(Vicente Ferreira, in blog Ladrões de Bicicletas, 18/02/2022)
Os impostos voltaram ao centro do debate em Portugal. Muitos, à direita, veem no nível de fiscalidade um dos principais obstáculos ao desenvolvimento económico do país. Apesar de ter sido responsável pelo maior aumento de impostos sobre as famílias desde o início do século, a direita tem feito campanha pela redução de impostos para todos. No seu programa eleitoral, o PSD propunha começar por baixar o IRC para as empresas e depois avançar para eventuais reduções do IRS para as pessoas. A IL defende simultaneamente uma enorme redução do IRC (que quer mesmo eliminar a médio prazo) e do IRS (que quer alterar para passar a ter apenas uma taxa, de 15%). O CH já chegou a defender a abolição do IRS, seguindo o exemplo de países como o Vanuatu ou as Ilhas Caimão, mas a proposta não consta do último programa que apresentou. Em todo o caso, todos querem reduzir os impostos em geral. Vale a pena tentar perceber os impactos que estas medidas teriam.
1. Cortes de impostos para as empresas: não funcionam como dizem
A direita tem repetido à exaustão que os cortes de impostos para as empresas estimulam o crescimento económico. A ideia é relativamente intuitiva: menos impostos sobre as empresas permitem-lhes aumentar os montantes que reinvestem, contribuindo para melhorar a produção e os salários. Nos debates para as eleições legislativas, o candidato da IL disse várias vezes que acreditava que a redução dos impostos se pagaria a si mesma através do crescimento gerado, pelo que o Estado não teria uma redução abrupta das receitas. O problema desta crença é que os factos teimam em desmenti-la, como mostra a recente revisão de literatura feita pelos economistas Philipp Heimberger e Sebastien Gechert.
Há estudos que usam diferentes indicadores: alterações nas taxas nominais, nas taxas efetivas ou nas receitas fiscais do Estado. Os efeitos avaliados podem ser de curto ou de longo prazo. A metodologia varia consideravelmente. E embora alguns apontem para um impacto positivo no crescimento, outros dizem que é nulo ou até negativo. Heimberger e Gechert analisaram dezenas de estudos empíricos sobre os impactos de cortes de impostos para as empresas e procuraram perceber se havia algum consenso. A conclusão é que, ao contrário do que os partidos de direita têm dito, não há evidência empírica que nos permita afirmar que esses cortes promovem o crescimento económico.
Temos até exemplos bem recentes do contrário, como o dos EUA: embora o governo de Donald Trump tenha cortado a taxa de imposto sobre as empresas de 35% para 21% (o valor mais baixo desde 1939), o investimento privado não acelerou e os salários não beneficiaram da medida. Quem ganhou verdadeiramente foram os acionistas e gestores de topo, cujos rendimentos beneficiaram do reforço da capitalização bolsista das empresas. Para os trabalhadores com salários médios ou baixos, o resultado acaba por ser negativo, dado que o Estado perde receita fiscal com que se financiam os serviços públicos de que todos beneficiam.
2. Cortes de impostos para os mais ricos: funcionam, mas só para eles
A ideia de que as medidas que beneficiam os mais ricos seriam boas para o conjunto da economia já é antiga. A economia “trickle down”, como ficou conhecida desde os tempos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, funcionaria da seguinte forma: enche-se o copo dos mais ricos e este acaba por transbordar para os que estão abaixo por via do consumo e do investimento privado, distribuindo os benefícios pela sociedade.
É isso que está na base de propostas como a da taxa plana de 15% para o IRS. A medida representaria um alívio fiscal de enormes proporções para os escalões mais elevados, ao passo que deixaria na mesma os 44% de agregados familiares que não pagam IRS (por terem rendimentos baixos) e deixaria quase na mesma quem recebe salários médios, já que os eventuais pequenos ganhos seriam mais do que compensados pela redução das receitas com que se financiam os serviços públicos. No essencial, a lógica da medida é a mesma: se se baixarem os impostos para os que recebem mais, os restantes acabarão por beneficiar do aumento do investimento dos primeiros.
