Greve pelo clima: foram só flores?

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 18/03/2019)

Daniel Oliveira

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Na última sexta-feira houve greve e manifestações de estudantes por todo o país. Mais do que isso, foi uma greve global. A greve de estudantes pelo clima começou num ato individual de uma adolescente de 15 anos, Greta Thunberg. Descobriu na infância, porque lhe explicaram o que andávamos nós, os adultos, a fazer ao planeta onde ela terá de viver toda a sua vida. O ano passado, nas vésperas das eleições suecas, decidiu sentar-se todos os dias nas escadas do Parlamento durante o horário escolar para pressionar o Governo a adotar uma atitude mais radical no combate às alterações climáticas. Depois das eleições continuou o protesto apenas às sextas-feiras. Acabou a falar na Cimeira do Clima e a inspirar milhões de jovens. Fez um curto discurso totalmente político e bem agressivo. Devem OUVIR.

Ver milhares de secundaristas portugueses manifestarem-se é uma dose de vitaminas, para mim. Tenho quase cinquenta anos e a última vez que houve um movimento estudantil digno de nota eu estava na Faculdade. Saber que o fazem por causas que transcendem o seu ganho imediato ainda me deixa mais esperançoso. Claro que o combate a uma prova que selecionava a entrada dos alunos no ensino superior pela cultura geral que tinham ganho em casa ou a propinas que se anunciaram simbólicas e já se sabia que não o seriam ultrapassava os interesses individuais. Falava-se de democratização de acesso ao ensino superior e de igualdade de oportunidades. Mas não deixavam de ser ganhos ou perdas próximas para os envolvidos. Aquilo pelo qual se manifestaram estes jovens ultrapassa o que pode acontecer esta semana, este mês, este ano, nas suas vidas. E isso exige uma consciência política mais sofisticada.

Nunca comprei a tese de que esta geração tinha menos sentido cívico do que as anteriores. Nunca comprei, aliás, esse tese sobre qualquer geração. Em todas as gerações mudam as causas e mudam condições para agir. No caso desta, as redes sociais permitem movimentos mais inorgânicos e repentinos. Mas também criam uma maior atomização das pessoas. Libertam dos constrangimentos de quem precisava de organizações políticas, mas também impedem a construção de um conjunto de propostas coerentes. Seja como for, não imagino causa mais poderosa do que esta. Ela é, na realidade, condição para todas as outras. Como vários manifestantes escreveram nos seus cartazes, “não há planeta B”.

A questão que se levanta a estes jovens (e a nós todos) é se se conseguem organizar para lá das explosões que as redes ajudam a organizar ou se isto foram só flores. Se foram, o lastro que deixam é bom na mesma. Mas o problema do inorgânico é que tende a ser inconsequente. A não ser, claro, que deixe de ser inorgânico. O que perde em poesia ganha em eficácia

“Se há coisa que me irrita são velhos que quiseram mudar o mundo quando eram putos a dizerem mal de putos que querem mudar o mundo antes de chegarem a velhos” O twit é do humorista “Jel” e resume muitíssimo bem a irritação que me causou algum paternalismo que fui vendo em relação a este movimento. Houve três tipos de paternalismos. O primeiro foi o que se apressou a zurzir nos meninos que em vez de estarem nas aulas se baldam para ir à manif. Se dependermos de gente que pensa assim bem podemos desistir da democracia. Para eles a cidadania é coisa que se faz nas horas vagas, jovens responsáveis são os que se pensam na sua carreira e se estão nas tintas para a comunidade, a humanidade e o planeta.

O segundo paternalismo foi parecido. Foi o que explicou a estes jovens o que devem fazer na sua vida privada para serem coerentes com o que exigem aos políticos: andar de transportes públicos, comer menos carne, aprender a cozinhar, não usar plástico, reutilizar e reciclar. Não é que estas afirmações estejam erradas: há neste combate civilizacional um lado privado quotidiano importantíssimo. Mas mesmo que estes jovens fizessem tudo isto o problema ficaria quase inalterado. Porque as grandes mudanças dependem de decisões políticas que imponham regras à indústria, façam investimentos públicos, mudem políticas fiscais, mudem leis, planifiquem cidades e economias. Percebo a exigência de coerência, mas a tentativa de privatizar este debate é a melhor forma de o despolitizar. Na realidade, se quem exige isto aos jovens aplicasse para si o mesmo tipo de exigência pouco ou nada poderia dizer sobre as grandes escolhas políticas que temos de fazer em vários domínios. Em resumo: salvar o ambiente implica escolhas na vida privada, mas quando centenas de milhares se manifestam não se limitam a uma ação de sensibilização junto do cidadão, para que reciclem o seu lixo. Exigem a coragem de medidas políticas dos decisores.

