Putin para os inimigos da Rússia: Chegando!

(Dmitry Orlov, in Sakerlatam.org, 21/02/2023)

Uma boa maneira de determinar se você ainda está vivo é perguntar se ainda consegue sentir admiração e espanto ao observar as mudanças que varrem o mundo. A maioria dessas mudanças é gradual e difícil de detectar como parte de sua experiência cotidiana e, portanto, é útil quando alguém importante fica na sua frente por uma hora, como Putin fez hoje perante a Assembleia Federal da Rússia, e explica exatamente o que aconteceu e exatamente o que vai acontecer. Também é bastante divertido: Putin é alguém naturalmente irreprimível e se recusa a se conter. Seu russo também tem um tremendo alcance dinâmico: em um momento ele soa como um garoto malandro das ruas violentas de Leningrado, e em outro momento ele soa como um advogado e um tecnocrata consumado, estudioso literário ou mesmo um estudante de teologia. Bem, ele é todas essas coisas. Goste dele ou o odeie (poucas pessoas conseguem se sentir neutras em relação a ele), mas ele é difícil de ignorar. Até porque, como é de praxe, em seu discurso anual à Assembleia Federal não faltava o que os linguistas chamam de performativos — afirmações que não exprimem opinião nem transmitem informações, mas, na verdade, transformam a realidade de maneiras específicas. E é importante saber sobre isso, especialmente se você mora em um dos países cujos líderes (muito estupidamente) decidiram ser inimigos da Rússia, já que, no final das contas, é a sua bunda que está em jogo. Você pode ficar maravilhado com o incrível líder cujo nome é Vladimir Putin (não há nada para detê-lo), mas, mais especificamente, sinto que é meu dever humanitário avisá-lo do que provavelmente acontecerá antes que alguém grite “Chegando!” Dessa maneira, você pode formular um plano melhor do que apenas se cobrir com um lençol branco e rastejar lentamente em direção ao cemitério (para não causar uma debandada na qual alguém possa ser pisoteado). E assim…

…vamos começar do mais importante: Putin anunciou que a Rússia está suspendendo sua participação no tratado START-3. Isso é “Tratado entre os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas sobre a Redução e Limitação de Armas Ofensivas Estratégicas, nº 3.” Este tratado remonta à era soviética, mas em 3 de fevereiro de 2021 os EUA e a Rússia concordaram em estendê-lo até 5 de fevereiro de 2026. Putin estipulou os termos sob os quais a Rússia consideraria retornar ao tratado: deve levar em consideração ofensiva estratégica capacidades de todos os países da OTAN, não apenas dos EUA. A Grã-Bretanha e a França também têm armas nucleares, embora nenhuma delas seja muito nova, e Washington tem a tendência de implantar suas armas nucleares para qualquer lugar que quiser, incluindo outros países da OTAN, como Alemanha e Turquia, e isso é um problema. Putin ridicularizou os apelos da OTAN para que a Rússia permitisse que seus especialistas inspecionassem instalações militares russas; depois que drones recentemente realizaram um ataque aos aeroportos russos que hospedam sua aviação estratégica, danificando alguns aviões (usando os ucranianos como proxies irracionais), tal pedido está além do ridículo. Talvez a Rússia devesse ser autorizada, como cortesia, a explodir um bando de bombardeiros estratégicos dos EUA, apenas para igualar o placar antes de iniciar as negociações? Não? Oh, bem… Putin também apontou que as armas estratégicas dos EUA estão muito além do prazo de validade (ele foi um pouco mais educado e circunspecto, mas essa era a essência, e aqueles que estão por dentro também sabem que ele estava sendo factual). Falando figurativamente, quando se trata de armas nucleares, o arsenal de Washington está em péssimo estado;as latas estão inchadas e as que estouraram cheiram muito mal e vazam substâncias nojentas.

Mais especificamente, existem alguns detalhes técnicos que podem ser compreendidos sem a necessidade de se tornar um nerd em armas nucleares. Os EUA têm zero (isso mesmo, zero!) fábricas que podem construir armas nucleares. Há alguma atividade artesanal acontecendo em alguns laboratórios (Los Alamos, Lawrence Livermore, Sandia e talvez Savannah River). Mas o que eles estão fazendo é muito triste: tentando manipular plutônio em porta-luvas. E sabemos que o plutônio (o que os EUA usam para fabricar bombas) estraga com o tempo (acumula isótopos que fazem uma bomba explodir durante a montagem, ou não explodir e apenas fazer uma grande bagunça) e não há como saber para separar isótopos de plutônio.

