono una forza del passato, /Solo nella tradizione è il mio amore”.

Pasolini foi um revolucionário com os olhos e o coração postos no passado. Deter as imposições do presente, não se submeter à sua ditadura, foi uma missão salvífica que prosseguiu de maneira radical, com um desespero heróico. Ele tinha compreendido, com a sua sensibilidade exasperada ao tempo em que estava a viver, que era preciso afirmar a discordância dos tempos e não ser absolutamente moderno. A força do passado que ele reivindica é, contra todas as convicções comuns, uma força revolucionária, uma arma contra aquilo a que hoje chamaríamos o presentismo.

O populismo em forma de oráculo

(António Guerreiro, in Público, 19/05/2017)

Autor

António Guerreiro

Há o populismo político, um conceito que hoje nos é servido como uma papa homogeneizada; e há o populismo cultural, de que pouco se fala e é quase imperceptível porque já faz parte do ambiente e até é produzido e estimulado pelos mesmos que, mal viram um pouco a cabeça (uns para a esquerda, outros para a direita), deparam com o monstro do populismo político.

Às vezes a figura do populismo não passa despercebida porque atinge proporções escandalosas. É o caso das imposturas “filosóficas” de um charlatão chamado Michel Onfray, do qual foi publicada uma longa entrevista no último Ípsilon, acompanhada por um artigo, da autoria do entrevistador (Jan Le Bris De Kern), intitulado Jesus Cristo nunca existiu. É um título suculento, que resume a grande revelação do livro de Onfray, publicado há alguns meses em França, com o títuloDécadence. De Jésus à Ben Laden, vie et mort de l’Occident. Ao pé disto, O Declínio do Ocidente, de Spengler, era coisa sóbria.

Em que consiste o populismo cultural — ou, mais precisamente, o populismo em filosofia — do qual Onfray é um exemplo superlativo? Consiste numa banalização e degradação do pensamento, numa forma de discurso animada por propensões demagógicas que visam atrair o maior número de pessoas. É um apelo ao mais banal senso comum, mesmo quando parece querer destituí-lo. De filosófico, o discurso de Onfray não tem nada: pertence a um género oracular, também usado nas várias modalidades de charlatanismo. Não se trata aqui da popularização da filosofia na época da democracia de massa. Não confundamos popularização com o seu duplo obsceno, o populismo, que é onde se situa o famosíssimo e muito prolífico “filósofo” francês. A primeira regra do populista consiste em prometer a verdade a baixo preço, em encontrar uma verdade ignorada por todos: seja ela que Jesus não existiu ou que Freud e a psicanálise são uma grande impostura. Denunciar as grandes “mentiras” da história da filosofia é o modesto programa do autor deDécadence. Cada livro seu é um panfleto: o populismo cultural é panfletário. O seu método, diz ele, consiste em ler toda a obra de um autor e tudo o que se escreveu sobre ele. Uma descarada mentira, já que uma vida inteira não dá para ler tudo o que se escreveu sobre Freud. E mesmo que desse, pouco tempo restaria para entrar nos longos e complexos meandros histórico-biográficos da figura de Jesus, ainda por cima com a ambição de percorrer dois mil anos para chegar a Bin Laden e atingir as alturas de onde observa o Ocidente a declinar. E, como todo o populista, este também é anti-sistema. Não fala a mesma linguagem técnica dos filósofos profissionais para evitar o jargão técnico. Jamais o apanhamos a falar do esquematismo transcendental de Kant. O seu discurso “filosófico” é para ser compreendido pelos não iniciados, pelos afásicos e surdos para as coisas da filosofia, mas despertos para a tagarelice mediática. O segredo está precisamente aqui: o “filósofo” que encontra para cada livro uma trouvaille, daquelas que são feitas para partilhar no Facebook e para alimentar a cultura jornalística do clique, anuncia-a sempre com grande alvoroço em todos os media. Ele, o que vive na província, que criou a sua própria “universidade popular”, que não quer aproximar-se dos círculos filosóficos parisienses e seus derivados, passa a vida a dar entrevistas, a promover os seus livros na rádio e na televisão parisienses. Evocando-o como exemplo grandioso do populismo cultural, não podemos esquecer que não está sozinho e precisa da solidariedade e da complementaridade dos dispositivos mediáticos.