O último paternalismo foi o mais simpático: tentou transformar estas manifestações num momento consensual. Quem não quer salvar o planeta? Este paternalismo tem uma base real em que trabalhar: é natural que um movimento inorgânico, sem base política, não apresente um programa de medidas bem fundamentado. E é normal que um movimento que nasce de jovens sem experiência política nem acesso aos instrumentos técnicos que permitem apresentar soluções, não vá por aí. Isso torna o seu discurso facilmente unânime. Só quando se fazem escolhas para resolver um problema que quase todos assumem como importante é que passa a haver oposição. E só quando há oposição é que sabemos que estamos mesmo a tentar mudar alguma coisa. Por agora, estes jovens só têm contra si aqueles que não gostam que os jovens se manifestem e os que negam a ciência. Universos que por estes tempos tendem a coincidir.

Tentarei também eu evitar o paternalismo. Mas não ser paternalista passa por assumir que esta luta não é apenas destes jovens. Eles são os motores dela, mas todos temos o dever de nos envolver. E há três coisas que eles devem evitar: serem fofinhos, serem uma soma de seitas e causas e alimentarem o ódio geracional.

De um já falei: evitarem ser consensuais e por isso inúteis. O passo seguinte é politizarem (não ter medo da palavra, que é nobre) o que é político. Foi o que Greta Thunberg fez no seu curto e extraordinário discurso. Não permitirem que o poder se apodere do que é uma boa marca. E isso implica falarem com quem tem propostas, soluções, alternativas. E exigirem que sejam implementadas. E nesse processo aprenderem a lidar com a contradição entre vários valores que devem ser protegidos. Sabendo que se desprezarem alguns valores sociais fundamentais o povo estará contra essas propostas e elegerá quem as recuse. Que há várias formas de fazer a mesma coisa, umas mais justas e outras mais injustas. E que o poder tende a escolher as mais injustas. E todas estas escolhas implicam ter inimigos, terem uma imprensa menos simpática, terem pessoas que estariam nas coisas e assim não estarão. Não terem medo de ser impopulares, como disse Greta Thunberg.

O risco seguinte é o oposto. Nos jornais e nas televisões vi muitos cartazes nas manifestações. Uns contra o capitalismo, outros pelo veganismo. É natural e saudável que cada um aproveite estes momentos para as suas causas. Mas a diversidade só enriquece se houver uma síntese. E isso implica um objetivo comum, que não será seguramente a revolução socialista ou a generalização da dieta vegan, mesmo que passe por transformações radicais no modelo económico e na nossa alimentação. Suspeito que não tenhamos assim tanto tempo. Se o inimigo – e há inimigos – é quem, por ignorância, ganância ou conforto, recusa a ciência, a aliada tem de ser a evidência científica. E as propostas são aquelas que os poderes que existem devem ser forçados, em muito pouco tempo, a implementar e que as sociedades conseguem aguentar.

Claro que estes dois riscos – de ser demasiado consensual ou demasiado tribal – resulta de um problema que é deste tempo e, por ser deste tempo, afeta mais esta geração: a maravilha de fazer um movimento sem organizações corresponde ao pesadelo de não ter uma direção e uma organização. O que torna muito mais difícil definirem objetivos, fazerem exigências concretas e concretizáveis a que os políticos tenha mesmo de responder e manterem a pressão sobre eles. A questão que se levanta a estes jovens (e a nós todos) é se se conseguem organizar para lá das explosões que as redes ajudam ou se isto foram só flores. Se foram, o lastro que deixam é bom na mesma e não deixará de marcar os políticos e cidadãos de agora e de depois. Mas não me parece que assustem muito os poderes que contam, que serão até capazes de esverdear um pouco o seu discurso. O problema do inorgânico é que tende a ser inconsequente. A não ser, claro, que deixe de ser inorgânico. O que perde em poesia ganha em eficácia.