A completa falta de fábricas de armas nucleares significa que os EUA não têm como produzir plutônio novo. Também sabemos que os EUA nunca desenvolveram a capacidade de enriquecer urânio para o grau de armas (a única outra opção para fazer coisas nucleares que explodem), de modo que seu velho plutônio é tudo o que tem para brincar. Para satisfazer as necessidades de enriquecimento de urânio de seu grande número de antigas usinas nucleares (parece que não sabem mais como construir novas), os EUA contam com a Rosatom, monopolista nuclear estatal da Rússia (Sanções? Que sanções?) e em menor grau, com os franceses, que também dependem da Rosatom.

Tanto para os EUA; quanto ao resto da OTAN, os britânicos dependem dos EUA para seus mísseis balísticos Trident II e os franceses não testam uma arma nuclear desde 1996. Mas os EUA não apenas planejam manter suas bombas, mas também têm planos de desenvolver novas. Dadas as suas muitas limitações e a natureza de boutique de seu esforço de armas nucleares nos laboratórios nacionais, essas seriam mini-nucleares. Os russos sabem tudo sobre esses planos e alguns deles riem, lembrando-se de uma piada sobre um certo pó antimoscas americano patenteado. Para usá-lo, você pega uma mosca, conta piadas para fazê-la rir para que ela abra a boca e borrifa o pó na boca.

Seguindo em frente, se você tem algumas bombas nucleares, como os americanos têm, ou pensam que têm, embora a maioria delas tenha décadas e provavelmente tenha alguns ratos mutantes aninhados dentro delas (o plutônio está lá para mantê-los aquecidos), então você precisa ter alguns sistemas de entrega de armas. Ou seja, os EUA têm cerca de 400 mísseis Minuteman III e, após uma série de testes malsucedidos, realmente testaram um com sucesso, embora nunca saibamos com que nível de sucesso. O referido míssil foi selecionado “ao acaso” (claro, claro), transportado para uma instalação, “preparado” para o teste (todas as entranhas substituídas, com certeza) e disparado em uma direção aleatória (ou pelo menos havia uma pista no céu mostrada nas imagens das notícias). Se realmente atingiu alguma coisa, não sabemos; não havia imagens de homens fardados, armados com fitas métricas, medindo a distância entre as crateras da bomba (supostamente, três delas) lá no alvo especificado. De qualquer forma, são mísseis balísticos, o que significa que, uma vez terminada a fase de impulso, eles seguem uma trajetória balística que pode ser calculada com base em seu caminho inicial. Isso torna os mísseis balísticos fáceis de interceptar. Há também alguns mísseis Trident II lançados de submarinos, compartilhados com os britânicos (eles são cautelosos quanto ao número deles que ainda podem ser implantados), e esses também são mísseis balísticos. Por último, existem os bombardeiros estratégicos e os mísseis de cruzeiro. A maioria dos mísseis de cruzeiro são Tomohawks, que voam a uma velocidade de 550 mph positivamente (um Boeing 777 cheio de turistas gordos pode fazer melhor) e com base em seu uso na Síria, eles não são confiáveis ​​(um monte deles caiu no mar) e fáceis de interceptar mesmo usando sistemas de defesa aérea relativamente antigos da era soviética, para não falar dos novos sistemas russos. A maioria dos bombardeiros estratégicos são antigos B-52s que também não passam de 500 mph e um punhado de B-1B Lancers que são supersônicos, mas estão prestes a ser aposentados.

Agora vamos comparar isso com as defesas estratégicas da Rússia. Hoje Putin afirmou categoricamente que as forças estratégicas da Rússia são agora 93% novas. Outras filiais estão alcançando rapidamente. Não vou aborrecê-lo com todos os detalhes técnicos, mas a conclusão básica é que os EUA não têm nada que os russos não possam interceptar, enquanto a Rússia tem todo tipo de coisas que os americanos não têm capacidade de interceptar. O que isso significa é que, em um confronto nuclear iniciado pelos EUA, os russos resistirão à maior parte do ataque. Algumas armas nucleares podem realmente pousar em regiões periféricas, seja porque saem do curso ou porque o alvo estava muito longe para se preocupar, e ainda menos dessas armas nucleares disparariam como planejado, o resto fazendo pequenos buracos no chão ou uma bagunça quente nuclear. E então, em resposta, a Rússia manteria os EUA à sua mercê. O cenário oposto, de a Rússia lançar um primeiro ataque, seria contrário à doutrina nuclear russa.