O problema é que a realidade tem sido bastante diferente: Julian Limberg (King’s College) e David Hope (London School of Economics) publicaram este ano um estudo em que analisam os impactos de cortes de impostos para os mais ricos ao longo dos últimos 50 anos e concluem que não promoveram o crescimento prometido. “Focando-nos no desempenho económico, não encontramos efeitos significativos de grandes cortes de impostos. Mais especificamente, a trajetória do PIB per capita e da taxa de desemprego não são afetadas por reduções significativas dos impostos sobre os ricos, tanto no curto como no médio prazo”, escrevem os autores do estudo, que já tinha sido referido neste blog.
O único efeito visível que estes cortes de impostos têm é na desigualdade. Nas últimas décadas, os países que mais reduziram a taxa de imposto aplicada aos 1% mais ricos foram aqueles onde a fração do rendimento nacional captada por estes mais aumentou.
Ou seja, nesses países, o 1% do topo passou a arrecadar uma fatia ainda maior do bolo, como mostrou um estudo de Thomas Piketty, Emmanuel Saez e Stefanie Stantcheva (fonte do gráfico acima). Portugal é identificado pelos autores como um dos países que mais reduziu os impostos sobre os mais ricos, e a tendência foi a mesma: a fatia do bolo captada pelo 1% do topo aumentou, ao mesmo tempo que se reduzia a dos 50% da base da distribuição.
Entre os partidos de direita, a IL é o que tem sido mais vocal na defesa deste tipo de medidas. Os liberais costumam dizer que o seu programa económico já foi testado em vários países, e têm toda a razão. Mas era bom olharmos mais para os resultados que teve: mais concentração de riqueza no topo e mais desigualdades.
Um partido com apenas quatro anos de existência e um deputado apresenta-se, nestas eleições, com um programa de 600 páginas. O esforço da Iniciativa Liberal compreende-se à luz do seu objetivo estratégico: introduzir uma rutura programática no campo da direita. Em quase todos os temas, e na forma como os exploram politicamente, o denominador comum do seu ideário é a corporização política do egoísmo individual e geracional. Onde não há grandes possibilidades de expansão do mercado, como na justiça, ou onde há interesses económicos em jogo, como no ambiente, a IL não foca por muito tempo.
Rúben Leitão Serém desmonta bem e de forma exaustiva, em doisartigos publicados esta semana, o propósito de classe da IL e a sua total despreocupação pelos efeitos sociais do darwinismo social em que assentam a maioria das suas propostas fiscais, laborais ou de substituição de serviços públicos universais por modelos que, dizem, garantem a liberdade de escolha. A liberdade totalmente autocentrada que reclamam faz lembrar o argumento final do “Banqueiro Anarquista”: “Libertei um. Libertei-me a mim”.
A noção mais básica de comunidade não existe, a ideia de redistribuição para quem mais necessita não importa. O que interessa é candidamente dito pelo simulador fiscal do partido: “calcula a tua poupança”. Quando até Adolfo Mesquita Nunes, na declaração pública de apoio à IL que fez na SIC Notícias, regista que “há uma dimensão social que precisa de ser trabalhada e reforçada” e que esta “é uma questão importante”, percebemos a dimensão do problema. É mais ou menos o mesmo que eu, para apoiar um partido pelas suas propostas sociais, mas sabendo das suas poucas preocupações democráticas, dizer que “há uma dimensão política que precisa de ser trabalhada e reforçada”.
A suposta libertação da “opressão fiscal”, apesar de ser feita em nome dos jovens licenciados, concentraria ganhos e benefícios na mão de uma pequena minoria. Apenas 4% das famílias, as que ocupam os dois últimos escalões de IRS, beneficiariam de 58% das colossais perdas fiscais que a taxa única provocaria. Para todos os outros, a minúscula poupança que conseguiram não chegaria para compensar o aumento dos custos de serviços como a saúde, educação, ou a creche para os seus filhos.
