As palavras que empobrecem a nossa cabeça

(Pacheco Pereira, in Público, 23/10/2021)

Pacheco Pereira

A política em democracia sempre esteve muito dependente de palavras. A crise actual da democracia passa também por um empobrecimento da comunicação, reduzida no léxico, cheia de metáforas mortas, condicionada por mecanismos que diminuem significativamente a capacidade de transmitir argumentos a favor de soundbites e frases assassinas ou que pretendem ser virais. Numa época de radicalização, este empobrecimento da comunicação, ou melhor do sentido racional da comunicação, é um elemento fundamental para o domínio do Pathos sobre o Logos, que acompanha a tendência para subir o volume do discurso, para valorizar os decibéis. Este processo faz-se num contínuo entre o discurso político, o das “redes sociais” e o da comunicação social, tendo como resultado que cada um fala para os seus e não ouve os outros.

Walter Crane, A Bela e a Besta, 1874

Este processo está em pleno curso em Portugal, acentuado pelas fracturas profundas dentro do PSD e do CDS e pelo confronto entre uma direita radical e uma esquerda em perda, em que a moderação do centro é varrida pela arregimentação. Não é que a democracia não comporte a conflitualidade política e que esta não possa ser dura, o que se espera é que esta conflitualidade não perca a capacidade de “falar” connosco, em vez de apenas nos berrar palavras de ordem e, acima de tudo, querer colocar-nos “na ordem”. A radicalização não é a insubmissão, nem a justa revolta, é outra coisa: é a substituição do indivíduo e da sua liberdade pela ordem de marcha. É aqui que as palavras têm o seu papel perverso.

Vivemos há anos sob a ditadura de algumas expressões que fazem estragos na política, porque de há muito o seu significado original se perdeu ou deixou de ter sentido. Há várias palavras cuja utilização tem servido para essa radicalização, uma das quais é “liberdade”, usada no estrito senso do liberalismo económico, sempre acompanhado por um forte autoritarismo político e social, ou a palavra “socialismo”, utilizado como uma classificação universal para designar desde o socialismo propriamente dito – uma raridade nos dias de hoje – ao intervencionismo do Estado.

Este pode nada ter a ver com o socialismo, tendo antes a ver com a existência de um sector público na economia, ou sistemas nacionais de saúde ou educação, providência e leis laborais. Muitas destas coisas tanto podem ser socialistas como democratas-cristãs, embora historicamente a sua construção deva muito a uma tradição moderada do socialismo, a social-democracia.

Outra dessas palavras é o “bloco central”, o anátema sobre qualquer entendimento entre as alas do centro-esquerda e a esquerda não comunista. A experiência do “bloco central” em Portugal fez-se em circunstâncias que nada têm a ver com a actualidade. O efeito perverso do “bloco central”, o acordo de governo entre PS e PSD, foi a desertificação política que gerava um “centro” com um peso enorme na representação política. Hoje, não só os dois partidos estão muito fragilizados, como o aparecimento de partidos populistas e a radicalização da direita, alteraram a geografia política.

Aquilo a que alguns no PSD chamam “clarificação”, com a habitual referência enganadora a Sá Carneiro, é uma coisa muito diferente, é a colocação do PSD à cabeça de uma “frente de direita” versus uma frente de esquerda, exactamente o curso político que Sá Carneiro sempre recusou na teoria e na prática, de forma aliás muito explícita. Lembrarei mais uma vez que Sá Carneiro preocupou-se em que, na construção da AD, houvesse uma componente de centro-esquerda, neste caso os Reformadores. Também o PPM com que se aliou nada tem a ver com o PPM actual, a não ser o “monárquico” no título. Já para não dizer que o CDS também era muito diferente do actual CDS, com Amaro da Costa que foi o principal interlocutor de Sá Carneiro, com uma formação democrata-cristã.