Mas então houve a leitura de Putin da Lei do Riot: o Ocidente se cobriu de vergonha de que nunca conseguirá se livrar. Seu uso dos Acordos de Minsk para enganar o mundo sobre suas intenções pacíficas enquanto rearmava os militares ucranianos para o ataque foi o cúmulo da hipocrisia. Ele mimou e encorajou nazistas e terroristas, recusando-se a reconhecer atos explícitos e exibicionistas de genocídio – e não apenas na antiga Ucrânia – assim como havia feito com a Alemanha nazista na década de 1930. As guerras desnecessárias que lançou em todo o mundo até agora neste século resultaram em 38 milhões de refugiados (e, devo acrescentar, um número ainda maior de pessoas despojadas e deslocadas internamente).

Além do mais, os líderes ocidentais se orgulham de sua perfídia e falsidade, pensando que isso os torna tão espertos! Eles nunca superaram seu legado racista e colonialista, ainda dividindo o mundo em nações supostamente “civilizadas” e “democráticas” e o resto. Foram eles que iniciaram a guerra quente na ex-Ucrânia, armando os ucranianos e incitando-os a atacar o Donbass, e a Rússia interveio e está usando a força especificamente para parar a guerra. Putin expôs por que esta é uma guerra justa contra o Ocidente, que a Rússia vai vencer.

Para esse fim, Putin disse algo que os vizinhos estonianos da Rússia podem considerar importante, embora a atual safra de líderes verdadeiramente idiotas da Estônia, chefiada por Kaja Kallas, uma imbecil de classe mundial, provavelmente não aprecie isso. Recentemente, a OTAN considerou adequado instalar sistemas de foguetes de lançamento múltiplo HIMARS dentro da Estônia. Esses foguetes têm um alcance máximo de 300 km, enquanto São Petersburgo, a segunda maior cidade da Rússia, fica a 200 km da fronteira com a Estônia. Agora, o que Putin disse é o seguinte: “Quanto maior o alcance de suas armas, mais longe moveremos suas fronteiras.” Estonianos, por favor, façam uma escolha: livrar-se dos lançadores HIMARS ou GTFO [“Get the fuck out”, ou se lascarem em bandas – nota do tradutor]. Existe uma terceira escolha, é claro – morrer in situ – mas, visto que você foi avisado, essa seria uma escolha espetacularmente estúpida.

Falando em estupidez, enquanto esses assuntos europeus eram discutidos, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, teve dificuldade em manter os olhos abertos. Isso é compreensível a partir de duas perspectivas. Primeiro, Lavrov havia retornado recentemente de duas viagens rápidas consecutivas pela África, para ajudar a organizar a próxima cúpula Rússia-África a ser realizada em Sochi em julho. Com base nos resultados de sua visita, a África está solidamente no campo russo. Os africanos estão fartos do colonialismo europeu, do pós-colonialismo e do neocolonialismo e lembram-se que foi a URSS que os ajudou a conquistar a sua independência nacional. Lavrov foi seguido, alguns passos atrás, por representantes da União Europeia, que tentavam conter os estragos. Em segundo lugar, os europeus não são mais um assunto interessante para o diplomata Lavrov, simplesmente porque o Ocidente não deixou espaço para a diplomacia. O secretário de Defesa, Sergei Shoigu, por outro lado, ouviu atentamente. A conclusão a tirar disso é óbvia: a diplomacia com o Ocidente acabou; a partir de agora, é tudo sobre GUERRA. Eles mesmos o fizeram e agora podem servir-se. Daí esta popular camiseta: “Quem não quer falar com Lavrov falará com Shoigu.” E abaixo estão as citações diretas de cada um. Lavrov: “Malditos idiotas!” Shoigu: “Vamos colocá-lo onde quisermos.” Infelizmente, esse momento finalmente chegou! Daí esta popular camiseta: “Quem não quer falar com Lavrov falará com Shoigu.” E abaixo estão as citações diretas de cada um. Lavrov: “Malditos idiotas!” Shoigu: “Vamos colocá-lo onde quisermos.” Infelizmente, esse momento finalmente chegou!