O terceiro risco é isto transformar-se num combate dos jovens contra os velhos. É tentador. Primeiro, porque é justo. Estes jovens receberam o planeta desfeito e foi a minha geração, que desde os anos 80 sabe muitíssimo bem que caminha para um ponto de não retorno, que nada fez. Nem sequer por eles. A maioria preferiu não mexer um milímetro no seu conforto e deixar o inferno para os seus próprios filhos e netos. Fomos, estamos a ser, indecentes. E não devem perdoar-nos por isso. Devem continuar até assumirmos todos, não a nossa culpa, que serve de pouco, mas a nossa responsabilidade. Mas isto não deve ser uma forma de aprofundar a incomunicabilidade, mesmo que ela seja da natureza da relação de todas as gerações entre si. Porque no meio há um planeta para salvar que não pode esperar que a geração de Greta Thunberg chegue ao poder. E porque têm aliados nos adultos e terão adversários na sua própria geração, quando chegar a altura. As soluções urgentes ainda estão nas mãos dos políticos, técnicos e cientistas das gerações mais velhas. Precisam deles e dos que os elegem. Mas isso eles sabem. Estão, e muitíssimo bem, apenas a tentar envergonhar-nos.


Queremos os vossos filhos

(Marisa Matias, in Diário de Notícias, 16/03/2019)

Marisa Matias

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Há poucas imagens que me ficam presas à memória como se nunca tivesse saído desse episódio. Um delas é a da mulher síria que, em 2013, atravessava a fronteira em direção ao Líbano. Eu estava aí com a chefe de delegação da União Europeia no Líbano, numa missão que procurava acautelar a resposta de emergência às três mil pessoas refugiadas que entravam no país a cada dia que passava. Na altura não se falava de refugiados sírios ainda por estes lados. Ora bem, esta mulher estava em final de tempo de gravidez. Tinha feito mais de 80 quilómetros a pé, atravessado o Anti-Líbano – a cordilheira síria que do outro lado da fronteira faz espelho com o monte Líbano – e estava exausta, com frio, com fome e sede e o desespero de ter perdido a casa e a família num bombardeamento. Chegou sozinha e poucas horas depois teve a bebé. Quando regressámos para falar com ela, disse-nos apenas: “Agradeço a Deus.” Na altura pensei, eu que não acredito na existência de Deus, que talvez tivesse sido mesmo obra de Deus, já que nós fomos totalmente incapazes de evitar situações como esta.

Várias vezes contei este episódio porque se construiu uma narrativa de que refugiados são sinónimo de terroristas – como se terroristas tivessem de arriscar a vida a atravessar uma cordilheira em pleno inverno ou a fazer-se ao Mediterrâneo em barcos a cair de podres – e porque se ignoram sempre as mulheres e as crianças, que são a esmagadora maioria dos refugiados que chegaram à Europa, por não encaixarem no “rótulo”. Entre essas mulheres há muitas grávidas. Contactei ao longo destes anos com várias delas. Decidiram arriscar também porque não era já apenas a sua vida, mas a vida que carregavam. Mulheres grávidas refugiadas ou migrantes são numerosas, sim, por isso mesmo.

Trago este caso a propósito do debate em torno da proposta do PP espanhol, na sua lei da maternidade, que lançou a suspeita de que os trâmites de expulsão das mulheres grávidas imigrantes sem papéis fossem adiados se elas dessem os seus filhos para adoção, podendo as mulheres ficar no país enquanto estiverem grávidas.

A sugestão surgiu no quadro de combate ao “inverno demográfico” que vive o país. A proposta que foi apresentada e comentada por dirigentes do PP, que mais tarde classificaram de barbaridade a leitura que estava a ser feita, já que a intenção era humanitária e de evitar que as mulheres usem o “expediente” da adoção para ficar no país. Confesso que me faltam os adjetivos para classificar esta proposta em qualquer das suas leituras. Náusea e vergonha é o que sinto. Aqui há de tudo: arrogância, superioridade cultural, violação de todos os direitos fundamentais e, em particular, da dignidade humana. Não há legalidade ou justificação possível para uma intenção que, na sua base, é criminosa.

Eurodeputada do BE


As três ignorâncias contra a democracia

(Boaventura Sousa Santos, in Outras Palavras, 15/03/2019)

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Escrevi há muito que qualquer sistema de conhecimentos é igualmente um sistema de desconhecimentos. Para onde quer que se orientem os objetivos, os instrumentos e as metodologias para conhecer uma dada realidade, nunca se conhece tudo a respeito dela e fica igualmente por conhecer qualquer outra realidade distinta da que tivemos por objetivo conhecer. Por isso, e como bem viu Nicolau de Cusa, quanto mais sabemos mais sabemos que não sabemos. Mas mesmo o conhecimento que temos da realidade que julgamos conhecer não é o único existente e pode rivalizar com muitos outros, eventualmente mais correntes ou difundidos. Dois exemplos ajudam. Numa escola diversa em termos étnico-culturais, o professor ensina que a terra urbana ou rural é um bem imóvel que pertence ao seu proprietário e que este, em geral, pode dispor dela como quiser.