Em momento de radicalização, as palavras são perfeitas para diminuir as opções e reduzir tudo a dois lados combatentes. Do mesmo modo, o simplismo é um maná para a comunicação social, que se sente sempre muito à vontade quando beneficia do Pathos dos exércitos perfilados. Mas a substância da democracia perde quando a ecologia do combate, o desespero da impotência, a fragilidade do cansaço, se misturam para criar este caldo de cultura.

A história pode não nos ensinar nada e normalmente não nos ensina nada, mas o que se pode dizer é que sempre que isto aconteceu o resultado foi mau para a democracia.

Historiador


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Cantando e rindo, a ditadura fabrica a democracia?

(Francisco Louçã, in Expresso, 13/08/2021)

Carlos Guimarães Pinto (C.G.P.) ficou ofendido com o meu ensaio sobre “A traição dos liberais” e saltou “Em defesa da democracia liberal” (Revista E de 23 de julho e 6 de agosto), em particular em prol dos seus três principais arautos do final do século XX, Hayek, Friedman e Buchanan. Para apresentar a causa, mobiliza as suas artes de ocultação e de efabulação, para obter um efeito de justificação que é luminoso sobre a deriva autoritária dos liberais.

A EXCLUSÃO COMO CIMENTO DO PODER

O argumento começa assim: os três heróis liberais deram-se por missão “alertar para os riscos da tirania da maioria”, estabelecendo que “uma maioria conjuntural não pode ter poderes ilimitados nem subjugar minorias”. É bonito, mas o problema é que a doutrina foi posta à prova, como lembrei no meu ensaio e C.G.P. delicadamente preferiu esquecer: Friedman e Buchanan fizeram parte da campanha presidencial de Barry Goldwater em 1964, sendo o primeiro um dos seus principais conselheiros, e ambos defenderam que o seu candidato devia recusar as leis dos direitos civis que passaram a abranger os negros. Atribuíram depois o fracasso à falta de energia do candidato contra os direitos igualitários e repetiram que teria sido um erro não persistir nessa “subjugação das minorias” étnicas.

Quando tiveram de escolher sobre as condições de milhões de pessoas, as pretensões teóricas destes liberais cederam à preservação do racismo. O poder que defenderam não seguia os preceitos constitucionais sobre os quais dissertavam. Para conhecer o vilão, é pôr-lhe o pau na mão.

EDUCAR OS DITADORES?

Se C.G.P. prefere ocultar o conservadorismo racista daqueles seus heróis, em contrapartida dedica-se corajosamente à defesa do seu apoio a ditaduras. Para tanto usa dois exemplos.

O primeiro é delicioso. É a carta que Hayek escreveu a Salazar em 1962, acompanhando o seu livro “A Constituição da Liberdade”. Explica C.G.P. que a carta foi escrita porque Hayek “acreditava que Salazar queria fazer uma transição para a democracia”. Parece que C.G.P. prefere apoiar Hayek sugerindo que ele seria tonto: quando a carta foi escrita já tinham passado 36 anos desde a instauração da ditadura, 17 anos desde o fim da II Guerra Mundial, já Humberto Delgado tinha sido assassinado, já começara a Guerra Colonial, não havia qualquer sinal de cedência do ditador. Só que nem a desculpa de uma eventual destituição mental do herói liberal serve, pois a carta apresenta-se, sem álibis, como um contributo para ajudar Salazar “na sua tarefa de desenhar uma Constituição que previna os abusos da democracia”, como Hayek escreve. Fantasiar esta diligência como uma tentativa de ensinar Salazar a “limitar o alcance das decisões maioritárias” é de mau gosto. Era mesmo para “prevenir os abusos da democracia”, o que Salazar ia fazendo à sua maneira.