Falando em estupidez um pouco mais, não há realmente ninguém no Ocidente com quem Lavrov ou Shoigu possam conversar. O que aconteceu com o Ocidente coletivo é um caso bizarro do princípio coletivo de Peter: “As pessoas em uma hierarquia tendem a subir até seu nível de respectiva incompetência”. Exceto que todos os líderes ocidentais que você desejar observar excederam em muito seu nível de respectiva incompetência. Veja o excelente Cadáver em Chefe, o Imperador Dementius Optimus Maximus. Ele não está apto para liderar um torneio de shuffleboard em uma comunidade de aposentados – muito senil. E embora você possa pensar que ele está cercado por pessoas super afiadas e de alto nível, elas são ainda piores do que ele, por terem concordado em servir sob o comando de um fantoche demente. Isso fica particularmente claro com a vice-presidente Kamala Harris: seu nível de competência era como acompanhante exótico; até que ponto ela ultrapassou essa estação na vida! O resto da Casa Branca, desde o Blinken perpetuamente estremecido até o secretário de imprensa idiota, está muito no nível dela. Olhando mais longe, temos o Sr. Rickshaw, o novo vice-presidente britânico, não eleito como o resto. Ele parece ser um cigano; ele pode fazer malabarismos, dançar e cantar ao mesmo tempo? Esse pode ser seu nível de competência; isso e insinuar-se com seus mestres brancos. Certifique-se de recontar os talheres em 10 Downing Street assim que ele partir! E a chefe da União Europeia, Ursula von der Leyen? Seu nível de competência era dar à luz a muitos filhos. Ela superou isso, primeiro tornando-se ginecologista (falem sobre como ela conseguiu isso!) [Ursula von der Leyen plagiou sua tese de doutoramento, sério, podem conferir aqui – nota do tradutor], e depois, aos trancos e barrancos, em seu trabalho atual. Ou pegue Josep Borrell, o Alto Representante para alguma coisa – certamente não diplomacia, pois ele é o bastardo mais rude que já sugou oxigênio. Seu nível de competência seria o de um recepcionista de bordel. E então há uma proliferação de senhoras / bimbos chiques: a já mencionada idiota Kaja Kallas, da Estônia prestes a ficar deserta, é perfeitamente copiada no Golfo da Finlândia pela igualmente talentosa Sanna Marin de festas sexuais patetas. Ela é muito estúpida para entender que, sem o comércio com a Rússia, a Finlândia não tem economia alguma – nunca teve, nunca terá. Quando os idiotas dizem para ela se juntar à OTAN (quebrando o tratado de paz da Finlândia com a Rússia e automaticamente retornando a um estado de guerra com ela), ela diz: “Posso tomar outro copo desse vinho, por favor?” Para fechar a lista, temos Olaf Scholz; seu nível de competência está em organizar orgias muito grandes e excêntricas. Agora, quem neste lote está lá para Shoigu, nem mencionemos Lavrov, para conversar? Eles apenas jogavam tortas de creme nele, depois escorregavam, caíam e expiravam em uma poça de seu próprio vômito. E então acho que eles terão que esperar que Shoigu “coloque onde quiser”.

Outras partes do discurso de Putin tratavam de assuntos internos da Rússia. A economia russa encolheu 2,1% ano a ano por causa das sanções ocidentais – mas isso foi tudo no primeiro trimestre; depois disso, ela se recuperou rapidamente. A inflação saltou para mais de 11% – novamente, tudo no primeiro trimestre, e depois caiu para 0% e não se mexeu desde então. O rublo está estável e realmente não se moveu desde antes do início da Operação Especial. A Rússia não precisa tomar empréstimos no exterior e não precisa imprimir dinheiro: tudo o que o governo precisa em termos de finanças está disponível por meio da economia de mercado doméstico. As exportações de energia desempenham um papel cada vez menor nas finanças russas e foram reorientadas para longe do Ocidente. O excesso de produção de gás natural está sendo redirecionado para atender às necessidades dos clientes rurais que atualmente aquecem com lenha ou com carvão. A renda individual mínima será aumentada em 18% até o início do próximo ano. Reformas nos transportes públicos estão definidas para acelerar. A substituição de importações de produtos e serviços de TI será dedutível de 150%, enquanto os empresários de TI já são tributados em 3% em vez de 20% e estão isentos do serviço militar. As empresas russas estão indo muito bem porque a saída apressada das empresas ocidentais do mercado russo abriu muitos novos nichos de mercado para eles se expandirem. E assim por diante. Basicamente, o plano ocidental para destruir a economia russa e ferir o povo russo a fim de inspirá-lo a derrubar seu governo foi além do ridículo.

Se há um elemento no discurso de Putin que me pareceu um pouco insincero, foi a afirmação de Putin de que a Rússia fez todo o possível para resolver o conflito na ex-Ucrânia por meio da diplomacia, enquanto o Ocidente usou a diplomacia estritamente como uma cortina de fumaça para rearmar os ucranianos. A Rússia também usou a diplomacia como cortina de fumaça para preparar o terreno para o milagre que se desenrolou ao longo do ano passado: apesar das “sanções infernais” ocidentais e da necessidade de reformular rapidamente o sistema financeiro e as relações comerciais, aumentar a produção de armas, renovar o sistema de recrutamento militar e realizar uma enorme quantidade de diplomacia intrincada para garantir que o mundo inteiro, menos o Ocidente, permaneça em boas relações com o país, a Rússia teve sucesso e está vencendo.

