A santa resiliência

(António Guerreiro, in Público, 18/06/2021)

António Guerreiro

Antes que o jargão da tripla aliança política, económica e mediática nos submerja com a sua capacidade injuriosa e de cancelamento da crítica, devemos cuidar das palavras, observar a sua vida e perceber o sentido das suas inflexões. Num tempo que nos parece hoje já distante, mas do qual, se nascemos nos últimos quarenta anos, somos ainda contemporâneos, a palavra “progressista” teve uma considerável fortuna e sinalizava o “imaginário” político (“imaginário” é, aliás, outra palavra defunta).

Ser “progressista” era acreditar no progresso. Não no progresso tecnológico ou científico (muito embora esse também fizesse parte do processo), mas num progresso que tinha uma escala muito mais ampla: a do curso inelutável da história em direcção à “justiça” social e à “emancipação” política. “Progressista” era o termo condescendente usado pelos comunistas para nomear quem não se comprometia com lutas revolucionárias, mas também não estava do lado das soluções conservadoras ou até reaccionárias.

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Nesse jargão outrora dominante, ser progressista significava olhar em frente, em direcção a um futuro radioso, em oposição aos reaccionários, que olhavam para trás, para um passado geralmente mitificado. Quando o progresso e o mundo por vir em vez de inspirar confiança e mobilizar a acção começaram a gerar o medo, ser progressista perdeu a condição de título a reivindicar.

A herança dos antigos progressistas reside hoje num pensamento que, pelos critérios de antigamente, seria considerado reaccionário (como classificar muitas das lutas identitárias e ecológicas?). Esta inversão de valores constitui um enorme desafio às representações baseadas na topologia que divide o espaço político entre esquerda e direita.

Hoje, que a palavra “revolução” passou por uma zona demoníaca e tornou-se depois uma ruína inerte, um outro “re-” substituto entrou em cena e triunfou. Comecemos por uma aproximação negativa: não é “resistência”. Resistir era a atitude do “antes quebrar que torcer”, era um heroísmo com uma dupla face: ou era épico ou trágico. A atestá-lo, aí estão, por todo o lado, os monumentos e os “lugares de memória” que celebram os “heróis da resistência”, ao serviço do uso que em cada momento se faz da história.

Um discurso do presidente francês, Emmanuel Macron, pronunciado no dia 9 de Novembro de 2020, pelo cinquentenário da morte do general de Gaulle, indica-nos qual é o novo “re-” que revogou a “resistência”. Nessa ocasião, Macron, com a eloquência francesa que serviu durante séculos como medida da “civilização”, saudou o “espírito de resiliência” do general. E assim passou de Gaulle a herói da “resiliência” francesa. Foi uma operação “revisionista” sem grandes custos: bastou a substituição de uma palavra por outra, muito mais actual. A República ganhou assim o seu terceiro “re-”, caducado que foi o tempo da revolução e fora de moda em que caiu a resistência.

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Os novos tempos são pois os da resiliência. Do Atlântico aos Urais e para além, da costa leste à costa oeste e vice-versa. Temos a nova palavra-maná pronunciada a toda a hora pelos políticos democratas (sim, porque nos regimes ditatoriais os opositores não julgaram ainda adequado substituir a resistência pela resiliência, e os ditadores movem-se noutro campo semântico). Basta ouvir os nossos políticos para perceber que a resiliência se tornou uma ideologia: a ideologia do sofrimento e da infelicidade que salvam e purificam. O resistente estava disposto a quebrar; o resiliente é maleável, adapta-se a tudo, não tenta alterar nenhuma ordem, mas, pura e simplesmente, fazer o jogo da ordem presente para daí retirar ganhos.

A táctica da resiliência é o consentimento. Por cada crise, infortúnio ou catástrofe, os arautos da resiliência prometem que “vamos sair daqui ainda mais fortes”. Toda a felicidade é conseguida à custa da infelicidade, e é sempre a destruição que é uma fonte da reconstrução.

Aliás, o pressuposto da resiliência, essa terapia inventada nos gabinetes clínicos da aliança económico-política, é que a infelicidade é um mérito e a destruição uma bênção. Uma coisa que tem o nome de “Plano de Recuperação e Resiliência” poderia ser uma prescrição médica seguida numa associação de alcoólicos anónimos. Tudo neste jargão político tresanda de vício e de uma execrável ideologia.


