Vítimas de bullying e prisioneiros dos “valores”

(Hugo Dionísio, in Facebook, 11/04/2023)

Se houvesse um instrumento de medição que funcionasse como “pânicômetro”, as galinhas atlantistas rebentariam com a escala. Nem todo o “bullying” saído da fábrica de terror que é a Casa Branca, conseguiria colocar uma ordem na forma como se comporta o galinheiro.

A última “macronada” foi recebida com mais um ataque de pânico em Washington. Ainda atónitos, com o sucesso da cimeira Xi-Putin, e de ressaca incurável pela forma como o mundo além-NATO recebeu as conclusões, Blinken, Nulland e demais cabeças pensadoras, aproveitando a viagem de Macron à China, pensaram: “bem, se eles não nos recebem, talvez possamos instruir Macron a fazer, à China, o que lhe fazemos nós, a ele”, ou seja, bullying. A instrução foi clara, “vais tratar de afastar a China da Rússia”.

Não obstante, face ao histórico narcisismo “macroniano”, os EUA, sempre desconfiados até da sua própria sombra, aparelharam a fiel, leal, missionária e religiosamente crente Úrsula, e introduziram-lhe um algoritmo apenas contendo uma ordem: “vais acompanhar Macron e vais guardá-lo e protegê-lo de si próprio”. Úrsula, preparando-se para uma viagem que claramente não foi planeada, nem pestanejou. “Contas são contas… Ordens são ordens… Leis são leis… Regras são regras e valores são valores…” “O que Deus faz, o ser mortal não questiona”, terá ela pensado, com o seu habitual tom autoconvencido.

Se, depois do que se passou em Moscovo, alguém pensou que uma missionária e um vassalo narcisista seriam suficientes, por muito bullying que fizessem, para levar Xi e o PCC a mudarem de posição quanto ao seu parceiro estratégico… Tiveram a resposta na mesa em que foram recebidos. Uma mesa redonda, de tamanho gigantesco, com as distâncias entre os intervenientes meticulosamente calculadas. Não sendo original (Macron já tinha passado pelo mesmo em Moscovo), sabendo-se do critério, minucia e rigor que caracterizam a actuação chinesa no que toca às relações diplomáticas… Nada disto foi por acaso.

A diplomacia chinesa encarregou-se de mostrar que a distância geográfica entre as duas civilizações é transposta para a sala de reuniões, como que dizendo: “com essa senhora na sala, nem uma reunião presencial vos ajuda a vencer tal distanciamento”. Só esta gente para pensar que um presidente, que leva um país, em 11 anos (de 2010 a 2021), a passar de um PIB de 7,55 para 15,8 triliões (em dólares), ou de 12,38 para 27,1 triliões (em Paridade de Poder de Compra), o tenha feito seguindo a cabeça de outros. E ainda não estão convencidos, porque de seguida já vão para lá Annalena Baerbock e uma delegação da U E. Ou vão para o bullying, ou vão para o beija-mão…

Mas não se pense que a distância simetricamente calculada, entre os três, era equânime. Não! A distância, na mesa, só existe com Úrsula presente. Ou seja, no quadro da U E, a distância é enorme, está a dois oceanos de distância. No quadro nacional, da França, de Portugal, da Alemanha ou da Itália, a distância pode ser curta e nem implicar a navegação por mar. Daí que Macron tenha sido recebido, com proximidade e a sós, com o presidente Xi. Se acham que com Úrsula, a distância era por acaso… então não conhecem a sofisticação da milenar diplomacia chinesa.

Se, na reunião a três –, que a carcereira Úrsula se encarregou de vigiar – só se falou em Ucrânia; já na reunião a dois, a coisa foi diferente. É claro, para a fotografia, a Ucrânia foi um dos pratos principais… mas, na penumbra, no resguardo da intimidade, Macron foi “persuadido” pelos mais gigantescos e magnânimos acordos comerciais, de investigação e cooperação que a sua mente poderia conceber. Todo o “bullying” que a fábrica de dólares consegue produzir, é insuficiente para bloquear os sonhos de quem prometeu “deixar marca na história francesa”. Essa marca depende dos “negócios da China”, local para onde se deslocou o centro da actividade económica mundial. Como disse um Miguel Esteves Cardoso aquando do mundial: “vão para lá com os seus discursos de moral, mas felizmente são corruptos” (qualquer coisa assim).