Sobre como a Rússia avançará em direção à vitória, aqui está uma citação exata: “passo a passo, com cuidado e consistência”. Durmam bem, inimigos da Rússia!

Fonte aqui


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O que poderia acontecer se os EUA rejeitassem o ultimato russo?

(The Saker, in Resistir, 21/12/2021)

Há muitas discussões em curso sobre o que a Rússia poderia fazer se o Ocidente ignorasse o seu ultimato. Tudo o que me proponho fazer aqui é partilhar convosco algumas reflexões. Não se trata de uma análise exaustiva, apenas algumas ideias minhas sobre o que tenho ouvido.

Primeiro, Putin é simultaneamente muito previsível e, ao mesmo tempo, muito imprevisível. A coisa previsível sobre Putin é que ele só usa a força quando já não há outra opção. A coisa muito imprevisível sobre Putin é como e onde ele está disposto a usar a força. Ele não interveio no Donbass, o que todos esperavam, e não permitiu sequer que as LDNR tomassem Mariupol, sem se importar com o resto da Ucrânia. Mas quando transferiu uma força especial para a Síria, ninguém previu a sua chegada. Idem à mudança para proteger a Crimeia de uma invasão ucraniana. Ao avaliar os próximos passos possíveis de Putin, temos de ter em mente este paradoxo de ele ser previsível e imprevisível.

Em segundo lugar, não há maneira de a Rússia começar simplesmente uma guerra, nem contra a Ucrânia, nem contra a UE ou a NATO e nem contra os EUA. Só um tolo ignorante desencadearia deliberadamente uma situação que pudesse resultar num holocausto nuclear planetário. Mas a Rússia tem muitas outras opções.

Terceiro, enquanto nos anos 60 a URSS precisava de Cuba (ou da Venezuela) para posicionar os seus mísseis a fim de forçar os EUA a retirar os seus mísseis da Turquia, hoje em dia a Rússia não tem tal necessidade. As armas russas, tanto nucleares como convencionais, podem chegar aos EUA a partir de praticamente qualquer lugar, incluindo da Rússia, é claro.

Em quarto lugar, todos os porta-aviões da US Navy e outros navios têm agora alvos hipersónicos pintados sobre si, e eles sabem-no. Isto afectará dramaticamente o que a USN pode ser ordenada a fazer ou para onde se deve enviar. Alguns observadores acusaram a Rússia de ter a Ucrânia como refém. Isto é um disparate. Mas sim, os russos estão, para todos os efeitos práticos, a manter toda a USN como refém, desde pequenos barcos-patrulha a grupos de combate de porta-aviões inteiros. A única, mas importante, excepção a esta dominação são os submarinos de ataque nuclear, onde a Rússia tem paridade qualitativa (ou mesmo superioridade), mas onde os EUA têm uma forte vantagem quantitativa sobre a Rússia. Contudo, os submarinos da USN não têm mísseis modernos e não podem vencer uma guerra sozinhos. Têm também as mãos ocupadas com a China.

Em quinto lugar, sabemos pela dimensão da força terrestre russa actualmente destacada a várias centenas de quilómetros da fronteira russo-ucraniana que se trata de uma força defensiva cuja tarefa seria deter um ataque terrestre ucraniano contra as LDNR (forças Ukie, mas de menor dimensão, estão destacadas a algumas dezenas de quilómetros dessa mesma fronteira). Portanto, não espere para breve tanques russos no centro de Kiev.

Além disso, porque deveria a Rússia interferir de alguma forma se tanto a Ucrânia como a UE estão a cometer proactivamente suicídio cultural, económico, político, social e até espiritual?

Sexto, não nos devemos concentrar apenas no teatro europeu de operações militares. Recordemos que a China e a Rússia são agora oficialmente “mais do que aliados” e que a Rússia pode vender à China exactamente o tipo de material militar que realmente horrorizaria os EUA. Do mesmo modo, a Rússia pode facilmente atingir as forças dos EUA em qualquer parte do Pacífico, dissimuladamente e abertamente, a propósito.

Sétimo, depois há o Médio Oriente. Imagine-se o que a Rússia poderia fornecer, rapidamente, a, digamos, o Irão (enquanto fornece garantias verbais, mas significativas a Israel de que a Rússia não permitiria ao Irão utilizar esses sistemas contra Israel, a menos, claro, que Israel atacasse primeiro (Nota: não há muito amor entre a Rússia e Israel, mas pelo menos ambos os lados são suficientemente inteligentes para se compreenderem mutuamente, o que ajuda muito quando necessário).