A política tem de voltar ao porta a porta

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 26/07/2019)

Daniel Oliveira

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A crise da nossa democracia resulta de uma crise geral de todas as formas de intermediação, que incluem os partidos, os parlamentos, as igrejas tradicionais, os sindicatos, os órgãos de comunicação social. Concentrar o debate exclusivamente na corrupção (que a democracia apenas torna mais visível), na desigualdade, na imigração, na globalização ou nas redes sociais dá-nos uma visão parcelar do problema. Assumo que a globalização retirou ao poder político a capacidade de exercer a sua função reguladora e estratégica. Que essa globalização, associada ao desenvolvimento tecnológico, criou, através de novas plataformas de comunicação, novas comunidades eletivas que não coincidem com o universo territorial e afetivo indispensável ao exercício da democracia. Que há uma crise geral de autoridade moral e intelectual, que se estende da política à ciência, destruindo uma “verdade” comum que a democracia precisa para ser exercida em nome de todos. E que as mudanças rápidas a que assistimos criam um sentimento de insegurança e precariedade que favorece discursos que prometam devolver ordem ao que está desordenado.

A melhor forma de travar a decadência da democracia não é insistir nessas causas. Retirar poder ao Estado, atirando competências políticas para estruturas ainda mais distantes, não contribuirá para aproximar os cidadãos do poder. Retirar a política da rua (seja nas campanhas ou no voto) para a passar a exercê-la no espaço virtual, desmaterializando a democracia, não aprofundará o sentimento de pertença. Transformar a política numa proposta atomizada de modos de vida, que ignoram consensos científicos e civilizacionais, só aprofundará a ansiedade das pessoas. E tornar o sistema político cada vez mais instável apenas empurrará mais gente para uma nostalgia romanceada de um tempo de ordem e segurança. As pessoas sentem que estão numa tempestade. É um porto seguro que procuram, não é uma jangada que vá com a maré. A questão é se esse porto seguro é uma fortaleza autoritária ou uma comunidade de interajuda solidária. Uma coisa é certa: não se combate a ansiedade fazendo da incerteza um discurso político.

Não tenho, como é evidente, nenhuma resposta milagrosa para este tempo difícil. O máximo que tenho é algumas inclinações. A mais forte é esta: a proximidade é a melhor resposta ao sentimento de ansiedade que domina as nossas comunidades, cria um profundo sentimento de descrença e desconfiança e está a minar todas as formas de autoridade moral e de intermediação social e política. Não estou a usar uma palavra vazia. Estou a falar de proximidade no sentido literal: o que está fisicamente perto. Porque tenho a convicção que parte do sentimento de desconfiança em relação à democracia e do deslaçamento das comunidades resulta de uma crise de empatia. Claro que a desigualdade social, que voltou a aumentar nas sociedades ocidentais, é um elemento central neste deslaçamento. Assim como o desmantelamento dos Estados Sociais, a perda de poder dos Estados face ao mercado ou a dispersão das formas de comunicação e de socialização. Mas, não tendo solução para nada disto, acredito que a proximidade física é o melhor instrumento para combater uma cultura que nos está a atomizar e a escravizar.

Como é que isto se traduz? Levando à letra a velha máxima de “pensar global e agir local”. Local mesmo. No bairro. E isso quer dizer que as organizações políticas, e sobretudo as partidárias, que quiserem recuperar o seu papel têm de ser elas próprias apostar neste regresso à base. Não se trata apenas de deixar de pôr todas as fichas nos media tradicionais, intermediários em crise, trata-se de não julgar que o seu substituto são as redes sociais. Uns e outros continuarão a ser indispensáveis para a comunicação política, mas a regeneração da atividade política está onde se fez no passado: no porta a porta. É a melhor forma de voltar a criar laços de empatia, compromisso e confiança política. É até a melhor forma de renovar o pessoal político ou contrariar as fake news.