Os números não mentem: em 1992, ou seja, logo depois do fim da URSS, o PIB europeu era ligeiramente superior ao americano (6,75 para 6,52 triliões); em 1995 já era igual e em 1999, os EUA já nos tinham passado. Dez anos de controlo da Rússia e da Europa de leste e, apesar dos constantes alargamentos, os EUA puderam passar-nos à frente em produção de valor. Talvez um António da Costa da vida não veja a significância profunda destas coisas… Mas, duvido que um francês chauvinista como Macron não o veja. E bem que vê, também, o papel do dólar e do euro no processo.

Três datas chave para a engorda dos EUA à custa dos povos europeus: Tratado de Maastricht em 1993, que introduz um conjunto de critérios orçamentais que visam limitar a capacidade de investimento público, passando os países a dependerem especialmente do investimento privado; a introdução do Euro em 2000, moeda que, como disse Michael Hudson, foi criada para conter as economias europeias dentro e padrões cambiais “aceitáveis” para Washington; Tratado de Lisboa 2009, que reforça os critérios orçamentais e estabelece instrumentos, mais apertados, de controlo central a partir de Bruxelas, totalmente manietada por Washington.

Uma vez mais… os números não mentem: controlando a dívida pública e impedindo, assim, o investimento público (não é “investimento virtuoso”), a distância entre a economia americana e a europeia vai aumentando à velocidade de, mais um trilião de dólares de diferença, a favor dos EUA, a cada 5 anos (em 2000, a U E tinha 11,26, os EUA 13,75, em 2021, a U E 14,68, os EUA 20,53). Os EUA a engordarem também à custa do empobrecimento dos povos europeus.

Se uma personagem como Cravinho, ministro português dos Negócios Estrangeiros (Ministério que deveria ser rebaptizado de Departamento Provincial da NATO) é incapaz de se questionar sobre esta dualidade, em tal nos levando a crer quando diz que “prenderia Putin” se este cá viesse, mesmo sabendo estar a submeter o país a um acto de guerra e conhecendo a forma, conteúdo e natureza da decisão acusatória do TPI; se um dos comentadores mais palavrosos da nossa praça – Marques Lopes de sua graça – agradece a Biden o facto de este ser “um grande presidente”, mesmo arrastando a Europa – e o seu país e povo – para a indigência… Macron, tendo colocado o seu país em chamas, não se pode dar ao luxo de fingir que não vê o extintor económico que o pode salvar!

Os franceses podem ser muita coisa, mas não são servis. E eis que, o mesmo Macron que, com Úrsula ao lado, tanto falou da Ucrânia, foi o mesmo que, chegado da China, disse, a vários órgãos de comunicação, coisas interessantes como: “a Europa tem de resistir à pressão (o bullying, digo eu) para se tornar uma mera seguidora dos EUA”; “o grande risco é a Europa ser arrastada para crises que não lhe digam respeito” … Mas, a melhor de todas, aquela que fez Biden puxar o cordão da campainha de pânico, foi quando ele disse que “a Europa tem de se tornar independente dos EUA e sair da dependência do dólar”!

Ora, não se fez esperar a reacção do outro lado: Marc Rubio, senador republicano pró-guerra, neoconservador, neoliberal e sei lá que mais, não tardou em iniciar o processo habitual: bullying e mais bullying. Marc Rubio questiona: “Macron fala por si, pela França ou pela Europa”?  “É que se fala pela Europa, temos de mudar isso”! Lá vem a “revolução colorida” do costume! Daquelas que a “democracia” americana tão bem prepara… fora e em casa, também!

O que teve mais piada nas declarações de Rubio foi quando ele disse que: “os EUA estão a ajudar a Europa na guerra da Ucrânia”, e que, “vão deixar de ajudar se a Europa não os ajudar em Taiwan”. Esta é das ameaças mais vazias que alguém já fez! Estarem a ameaçar deixar uma guerra – na Ucrânia – que eles próprios fomentaram, prepararam e alimentaram, no seu próprio interesse e contra o interesse dos povos europeus… Seria uma salvação, os EUA, deixarem do nos “ajudar” na Ucrânia. Aliás, tendo em conta as sondagens em Taiwan, parece que a maioria também não quer ajudas que matam centenas de milhares na guerra.