Em oitavo lugar, a Rússia tem uma enorme vantagem sobre EUA+NATO na guerra electrónica (desde o nível táctico ao estratégico) e pode facilmente utilizá-la com um efeito devastador enquanto a NATO não tem nada para retaliar da mesma espécie. A propósito, isto também se aplica ao Médio Oriente onde, aparentemente, a Rússia tem os meios para interromper/ludibriar os sinais GPS em toda a região.

Nono, não devemos assumir que a Rússia só pode retaliar proactivamente, isso seria um erro. Por exemplo, a Rússia pode fazer à Alemanha o que o Kremlin fez à Ucrânia: deixar de atender as suas chamadas e permitir que o Nord Stream 2 seja totalmente detido. Porquê? Porque embora isto afecte apenas marginalmente a Rússia (os preços do gás já estão altos e a China absorve muito dele), ao mesmo tempo que é uma sentença de morte para a economia alemã, especialmente para as exportações. Assim, permitir que o NS2 fique “indefinidamente” (na realidade temporariamente) suspenso seria a melhor e, possivelmente, a única forma de trazer os alemães actualmente delirantes de volta à realidade.

Décimo, a Rússia poderia deixar de vender energia aos EUA. Sim, os EUA estão a importar muita energia da Rússia e se os russos decidirem parar com isto, o já claramente “pré-apocalíptico” estado da economia dos EUA sofrerá ainda mais e não se vê como os EUA possam recorrer à Venezuela ou ao Irão em busca de energia 🙂 Quanto a “Biden”, ele já teve de libertar uma parte das reservas dos EUA.

Décimo primeiro, a Rússia poderia fechar o seu espaço aéreo a todos os países da NATO, estou a falar aqui do tráfego aéreo civil. A Rússia tem o espaço aéreo mais caro do planeta, e se ela o fechar aos transportadores ocidentais, o caos resultante no ar e no solo será total. Quanto aos custos de voar à volta da Rússia, eles seriam absolutamente enormes.

Décimo terceiro, há então o movimento óbvio: reconhecer as LDNR como estados soberanos. Há um forte apoio a tal movimento, tanto nas LDNR como na Rússia. O Kremlin poderia fazer isso sem mover um único soldado ou disparar um único tiro, e depois observar o que os Ukronazis em Kiev fariam em relação a isso. O meu palpite é que os Ukronazis não fariam muito sobre isso, mas se o fizerem, os russos simplesmente declararão uma zona de exclusão aérea sobre as LDNR e avisarão que qualquer ataque às LDNR resultará na destruição da força atacante. Se os Ukies persistirem, as forças atacantes serão vaporizadas enquanto o resto dos militares Ukie perderão a sua coesão e desfazer-se-ão sob o efeito combinado de ataques russos e capacidades A2/AD. Putin falou recentemente do “ainda não reconhecido” e falou de “genocídio”. Agora que sabemos que um Kalibr lançado de submarino tem um alcance “superior a 1000 km”, vejamos como um submarino russo pode alcançar todos os Ukies a partir do centro do Mar Negro (Odessa estaria a menos de 500 km desse submarino) e lembremo-nos de que os Ukies não têm qualquer capacidade de guerra anti-submariana (ASW) e apenas defesas aéreas da era soviética (e estas de qualquer forma estão em péssimas condições). Para informação: a frota do Mar Negro tem 6-7 SSK (subs diesel-eléctricos), ao passo que as defesas costeiras russas “cobrem” todo o Mar Negro.

Décimo quarto, raramente, se é que alguma vez, informou-se no Ocidente, que a Ucrânia tem conduzido ataques terroristas tanto nas LDNR e mesmo na própria Rússia. Até agora, a Rússia nunca retaliou da mesma forma. Mas lembram-se do que aconteceu depois de os Takfiris terem explodido vários edifícios na Rússia? Se não, o que aconteceu foi a 2ª guerra chechena e a obliteração total dos Takfiris na Chechénia (o que todos os “analistas” ocidentais consideravam à partida como uma tarefa impossível). Até ao momento, o FSB conseguiu abortar todos os ataques ucranianos, mas se um for bem sucedido, então está acabado o regime de Kiev.

Décimo quinto, a Ucrânia está actualmente a construir bases navais para a NATO em vários locais, incluindo uma no Mar de Azov (que é o plano que os dois génios Johnson e Zelenskii conceberam). Supõe-se que este plano crie uma marinha ucraniana dentro de dois anos. Consegue imaginar como seria fácil para a Rússia deixar Johnson e Ze “brincar de Lego” durante algum tempo e depois simplesmente desactivar estas futuras bases?