A Iniciativa Liberal sabe bem quem é que beneficiaria com o seu programa e os principais beneficiados entendem ainda melhor a sua mensagem. Em 2019, nas primeiras eleições legislativas a que concorreu, a IL obteve apenas 1,3% dos votos. Em Lisboa, onde elegeu o único deputado, teve 2,47%, um resultado altamente inflacionado graças a votações sempre acima de 6% em quatro das freguesias com maior poder de compra e as casas mais caras de todo o país. Para quem não conhece as freguesias de Lisboa, o nome dos bairros e principais artérias torna mais simples perceber por que razão a Iniciativa Liberal teve votações cinco vezes acima da média nacional no Restelo, Lapa, Avenida da Liberdade ou Avenida da República. Na sua origem, é um partido de classe. Que tenta agora caçar uns incautos.
Cherry picking
Como é possível, então, que um programa altamente regressivo do ponto de vista dos rendimentos e direitos laborais, consiga marcar a agenda política e temática da direita? O seu modelo preferido de exposição e debate, o “cherry picking” de países, ajuda a explicar o relativo sucesso da mensagem. Dá para tudo. A IL defende o modelo alemão ou holandês de saúde, ao mesmo tempo que defende uma queda radical da receita fiscal e ignora os custos com saúde mais elevados nesses países (2,4% do PIB no caso da Alemanha). Diz defender a flexisegurança nórdica, mas ignora os elevados níveis de apoio social aos trabalhadores que rejeita. Elogia a produtividade da Suécia, mas ignora que o peso do Estado e número de trabalhadores no sector público é o dobro do nosso (que se encontra na cauda europeia, ao contrário do que ouvimos sistematicamente dizer). Gosta de citar o sucesso da Finlândia, mas ignora que a totalidade do ensino é gratuito e a oferta privada, quase inexistente, é fortemente regulamentada pelo Estado.
O país retratado pela IL não é Portugal. No país real, o Estado gasta menos do que a média europeia em Saúde e Educação. Tem menos funcionários públicos do que “a liberal Irlanda”. Tem uma carga fiscal abaixo da média europeia. E o sector empresarial do Estado é dos mais pequenos em todo o continente. Mas a técnica da IL é esta: inventar um país liberal com o sistema fiscal da Letónia, o peso do Estado na economia do Reino Unido e as políticas laborais da Dinamarca. E assim se imagina uma nação socialista e num continente de países liberais.
A repetição incessante de dois ou três exemplos de países para quase tudo, ignorando o contexto histórico e cultural que levou à adoção de modelos distintos, ou níveis de qualificação e especialização da economia nacional, serve para omitir que as propostas da IL são, em muitos casos, absolutamente minoritárias. Não há taxa plana em quase nenhum país europeu, e onde existe está a léguas dos 15% que é para onde defendem que devemos caminhar. Mais raro ainda é um modelo de endividamento dos estudantes para pagar o custo integral da licenciatura (à vontade do freguês, podemos ir para o Reino Unido). Para não dizer que os dirigentes liberais europeus também não defendem, como fez Cotrim num dos debates, o fim das limitações ao horário máximo de trabalho e não desvalorizam abertamente a necessidade de agirmos na proteção do ambiente.
Robin dos Bosques ao contrário
Um partido que defende o fim de um salário mínimo nacional, abrindo caminho para uma corrida para o fundo em cada município, dificilmente está preocupado com os salários – como diz a IL para defender a diminuição dos impostos. No seu programa, aliás, dizem candidamente que um valor abaixo do atual SMN, no Interior, “garantiria boas condições de vida” a pessoas menos qualificadas.
A diminuição dos impostos, seja através da taxa plana, do IRC pago pelas empresas ou da miríade de abruptos cortes fiscais na construção civil e mercado imobiliário, levaria à incapacidade do Estado cumprir as suas funções mínimas e prestar serviços públicos universais. Os mesmos serviços públicos de saúde ou educação que proporcionaram gigantescos saltos na qualidade e esperança de vida, ou na qualificação dos jovens a quem a IL diz representar. O que lhes diz é isto: qualificaste-te com os impostos dos outros, tens todo o direito a não pagar os teus. É que os impostos que pagamos financiam a escola pública e o SNS, sendo instrumentos indispensáveis um dos nossos maiores e mais persistentes problemas; a desigualdade. Segundo o insuspeito FMI, Portugal é um dos países onde o IRS mais contribui para esse objetivo.