Uma jovem indígena levanta o braço, perplexa, e exclama: “professor, na minha comunidade a terra não nos pertence, nós é que pertencemos à terra”. Para esta jovem, a terra é Mãe Terra, fonte de vida, origem de tudo o que somos. É, por isso, indisponível. Durante um processo eleitoral numa dada circunscrição de uma cidade europeia, onde é majoritária a população roma (vulgo, cigana), as seções de voto identificam individualmente os eleitores recenseados. No dia das eleições, a comunidade roma apresenta-se em bloco nos lugares de votação reivindicando que o seu voto é coletivo porque coletiva foi a deliberação de votar num certo sentido ou candidato. Para os roma não existem vontades políticas individuais autônomas em relação às do clã ou família. Estes dois exemplos mostram que estamos em presença de duas concepções de natureza (e propriedade), num caso, e de duas concepções de democracia, no outro.

O primeiro modo de produção de ignorância (chamemos-lhe Modo 1) reside precisamente em atribuir exclusivamente a um modo de conhecimento o monopólio do conhecimento verdadeiro e rigoroso e desprezar todos os outros como variantes de ignorância, quer se trate de opiniões subjetivas, superstições ou atavismos. Este modo de produção de ignorância continua a ser o mais importante, sobretudo desde que a cultura eurocêntrica (um certo entendimento dela) tomou contato aprofundado com culturas extra-europeias, especialmente a partir da expansão colonial moderna. A partir do século XVII, a ciência moderna consolidou-se como tendo o monopólio do conhecimento rigoroso. Tudo o que está para além ou fora dele é ignorância. Não é este o lugar para voltar a um tema que tanto me tem ocupado. Direi apenas que o Modo 1produz um tipo de ignorância: a ignorância arrogante, a ignorância de quem não sabe que há outros modos de conhecimento com outros critérios de rigor e tem poder para impor a sua ignorância como a única verdade.

O segundo modo de produção de ignorância (Modo 2) consiste na produção coletiva de amnésia, de esquecimento. Este modo de produção tem sido frequentemente ativado nos últimos cinquenta anos, sobretudo em países que passaram por longos períodos de conflito social violento. Esses conflitos tiveram causas profundas: gravíssima desigualdade socioeconômica; apartheid baseado em discriminação étnico-racial, cultural, religiosa; concentração de terra e consequente luta pela reforma agrária; reivindicação do direito à autodeterminação de territórios ancestrais ou com forte identidade social e cultural, etc. Estes conflitos, que muitas vezes se traduziriam em guerras prolongadas, civis ou outras, produziram milhões de vítimas – entre mortos, desaparecidos, exilados e internamente deslocados. Para além das partes em conflito, houve sempre outros atores internacionais presentes e interessados no desenrolar do conflito; a sua intervenção tanto conduziu ao agravamento do conflito como (menos frequentemente) ao seu término. Em alguns poucos casos houve um vencedor e um vencido inequívocos. Foi esse o caso do conflito entre o nazismo e os países democráticos. Na maioria dos casos, porém, tende a ser questionável se houve ou não vencedores e vencidos, sobretudo quando a parte supostamente vencida impôs condições mais ou menos drásticas para aceitar o fim do conflito (veja-se o caso da ditadura brasileira que dominou o país entre 1964 e 1985).

Em ambos os casos, terminado o conflito, inicia-se o pós-conflito, um período que visa reconstruir o país e consolidar a paz. Nesse processo participam com destaque as comissões de verdade, justiça e reconciliação, muitas vezes como componentes de um sistema mais amplo que inclui a justiça transicional e a identificação e apoio às vítimas. São disso exemplo a Coreia do Sul, Argentina, Guatemala, África do Sul, ex-Iugoslávia, Timor-Leste, Peru, Ruanda, Serra Leoa, Colômbia, Chile, Guatemala, Brasil. Na maioria dos processos pós-conflito, forças diferentes militaram por razões diferentes para que a verdade não fosse plenamente conhecida. Quer porque a verdade era demasiado dolorosa, quer porque obrigaria a uma profunda mudança do sistema econômico ou político (desde a redistribuição de terra ao reconhecimento da autonomia territorial e a um novo sistema jurídico-administrativo e político). Por qualquer destas razões, preferiu-se a paz (podre?) à justiça, a amnésia e o esquecimento à memória, à história e à dignidade. Assim se produziu uma ignorância indolente.