O segundo exemplo é mais sofisticado. As sucessivas peregrinações dos três liberais ao Chile durante a ditadura de Pinochet, a missiva de Hayek a Thatcher para a convencer a apoiar o ditador, as suas cartas ao “Times” para elogiar o regime, tudo isso é transformado numa “questão moral”: “Deve um economista dar aconselhamento económico a regimes ditatoriais?”, pergunta C.G.P. E responde afirmativamente. Já ficou para trás o princípio grandiloquente que C.G.P. enuncia no início do seu texto, “nenhum governo deve poder violar direitos humanos fundamentais”, pois aqui há uma subtileza muito “moral”: diz o nosso polemista que, sim senhor, os governantes chilenos eram discípulos diletos de Friedman, mas que criaram “um sucesso económico sem precedentes” e “os mercados livres conseguiram o seu trabalho de trazer uma sociedade livre” (notar o “trazer”). De onde e como “trouxeram”, isso é mistério. O que se sabe é que os tais discípulos que eram ministros da ditadura chacinaram alegremente milhares dos seus concidadãos e que, quando os três profetas os visitaram, nenhum teve a presença de espírito de lembrar essa inconveniência dos direitos humanos.

Pior, aqueles liberais escreveram e repetiram que o liberalismo económico pode dispensar a democracia: “é pelo menos teoricamente possível que um governo autoritário atue na base de princípios liberais” (Hayek) e “pode-se ter um alto grau de liberdade social e um alto grau de liberdade económica sem qualquer liberdade política” (Friedman). Pinochet aplaudiu cada uma destas palavras. No isolamento da sua ditadura, o apoio daqueles senhores foi um bálsamo.

CANTANDO E RINDO

C.G.P. alinha com as trôpegas justificações destes heróis cadastrados inventando uma teoria sobre o sucesso económico de Pinochet que teria levado à democracia (foi um desastre, a segurança social privatizada faliu, e a ideia de sucesso sobre cadáveres qualifica o autor). Não sei se é mais cruel este desprezo pelas vítimas ou a sugestão de uma justificação para o abuso.

Mas a tese de que uma ditadura pode ser o caminho para o sucesso de medidas económicas liberais tem colossais consequências e explica tanto a satisfação daqueles homens com Pinochet como a atual deriva autoritária dos seus novos discípulos.

Então, se esta traição ensina alguma coisa é que aqueles profetas da “democracia liberal” renegaram a democracia e, portanto, a liberdade. O relativismo constitucional, a naturalização da violência social e a subjugação da sociedade a uma tirania económica torna-se, assim, o mantra da iliberalidade do liberalismo moderno. Fiel aos seus mestres, C.G.P. chama a isto uma “questão moral” e diz-nos que a história se pode repetir.


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Onde é que precisamos de liberais e não os temos

(José Pacheco Pereira, in Público, 08/05/2021)

Pacheco Pereira

O país está a ficar cheio de “liberais”, do “liberalismo” da moda. A palavra “liberdade” está a ser capturada pela direita mais radical. Confortável nas sondagens, a esquerda do PS, como o centro do PSD, perde todos os dias o debate ideológico. O BE está demasiado mole e autocentrado e o PCP preso num gueto verbal, ambos consideravelmente ineficazes face à crescente agressividade da direita. O único partido com dinamismo político e eleitoral é o Chega. O centro, centro-esquerda e centro-direita está errático e pouco afirmativo. As asneiras acumulam-se em todas as áreas que são de não direita. Em modo tribal, a agressividade dá frutos. A seu tempo, o conforto nas sondagens diminuirá. Aproximam-se tempos de mudança e o número de cegos que não querem ver é cada vez maior.

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Falta muito a gente da liberdade, sem aspas, que reaja a todo o caminho que se está a fazer debaixo dos nossos pés. Faltam liberais sem aspas à esquerda e à direita, capazes de serem firmes em defesa da liberdade, muito duros na sua firmeza, mas moderados na acção. E uma das razões por que isso acontece é por medo. Ninguém quer ser alvo da avalanche de insultos, dos processos de intenção, das ameaças que hoje pululam nas redes sociais e nas caixas de comentários. Não sabem onde está tudo isto? Eu digo-lhes onde está.