 

Uma certa ideia da França

(Por António Guerreiro, in Públlico, 12/05/2017)

Autor

António Guerreiro

Nestas últimas semanas, em que a França foi motivo de um discurso público, pudemos confirmar a persistência de um tópico já com alguma idade: visto do exterior, o Hexágono – as suas idiossincrasias políticas e a sua cultura – só é admirado e elogiado a 50%. É sempre preciso salvar “a França de X” contra “a França de Y”. Facto curioso: por cá, quando esta fórmula é utilizada, é para salvar a parte medíocre ou já inactiva.

Estes admiradores da França a 50% acham que ela se move entre dois pólos, o do mal e o do bem, o da Revolução e o da Civilização. Suponhamos: entre o pólo Marquês de Sade e o pólo Condessa de Ségur, as preferências recaem na Condessa (aliás, pérfida), em detrimento do Marquês (dito divino).

Nenhum outro país obriga a estas concessões: não encontramos facilmente quem ache que é preciso salvar a Espanha de Dom Quixote da Espanha de Sancho Pança; ou que é preciso maldizer Brecht para venerar Arendt. A França, ela própria, tem certamente algumas culpas nestas representações de dupla face. No seu Dictionnaire des idées reçues, Flaubert deu esta definição de Français: “O primeiro povo do universo”. A definição de Flaubert requer um pequeno ajuste: o povo do universal, esse sim, corresponde a “une certaine idée de la France”. Uma maneira bastante mais sofisticada de olhar a França, encontramo-la no filósofo alemão Peter Sloterdijk, que reuniu em 2013 vinte e três textos sobre autores e temas franceses num volume intitulado Mein Frankreich, “a minha França”. Há, como sabemos, um mito alemão da França, tal como há o mito francês da Alemanha. Mas a paixão de Sloterdijk pela França, declarada neste livro, não alimenta o mito e é até bastante desmitificadora. Com apaixonados destes, dotados de um amor tão cerebral que não fica aquém dos libertinos franceses do século XVIII, a França tem razões de sobra para sucumbir à melancolia, ao sentimento elegíaco que a atormenta há muito tempo e que se manifesta num desfile de reflexões masoquistas sobre grandezas perdidas, como a que fez Jean-Pierre Chevènemet, em 2011, num livro que começa, no título, com esta pergunta: La France est-elle finie?. Diz Sloterdijk que se existisse “uma geopolítica europeia da consciência infeliz” a França ocuparia nela um lugar central. E, com a brutalidade de um gigante hanseático, inicia o seu diagnóstico: a França, que engendrou a ilusão de que tinha aderido à Resistência e, conduzida pelo general de Gaulle, tinha ganho a guerra, é a mesma que resistiu aos fenómenos geralmente designados com os termos “liberalismo” e “neoliberalismo”. Sloterdijk acha que ela quis ser uma excepção sem no entanto o poder ser, e que essa resistência ao espírito liberal não foi acompanhada por uma atitude de confiança, tal como a mitologia da Resistência ao exército alemão e a Vichy foi uma auto-hipnose, sem arrependimento, de onde a França nunca saiu. Ambas as atitudes, diz Sloterdijk, relevam de um mesmo irrealismo e provocaram-lhe um mal psico-político. No seu diagnóstico, o filósofo aplica-se com alguma insistência a denunciar as “mitologias da esquerda” e o “imaginário revolucionário” como responsáveis da “implosão da França”. E chama-lhe “laboratório de luxo partilhado”, onde o povo quer ser governado por um educador e exige ao governo uma “termo-política social”, uma protecção contra o frio social. Como se vê, há alguma crueldade na declaração de amor que este filósofo pouco dado a gentilezas faz à sua amada, última representante de “uma longa história do pensamento europeu” e pátria “desse grande filósofo, último representante do idealismo europeu”. Chama-se ele: Derrida.