Tenho a certeza de que há muitas mais opções que não considerei acima.

O poder do ultimato russo está precisamente no facto de os russos terem prometido fazer “alguma coisa” militar e/ou militar-técnica, mas não terem escrito o que essa “alguma coisa” poderia ser. Aposto que, na realidade, não estamos a lidar com uma única “alguma coisa”, mas sim com uma sucessão de passos graduais que irão exercer cada vez mais pressão sobre os EUA e a NATO/UE (não que esta última seja a menos importante). Tenha em mente que, embora os EUA possam fazer contra-propostas, não estão em posição de fazer quaisquer ameaças críveis, daí a assimetria fundamental entre os dois lados:  A Rússia pode fazer ameaças críveis, ao passo que os EUA só podem produzir mais palavras, algo a que os russos basicamente deixaram de prestar atenção.

A partir de agora, o jogo é simples: A Rússia irá gradualmente aumentar o “mostrador da dor” e ver como o Império vai enfrentar isto. A China estará a fazer exactamente o mesmo pois as acções russas e chinesas são obviamente coordenadas de modo cuidadoso.

A minha sensação é que o tio Shmuel deixará os europeus guinchar de dor e apenas lhes dará “firme apoio moral aos nossos amigos, parceiros e aliados”, preocupando-se apenas com uma coisa: ele próprio. Tão logo a dor comece a afligir seriamente os EUA, estes últimos serão forçados a negociar tanto com a Rússia como com a China.

Nessa altura, a Rússia e a China teriam vencido.

Quando a Rússia aumentará o mostrador da dor?

Pode-se imaginar que os primeiros passos serão dados em breve, a menos que o lado americano mostre alguns sinais tangíveis de estar disposto não só a negociar de forma significativa mas também a fazê-lo rapidamente. Putin acaba de repetir hoje que nenhuma táctica de adiamento dos EUA será aceitável para a Rússia.

Até agora, parece que os EUA irão fazer uma contra-oferta a Moscovo. Se for a treta habitual sobre a exclusividade dos EUA, o mostrador da dor será mostrado muito em breve, nas próximas semanas. Se a administração “Biden” for realmente séria e mostrar sinais tangíveis, verificáveis, de que Washington negociará, então a Rússia poderá esperar um pouco mais, estamos a falar de um mês, talvez apenas um pouco mais. Mas ninguém na Rússia está a falar de anos, ou mesmo de muitos meses. O relógio está agora a contar e os EUA têm de agir com grande rapidez: antes de Março, com certeza.

Terminarei com uma nota semi-optimista: “Biden” já me surpreendeu pelo menos duas vezes e talvez “ele” o faça novamente? Muitos analistas russos parecem pensar que Sullivan é a voz da sanidade na administração dos EUA. Também sabemos que o general Milley não estava disposto a arriscar um ataque preventivo chinês (o que seria um peido num furacão em comparação com o que os russos poderiam desencadear contra os EUA se decidissem antecipar um ataque dos EUA contra a Rússia). Haverá mais vozes sãs no estado americano (profundo ou não)? Talvez os Estados Unidos façam o que a Rússia fez e tentem parecer recuar apenas para ganhar tempo? Mesmo isso seria preferível a uma guerra em grande escala.

Além disso, os russos estão bem conscientes de uma possível estratégia de retardamento, pelo que fizeram o seu ultimato vinculado a um prazo específico: “mostrem-nos algo tangível, e não apenas platitudes, ou então tomaremos medidas unilaterais”. Qualquer Presidente americano sensato não tentaria chamar a isto “o bluff de Putin”. Esperemos e rezemos para que “Biden” tenha sanidade suficiente para entender isso. Os EUA acabam de anunciar que uma resposta oficial será apresentada a Moscovo na sexta-feira.

Continuo muito, muito duvidoso, mas suponho que a esperança seja a última a morrer.


PS: hoje Putin falou com Sholtz e Macron, ontem com Johnson.
PPS: Putin declarou hoje que está “farto” do Ocidente: “E quando o direito internacional e a Carta das Nações Unidas interferem com eles, declaram tudo isto obsoleto e desnecessário”. E quando algo corresponde aos seus interesses, referem-se imediatamente às normas do direito internacional, à Carta das Nações Unidas e às regras humanitárias internacionais. Estou farto de tais manipulações”.

Autor – Analista militar.


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O comunismo tem algo que ver com Putin?