A progressividade do imposto sobre rendimento é um pilar básico de justiça fiscal. Quem tem mais contribui mais para o esforço da comunidade e garantia de condições dignas para todos os cidadãos, fazendo assim alguma redistribuição da riqueza. É por isso que a taxa plana é minoritária na Europa e na OCDE. A IL fala da República Checa, Eslováquia, Irlanda, Croácia, Lituânia ou Letónia como exemplos, mas não só nenhum desses países tem apenas uma taxa, como advoga a IL ser seu objetivo depois de um período transitório, como todos têm uma taxa mínima com valores superiores a 15%. O único país com uma solução idêntica à da IL é a Hungria, o que nos deve dizer bastante sobre os méritos da solução.
A novidade desta campanha é que a IL, para provar que todos ficam a ganhar com a taxa plana, apresentou um simulador. Azar dos Távoras, ao deixarem apenas a dedução com os filhos e acabando com todas as outras, como habitação ou despesas gerais, não tardaram exemplos contrários nas redes sociais. Pessoas com rendimentos brutos de 13 mil euros por ano, outras com 10500 euros, há um sem número de casos relatados de pessoas que pagariam mais com taxa plana e o fim de todas as deduções. O denominador comum de quem perde? Estão todos nos escalões mais baixos do IRS.
Os problemas resultantes da taxa plana não se ficam pela injustiça social e destruição da capacidade do Estado, influenciando outras áreas da sociedade que levam a futuras medidas de compensação.
À 25ª hora, a Iniciativa Liberal tirou a proposta de empréstimos a estudantes universitários para estes pagarem os custos integrais da sua formação superior, à medida que forem entrando no mercado de trabalho. Acrescentar, num dos países com as famílias à prestação da casa a prestação da divida pela universidade à prestação da casa, tornando os jovens de classe média ainda mais escravos da banca, era capaz de afugentar os seus eleitores alvo. Mas Cotrim Figueiredo continua a achar “bom” o princípio.
Dizem os dirigentes liberais que o racional desta medida é que um licenciado ganha mais do que a média dos portugueses. Nada mais justo, portanto, que retribua o esforço que a comunidade fez com a sua formação com a devolução do dinheiro que esta custou. A ideia tem apenas um ligeiro problema. Quem mais ganha, em parte graças à sua formação académica, já paga mais hoje para a comunidade, graças aos escalões e taxas progressivas de IRS…os tais que a IL quer acabar. O mesmo argumento virá, depois, para os cuidados de saúde e tudo o mais. É uma espécie de matrioska aberta para compensar a iniquidade criada pela redução da progressividade fiscal.
O partido de classe
De resto, é em nome dos jovens, e da dívida pública que não podemos deixar às gerações futuras, que a IL defende grande parte do seu programa de ainda maior emagrecimento do Estado. Uma preocupação que não é extensível ao ambiente e ao planeta. Aí, como estão em causa interesses económicos diretos, Cotrim Figueiredo recusa-se a aceitar a existência de uma “emergência climática”, aproximando-se das teses e termos usados pelos negacionistas climáticos. Faz sentido. A corporizarão política do egoísmo e interesse próprio mais direto, com uma secundarização permanente da comunidade, é o mote do partido e o seu principal propósito. O futuro só interessa na medida em que sirva de argumento para esse egoísmo imediato.