Isto não passa apenas pela comunicação política. A boa comunicação política está relacionada com a ação política. O porta a porta não serve de nada se não se relacionar com a vida daquelas pessoas. Quem lhes bate à porta tem de ser um dos seus. Têm de ser as pessoas que elas viram a lutar pela resolução concreta de problemas concretos. Claro que nada disto dispensa a ação nacional, europeia e internacional. Não estou a falar de um novo sistema político, estou a falar de uma estratégia para recuperar a ação política e democrática.

Numa entrevista à última edição da revista “Manifesto”, o sociólogo económico alemão Wolfgang Streeck afirmou que pode ser que esteja nas “pequenas unidades políticas, como os distritos e as cidades, onde o declínio da infraestrutura pública durante a era do neoliberalismo forçou os cidadãos e os governos locais a responderem a necessidades coletivas de cuidados à infância, transporte, policiamento e saúde” a última bolsa de resistência à destruição do Estado Social. Já são as estruturas locais do Estado, muitíssimo mais sujeitas à pressão democrática, que estão a assumir funções que os Estados Nacionais abandonaram e que estruturas supranacionais, distantes das populações, nunca assumirão. Se assim é, este é o espaço ideal para recuperar a democracia.

Não estou a defender um novo basismo, que nunca me entusiasmou. Acho que ação política continua a depender de experiência política. E de pensamento político estruturado. E que as organizações políticas não devem corresponder a uma mera soma de causas sem cimento ideológico que as torne coerentes, inteligíveis e com propósito. Mas as coisas têm de voltar cá abaixo. A ação política tem de voltar à cidade. Ao que está perto. Onde se consegue responder à vida das pessoas com eficácia visível e em tempo que a memória abarque. Isso não resolverá os nossos problemas essenciais, mas permitirá aos agentes políticos mais ativos recuperar a confiança popular.

Se a regeneração da democracia depende da proximidade que devolva empatia à política, ela renascerá na ação local. Os partidos políticos que se queiram reinventar têm de voltar ao bairro, fazer aí combate político e cidadão e restaurar os laços de confiança que se perderam. Porta a porta, corpo a corpo. Porque as redes sociais são as televisões do futuro: um cemitério de emoções. E porque é no local que está a última trincheira de todos os combates globais. Se as grandes narrativas já não resultam, que se transformem em lutas locais que as traduzam.


Descobriram a luta de classes

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 05/04/2019)

Daniel Oliveira

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Gosto de disciplina na análise e acho que a função de quem comenta a atualidade não é contribuir para nebulosas onde perceção da realidade se confunde com a realidade. No caso dos familiares do PS, tudo tem aparecido junto. Coisas que, tirando haver parentes e serem do PS, nada têm a ver umas com as outras. Podemos fazer análises éticas e elas exigem que cada caso valha por si. O que quer dizer que não existe nada de criticável na chegada de Mariana Vieira da Silva da ministra, e que o caso do adjunto que é primo do secretário de Estado do Ambiente que o nomeou é um caso clássico de nepotismo que só poderia levar, como levou, à demissão do governante.

Podemos fazer uma análise ética do “famíliagate” (até às eleições não vai haver nome para tanto caso). Para isso, estamos obrigados a ver caso a caso, porque as ponderações que temos de fazer com cada um deles são diferentes. Também podemos fazer uma análise política do conjunto deles. Uns insistirão no ineditismo deste governo, concentrando-se assim na especificidade do PS. É com base nisso que fazem os retratos que têm feito da “família socialista”. Outros têm memória e sabem que isso não é verdade. Bastou Cavaco Silva ter saído da toca e logo se foi verificar como num governo existiam 15 mulheres de ministros e secretários de Estado em gabinetes ministeriais. Com esta amostra, se se tivesse ido até aos primos teríamos seguramente números esmagadores. Se assim é, o problema é sistémico e é assim que deve ser analisado.

Partindo desta convicção, tive uma troca de mensagens com um amigo que me ajudou a pensar um pouco mais no assunto. Preocupado com a situação, enviou-me há uns dias uma citação de um artigo em que se dizia que estas pessoas do PS andaram nos mesmos liceus e frequentam os mesmos restaurantes. Ele discordava da partidarite cega, que todas as autarquias e o passado desmentem. Mas concordava com esta afirmação aplicada à política e ao país. Respondi que tinha razão.