Modo 3 de produção de ignorância consiste na produção ativa e consciente de ignorância por via da produção massiva de conhecimentos de cuja falsidade os produtores estão plenamente conscientes. O Modo 3 produz conhecimento falso para bloquear a emergência do conhecimento verdadeiro a partir do qual seria possível superar a ignorância. É este o domínio das fake news. Ao contrário dos Modos 1 e 2, a ignorância não é aqui um subproduto da produção. É o produto principal e a sua razão de ser. Os exemplos, infelizmente, não faltam: a negação do aquecimento global; os imigrantes e refugiados como agentes de crime organizado e ameaça à segurança da Europa ou dos EUA; a distribuição de armas à população civil como o melhor meio de combater a criminalidade; as políticas de proteção social das classes mais vulneráveis como forma de comunismo; a conspiração gay para destruir os bons costumes; a Venezuela ou Cuba como ameaças à segurança dos EUA; etc., etc.

Os três modos de produção produzem três tipos diferentes de ignorância, estão articulados e acarretam consequências distintas para a democracias. O Modo 1 produz uma ignorância arrogante, abissal, que é simultaneamente radical e invisível na medida em que o monopólio do conhecimento dominante é generalizadamente aceito. As verdades que não cabem na verdade monopolista não existem e tão-pouco existem as populações que as subscrevem. Abre-se assim um campo imenso para a sociologia das ausências. Foi por isso que o genocídio dos povos indígenas e o epistemicídio dos seus conhecimentos (passe o pleonasmo) andaram de mãos dadas. O Modo 2 produz a ignorância indolente que se satisfaz superficialmente e que, por isso, permanece como ferida que arde sem se ver. É a ignorância-frustração que sucede à verdade-expectativa. Uma ignorância que bloqueia uma possibilidade e uma oportunidade emancipadoras que estiveram próximas, que eram realistas e, que, além disso, eram merecidas, pelo menos na opinião de vastos setores da população. Esta ignorância sugere uma sociologia das emergências, da emergência de uma sociedade que se afirma reconciliada consigo mesma, com base em justiça social, histórica, étnico-cultural, sexual. O Modo 3 cria uma ignorância malévola, corrosiva e, tal como um cancro, dificilmente controlável, na medida em que as redes sociais têm um papel crucial na sua proliferação. Esta ignorância está para além da ausência e da emergência. Esta ignorância é a prefiguração da estase, a imobilidade que estrutura a vertigem do tempo imediato.

Os três modos de produção e as respectivas ignorâncias que produzem não existem na sociedade de modo isolado. Articulam-se e potenciam-se por via das articulações que os tornam mais eficazes. Assim, a ignorância arrogante produzida pelo Modo 1 (monopólio da verdade) facilita paradoxalmente a proliferação da arrogância malévola produzida pelo Modo 3 (falsidade como verdade alternativa).

É que uma sociedade saturada pela fé no monopólio da verdade científica torna-se mais vulnerável a qualquer falsidade que se apresente como verdade alternativa usando os mesmos mecanismos da fé.

Por sua vez, a ignorância indolente produzida pelo Modo 2 (amnésia, esquecimento) desarma vastos setores da população para combater a ignorância produzida quer pelo Modo 1, quer pelo Modo 3.

A ignorância arrogante é uma das principais causas da ignorância indolente, ou seja, da facilidade com que se esquece, normaliza e banaliza um passado de morte de inocentes, de sofrimento injusto, de pilhagens convertidas em exercícios de propriedade, de corpos de mulheres e de crianças violentados como objetos de guerra. Quando a ignorância arrogante se complementa com a ignorância malévola, a ignorância indolente torna-se tão invisível que é praticamente impossível de erradicar.

O impacto destes três tipos principais de ignorância nas democracias do nosso tempo é convergente, embora diferenciado. Todas estas ignorâncias contribuem para produzir democracia de baixa intensidade. A ignorância arrogante torna impossível a democracia intercultural e plurinacional, na medida em que outros saberes e modos de vida e de deliberação são impedidos de contribuir para o aprofundamento democrático; e faz com que vastos setores da população não se sintam representados pelos seus representantes e nem sequer participem nos processos eleitorais de raiz liberal. A ignorância indolente retira da deliberação democrática decisões sobre justiça social histórica, sexual, e descolonizadora, sem as quais a prática democrática é vista por vastas camadas da população como um jogo de elites, uma disputa interna entre os vencedores dos conflitos históricos. Mas a ignorância malévola é a mais antidemocrática de todas. Sabemos que as deliberações democráticas são tomadas com base em fatos, percepções e opiniões. Ora a ignorância malévola priva a democracia dos fatos e, ao fazê-lo, converte a boa fé dos que dela são vítimas em figurantes ou jogadores ingênuos num jogo perverso onde sempre perdem e, mais do que isso, se auto-infligem a derrota.


Fonte aqui.