A IL corporiza, de facto, uma ética deste tempo. A ética de uma sociedade atomizada, em que a ideia de comunidade se torna arcaica. Mas não nos enganemos. Não há nada de moderno ou sequer sofisticado na sua proposta. É a caricatura de um partido de classe, nascido como forma de pressão para aceleração da contrarreforma a que assistimos há décadas para regressar à liberdade sem concessões que a elite económica sempre reservou para si própria, como bem escasso e exclusivo dos privilegiados. E que a construção do Estado Social, do Serviço Nacional de Saúde, da Escola Pública e da função redistributiva dos impostos amenizou, dando a todos um quinhão de segurança sem a qual só se é livre para sobreviver.
A sua única dificuldade é esta: num país supostamente socialista, já pouco ou nada há para privatizar e a carga fiscal, o número de funcionários públicos e o peso de empresas do Estado no PIB está abaixo da média europeia. E o paraíso liberal que prometem é um tutti-frutti de políticas de outros países, inviáveis quando conjugadas, ignorando o que não dá jeito. Porque, afinal de contas, os nossos liberais também acreditam que há almoços grátis.
(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 11/01/2022)
Hiding in plain sight. A expressão inglesa sobre esconder algo colocando-o à vista de todos aplica-se aos programas atuais de Chega e IL. Um tem 9 páginas, outro 600, mas o essencial é o mesmo: poupar milhares de milhões de euros a quem mais ganha e tem e estralhaçar o Estado Social. O resto é conversa.
Em 2019, o Chega apresentou um programa que propunha acabar com o IRS, e vários outros impostos, e com o Estado social. Era honesto, ao menos: cortando impostos e contribuições sociais, instituía o princípio do utilizador-pagador, em que se paga o que se usa. Queres educação? Pagas. Queres saúde? Pagas. Não tens como pagar? Azar.
Sucede que o eleitorado potencial do Chega não é exclusivamente constituído pelos empresários ricos que ajudam a financiar o partido, pelo que, percebendo que as propostas não eram populares, a liderança resolveu alterar o programa, naquilo que André Ventura qualificou perante o DN como “uma clarificação inversa”.
Agora o Chega não só defende com denodo o Estado Social (excepto, claro, para os pobres que recebem RSI) como quer que cada português tenha um médico de família e não haja uma única pensão abaixo do salário mínimo. O seu líder chegou até ao desplante de confrontar o homólogo da Iniciativa Liberal, João Cotrim de Figueiredo, com o facto de a IL defender no programa de 2019 um sistema de pagamento do ensino superior público em que os estudantes teriam de, para o frequentar, contrair um empréstimo que pagariam ao Estado após a entrada no mercado de trabalho.
“Concordas com isso”, perguntou a Cotrim, afetando escândalo, o presidente do Chega, como se o seu próprio programa do mesmo ano não quisesse oferecer as escolas públicas a quem lhes pegasse, acabar com o ministério da Educação, e impor, no ensino superior, propinas diferenciadas consoante os cursos fossem considerados “úteis” ou “inúteis” (“As propinas terão em conta as necessidades de Portugal nas áreas e técnicas a que essas propinas digam respeito. As propinas a pagar por um curso de engenharia civil ou informática terão necessariamente de tender para zero, enquanto que as propinas a pagar por um curso de Sociologia terão de tender para o custo real do curso”).
Arvorado em campeão do Estado Social perante o presidente da IL, Ventura mantém no entanto a causa comum: a defesa de uma baixa radical de impostos. Escusa-se é de explicar como é que financiaria, nesse caso, a sua súbita e assolapada paixão pelas prestações sociais: só a proposta de equivaler as reformas mais baixas ao salário mínimo implicaria pelo menos um acréscimo de seis mil milhões de euros anuais – algo que corresponde a quase metade da coleta de IRS em 2019 e 2020 (respetivamente, 13 171 e 13 562 milhões) e implicaria aumentar em 33,3% o valor despendido pelo Estado em pensões (18 mil milhões em 2019).
É fácil prometer tudo a toda a gente se não se tem a mínima intenção de cumprir e, sobretudo, se se fez um programa postiço para disfarçar o verdadeiro – que é obviamente, no caso do Chega, o de 2019, o da destruição do Estado Social.