A fronda populista varre a prudência de pensar duas vezes e, pouco a pouco, a fragilidade crescente dos partidos políticos fá-los soçobrar aos princípios para responder à avalanche populista. O efeito mais pernicioso de casos como o de Sócrates-Ivo Rosa é criar, em nome da luta contra a corrupção, uma deriva autoritária e liberticida. A Justiça é numa sociedade democrática um pilar do Estado, é um dos poderes fundamentais na sua autonomia e independência, como o poder legislativo e executivo. A doutrina da separação dos poderes não retira o exercício dos diferentes poderes do âmbito do Estado, nem impede por si só a sua perversão e contaminação – ou seja, a dependência do poder político é uma possibilidade e um risco, mesmo sem se mudarem normas e procedimentos. E tudo aquilo que permitimos agora na convicção de que não haverá abusos pode amanhã ser usado de forma abusiva e persecutória.

Dou muitas vezes como exemplo a intromissão na liberdade individual por meios informáticos, feita em nome da eficácia, que nos parece inocente agora, mas cria todos os instrumento para poder ser usada contra as liberdades. Digo muitas vezes que uma nova PIDE que acedesse às bases de dados das Finanças, aos pagamentos do Multibanco, aos trajectos da Via Verde, aos metadados dos telemóveis podia saber tudo sobre qualquer cidadão. Se uma autoridade legítima o precisa de fazer para perseguir uma actividade criminosa, e se o fizer sob controlo judicial, muito bem. Tudo o resto, muito mal.

Não estou a falar de abstracções. Já houve jornais que pagavam informação a pessoas do fisco com acesso aos dados para fazerem “investigações”. Já houve magistrados que foram para além da lei para fazerem “pesca de arrasto” para encontrarem culpados, mesmo que não houvesse qualquer indício de actividade criminosa. Há legislação que implica a violação do segredo profissional dos advogados face aos seus clientes com considerável indiferença destes. O fisco viola a privacidade dos cidadãos obrigando as facturas a terem não apenas o montante da transacção, mas discriminação, por exemplo, dos títulos dos livros que se compra numa livraria. Há tentativas de “acrescentar”, sempre em nome da eficácia, dados suplementares ao cartão de cidadão. A aplicação Stay Away Covid apoiada pelo Governo implicava a violação de dados pessoais e não é líquido que os novos “passaportes” com dados sanitários também não o façam.

A inversão do ónus da prova, para que agora há um clamor populista, a que quem de direito responde tibiamente, é um instrumento persecutório e de abuso nas mãos do Estado. O enriquecimento “ilícito”, se o é, deve ser provado pela Justiça, pelo Estado. Dê-se aos magistrados e às polícias todos os instrumentos necessários para essa prova, mas não se crie uma situação em que seja o próprio a ter de provar a sua inocência. O furor legítimo contra a corrupção não deve dar às mãos do Estado instrumentos potenciais para todos os abusos.

Hoje parece que será contra o “ilícito” do enriquecimento, mas amanhã pode ser para qualquer um, para vinganças políticas, para abater adversários. Dado o instrumento, destruído o princípio, o abuso é só uma questão de tempo.

Aqui é que precisamos de liberais e eles nos faltam. Muitos, aliás, dos “liberais” dos dias de hoje são indiferentes a estas liberdades e, para atacarem aquilo a que chamam a “corrupção do socialismo”, estão dispostos a dar ao Estado enormes poderes. Eu, que me dou bem com o honroso nome de liberal, na tradição de Garrett e de Herculano, ou da minha terra, o Porto, não estou disposto a dar ao Estado o direito de me obrigar a provar a minha inocência. É, se quiserem, uma posição humanista sobre a natureza humana, deixando o pecado original para os crentes, mas não para a democracia.


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