Sem maldade, recordei-lhe que os seus filhos estão num colégio privado bastante bom, muito do gosto da esquerda intelectual lisboeta – também poderia ser o São João de Brito, os Salesianos ou Saint Julian’s, fosse outra a tribo. Ou seja, os seus filhos já estavam na bolha que lhes facilitaria o acesso ao poder. Quando forem mais velhos terão estudado na mesma escola e provavelmente irão aos mesmos restaurantes que toda a nova elite. Conheço os miúdos e são muito inteligentes. A escola ajudará mais um pouco. E a boa rede de contactos dar-lhes-á, sem qualquer cunha, acesso a bons empregos. Porque eles serão as pessoas competentes que conhecem as pessoas certas. Melhor do que um miúdo inteligente da escola secundária de Nisa.

Ansioso e revoltado com o que considera ser um dos maiores problemas deste país (o meu amigo não vem da bolha onde já estão os seus filhos), e suficientemente ingénuo para achar que alguém quer fazer mais do que guerrilha eleitoral com este tema, o meu amigo acha que devemos aproveitar esta polémica para debater a endogamia em Portugal. Talvez se deva fazer mudanças legislativas, coisa em que passou esta semana a ser acompanhado por uma legião de seguidores que rapidamente se começam a aperceber da dificuldade da coisa. Devo dizer que torço o nariz sempre que se enfrenta com leis o que é um problema estrutural. Até porque raramente pensamos nos problemas que elas criam.

Fizemos imensas leis para evitar a corrupção, que todos aplaudiram. E depois queixamo-nos de um Estado lento que se perde anos em labirintos burocráticos antes de conseguir fazer alguma coisa. Vamos acumulando incompatibilidades para os políticos, que todos aplaudem. E depois queixamo-nos que os melhores não querem estar na política. Estou curioso em ver a proposta de Marcelo Rebelo de Sousa de alargar as regras hoje existentes, sobre familiares na Administração Pública, aos primos a ser aplicada em municípios de cinco mil eleitores. Todas as nossas boas intenções têm um preço.

Sou mais radical no diagnóstico: acredito que a endogamia evidente em todos os círculos de poder, dentro e fora do Estado, resulta de uma elite pequena e de uma sociedade desigual. E que a melhor forma de a combater é uma excelente escola pública onde todos ponham os seus filhos, universidades democráticas que sejam o oposto da escola elitista que alguns dos mais indignados deste momento sempre defenderam, políticas urbanas que contrariem a lógica do mercado e permitam que classes se misturem, transportes públicos magníficos que todos usem e uma distribuição de rendimentos mais justa.

Como se vê pelas dinastias que governam os EUA, o problema não é só pequenez do país, é a desigualdade. A resposta é tornar o poder mais poroso — e isso só se consegue com sociedades menos estratificada.

E chegámos à segunda parte da nossa conversa. A maioria das pessoas que têm acesso ao espaço público é da elite. Escreve textos indignados sobre este assunto e vive ela própria em bolhas em que a endogamia, seja por via familiar ou de amizade, é a regra. Nas universidades, nos escritórios de advogados, nos conselhos de administração, nas companhias de teatro, nas redações de jornais. Todos preferem que este debate se fique pela política (ou mesmo pelo PS). Uns porque tratam os partidos como um cómodo repositório de todos os males da sociedade. Outros porque demonizam o Estado e as suas funções. Outros porque vivem na fantasia de que as redes de conhecimentos, amizade e parentesco não contam imenso no privado, não reparando nos apelidos que se repetem nas administrações. Outros, por fim, porque acham que não devemos aplicar os mesmos critérios éticos ao que tem um dono e ao que é de todos. Os últimos têm razão. Mas o Estado e a política repetem sempre o que acontece fora deles.

O meu amigo acabou a conversa a dizer que o PS tem de abrir as listas para dar um sinal que compreendeu o incómodo geral, mesmo que os partidos que atiram pedras com telhados de vidro não o façam. Concordei. Mas depois estraguei tudo: quando abrirem as listas virá mais gente da mesma pequena elite nacional. Talvez um pouco mais variada e com menos primos, mas das mesmas bolhas que se cruzaram nas mesmas escolas e restaurantes. Concluí que sou mesmo mais radical do que o meu amigo. Ele não quer falar de luta de classes.