Já vimos isto acontecer com a retórica pré-eleitoral de Passos e Portas, que estavam muito preocupados com as pensões e com os cortes nas prestações sociais e o aumento de impostos até chegarem ao poder – quando subiram brutalmente o IRS, cortaram o subsídio de desemprego e as pensões e propuseram até uma diminuição definitiva das mesmas. E, recordemos, antes das eleições também PSD e CDS garantiam que bastava, para evitar aumentar impostos e baixar pensões e prestações sociais, “cortar nas gorduras do Estado” – o correspondente à retórica populista do Chega que garante bastar a diminuição do salário dos políticos e do RSI dos pobres (que nem chega a custar 400 milhões anuais) para o dinheiro jorrar do céu.
Parece impossível, mas esta conversa continua a levar pessoas ao engano – e nisso o Chega não está só. Está aliás muito bem acompanhado pela Iniciativa Liberal, que nas 600 páginas que este domingo à noite colocou online insiste na menina dos seus olhos – a baixa radical de impostos, da “flat tax” de 15% no IRS à descida do IRC e IMI e à abolição do IMT para a compra de casa própria, além de outras reduções fiscais.
Ao contrário do Chega, cujo atual programa tem 9 míseras páginas, a IL afunda-nos em palavreado e apresenta algumas contas e referências. Por exemplo no caso da flat tax garante que a introdução transitória de um sistema de duas taxas de IRS (15% até 30 mil euros de rendimento anual bruto e 28% acima disso), teria um impacto, em 2022, de menos 2 mil milhões de euros nas receitas do Estado – uma estimativa que parece no mínimo otimista.
Mas a questão vai para além da perda de receitas do Estado e do seu quantitativo, à qual acresceria a correspondente à descida de outros impostos; perguntemos em primeiro lugar quem beneficia com esta proposta e, consequentemente, quem é prejudicado – direta e indiretamente.
É que não só as vantagens que a IL alega deverem-se à introdução de uma taxa fixa estão longe de ser inquestionáveis – vários estudos internacionais, nomeadamente do Banco Mundial, do Banco Central Europeu e da OCDE, põem em causa, com base nas experiências existentes em países europeus quer os miríficos resultados económicos mencionados quer até a simplificação fiscal que supostamente resultaria da sua aplicação, sem esquecer que menos impostos arrecadados implicam cortes nas prestações sociais -, como até as contas de uma consultora financeira, a Deloitte, demonstram que quem ganha com uma taxa fixa de 15% são os contribuintes com maiores rendimentos, com o impacto direto sendo residual ou mesmo neutro para os de menores ou médios rendimentos.
Isso mesmo se percebe com dados básicos: por exemplo em 2018 a taxa efetiva de tributação dos que pagaram IRS – e que correspondem a cerca de metade dos agregados portugueses, já que a outra metade está abaixo do limiar mínimo de tributação (quem ganha o salário mínimo não paga IRS) – foi de 12,56%. Dos que pagam, mais de 60% dos agregados ficavam pelo primeiro escalão; cerca de 75% do IRS coletado diz respeito aos escalões de 28.5% a 45%. É aqui portanto que se verá a grande alteração ocasionada por uma taxa fixa – mas sobretudo nos que têm rendimentos entre os 100 mil e 250 mil euros anuais, porque são esses que pagam taxas médias mais altas.
Em 2017, de acordo com contas apresentadas em 2019 pelo Jornal Económico, esses contribuintes (correspondendo nesse ano a 40 932 agregados) foram responsáveis por uma coleta de IRS de 5 166 milhões de euros; aqueles com rendimentos acima de 250 mil euros anuais (3217 agregados) pagaram 630 milhões de euros. Somando as duas parcelas, chegamos a quase 6 mil milhões de euros de IRS pago, ou seja um pouco menos de metade do valor total deste imposto – 12 230 milhões. Não restam pois dúvidas sobre quem ganharia com a introdução de uma taxa fixa, e quem perderia: o valor que o Estado receberia a menos iria direitinho para as contas bancárias dos que auferem mais de 100 mil euros. Por outras palavras, um subsídio direto para os pobres dos ricos.