(Pedro Tadeu, in Diário de Notícias, 03/04/2018)

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Vladimir Putin é nacionalista, defensor da autoridade centralizadora do Estado e zeloso da preservação da sua autoridade pessoal. Vladimir Putin não é comunista: para os padrões prevalecentes nas sociedades do Ocidente rico ele seria classificável, se por acaso governasse um desses países, na categoria “líder de direita conservadora”, nunca um revolucionário ao serviço dos interesses do proletariado e dos trabalhadores.

Esta leitura é uma evidência clara, largamente demonstrada desde que, em 1999, Putin começou a mandar em Moscovo.

Face à realidade política que circunscrevia a luta pelo poder na Rússia à guerra do capitalismo contra o comunismo, Putin serviu a ideia de unir o país em torno do orgulho patriótico, místico e historicista, dos czares à URSS, com a religião a solidificar o conceito.

A esta ideia de unidade, Putin juntou a prática de formar uma elite de magnatas capitalistas, politicamente controlados, numa economia liberal, de impostos relativamente baixos, ajudada pela exploração de vastos recursos naturais, muitos deles nas mãos do Estado. Eternizou-se, assim, no Kremlin.

Aos saudosos na União Europeia e nos Estados Unidos da América dos tempos da Guerra Fria parece ser conveniente insinuar que a Rússia de Vladimir Putin disfarça ou adormece o ideário comunista.

Para uns, esta sugestão é a forma mais fácil de ganhar boa parte da opinião pública mais distraída para as insanidades sucessivas que colocam o mundo em perigo de guerra total e ajudam a esconder a crueldade, a estupidez com que os governos ocidentais conduziram as suas tentativas de dominio do Médio Oriente, com a Síria, agora, a centrar as atenções.

O suposto perigo “russo comunista” serviu também para transformar países do Leste Europeu, saídos da ex-União Soviética, numa espécie de cordão antirrusso governado por antidemocratas.

Para outros, a sugestão de um hipotético comunismo subterrâneo no governo da Rússia serve para acalentar a esperança de ali, talvez em aliança com a China, vir a renascer uma oposição séria e consequente aos desmandos do capitalismo monopolista.

Para estes, a Rússia de Putin teria no seu ADN um gene capaz de fazer nascer um corpo político de combate ao imperialismo económico dos senhores da globalização; frontalmente denunciador da manipulação e do controlo, por potências estrangeiras, de muitos governos de países menos desenvolvidos; um motor da defesa da autodeterminação dos povos, livres dos constrangimentos do capitalismo mundial high tech…

Esta visão é todos os dias desmentida pela realidade: a luta da Rússia de Putin, simplesmente, é a de disputar com a União Europeia (sobretudo com Alemanha, França e Inglaterra), com os Estados Unidos e com a China, em alianças e confrontos conjunturais, o maior domínio político e económico que lhe for possível alcançar.

Duas décadas de conspiração, apoio, financiamento e armamento concedido a terroristas, a fanáticos, a protofascistas, a ditadores, a oligarcas, a fundamentalistas, a traficantes, sempre em nome da defesa dos direitos humanos, numa competição entre os maiores países da NATO e a Rússia (a China tem-se afastado deste campeonato bélico), resultaram em milhões de mortos e de refugiados.

Entretanto, o governo britânico acusou, sem mostrar provas conclusivas, o governo russo de estar por detrás de um atentado em Inglaterra que vitimou um ex-espião russo e a filha. Convenceu mais de 30 países, a começar nos Estados Unidos da América, a expulsar 150 diplomatas russos. Putin retaliou e mandou embora da Rússia uns 60 diplomatas de 23 países.

Putin talvez esteja por detrás do envenenamento de Sergei Skripal, não sei, mas, sendo um político experiente, bastante melhor do que a maior parte dos líderes ocidentais com quem se confrontou em 20 anos, suscita-me a pergunta: se autorizou esse assassínio, o que é que pensava ganhar?… Ninguém, ainda, explicou algo que convencesse.

O governo português não foi na onda, limitando-se a chamar o seu embaixador em Moscovo para consultas. Está a ser acusado de trair os seus aliados e de não acreditar na palavra e nas informações dos britânicos.

A Inglaterra e os EUA inventaram, em 2003, as armas químicas de Saddam e puseram Durão Barroso, então primeiro-ministro português, a ser padrinho de uma cimeira que decidiu a invasão ao Iraque: em 10 anos essa mentira causaria meio milhão de mortos.

Com este antecedente acho que o governo português tem o direito e o dever de exigir dos seus aliados, antes de se meter em novos conflitos, muito mais do que aquilo que foi, até agora, mostrado no caso Skripal… É o mínimo.