Como se tem provado, em grande parte do mundo, de onde os EUA saem, para se concentrar na “ajuda” ucraniana, os povos desavindos fazem a paz. São vitórias diplomáticas chinesas e russas, umas atrás das outras, ao ponto de, há uns dias, Mr. Burns, director da CIA, ter ido a Riade dar conta do desagrado americano com o reatar de relações com o Irão. Se este acto, por si só, não demonstra o “modus operandi” da Casa Branca, do seu “dividir para reinar…” Já não sei o que é preciso.

Mas se, esta reacção de Rubio é, em si, demonstrativa do estado de espírito da elite que governa os EUA e da forma como usam o “bullying” para resolver os problemas, já a forma como Macron age é também reveladora da posição em que esta gente, que se diz governante, se deixa colocar. Uma total falta de frontalidade; uma total falta de clareza.

Se no caso de Úrsula essa questão nunca se colocaria, afinal, não apenas privilegiou a Pfizer face a empresas europeias no Covid, como negociou acordos de matérias-primas e energia com os EUA nas costas dos povos europeus, e além disso, pagando mais por menos e com menos qualidade, já no caso de Macron ou Scholz, as coisas são muito diferentes.

Gente como Scholz e Macron anda a toque de “bullying”, prisioneiros políticos dos “valores” europeus que, afinal, são americanos – ninguém pode negar o decalque que a comunicação europeia faz a partir das posições públicas americanas. Scholz, mesmo com a carcereira Baerbock no seu governo – financiada por Soros e compincha de Úrsula – é apanhado a negociar acordos no ramo automóvel com a Rússia, a renovar o seguro do Nord Stream e a ir à China negociar a deslocalização de grandes empresas alemãs. Macron, mesmo acompanhado da sua carcereira Úrsula, continua a comprar energia à Rússia, a cooperar com a China, tendo saído da reunião com Xi, com mais um pacote de atraentes negócios entre os dois países.

Lá no fundo, o que estas realidades demonstram é que, os 30 anos seguintes à queda da URSS foram uma prisão para grande parte do mundo. Presos à única alternativa – tão obrigatória como única – que existia, traduzida em danosos acordos comerciais com os EUA e seus apêndices, ou em ruinosos acordos de “restruturação e estabilização macroeconómica” do FMI e Banco Mundial, hoje, o êxodo de fuga do dólar demonstra que ninguém estava contente com o sistema. E, na Europa, não se pense que o movimento de resistência não existe. Apenas ainda não teve condições para se afirmar. Marco Rubio já viu o filme todo, a seguir à França, podem vir outros…

Mesmo um país como Portugal, amarrado que está a esta âncora que cada vez mais nos agarra ao fundo – bem que os “nossos” (deles) governos nos falaram em mar – e que mortalmente nos afoga, poderia – e deveria – começar a fazer contas à vida e assumir, de forma frontal, aquela que dizem ser a sua vocação: fazer de ponte para o mundo. Mas não, os governos da alternância do “vira o disco e toca o mesmo” apenas nos transformam num “digital” beco sem saída.

O facto é que, as nações e povos europeus – leia-se a “Europa” -, deparam-se com uma escolha vital: ou definham com Washington que é quem tem o controlo militar e político; ou recriam-se e crescem com o mundo multipolar. Ou ficam com os “valores” vazios do ocidente colectivo, ou caminham no sentido da concretização dos valores reais, abrindo-se ao mundo, de forma soberana, autónoma e livre de amarras e preconceitos reaccionários, que visam resistir à mudança, ao desenvolvimento, ao progresso e à paz entre os povos.

Esta dicotomia, absolutamente contraditória com o discurso de cartilha feito à medida para ser aplicado em cada revolução colorida, em cada invasão ou em cada guerra por procuração, está, ela própria, bem presente na escolha a fazer. Há uns anos diziam-nos que “a economia é que manda”; quem não se lembra de ouvir Passos Coelho e a sua saída da “zona de conforto”; “o mundo está sempre em mudança”; “temos de aceitar a mudança”, repetiam de forma maquinal. Hoje, rejeitam a mudança, resistem e reagem de forma conservadora, repetindo que, agora, “temos de lutar pelos nossos valores”, “os valores europeus”. É impressionante que nos davam sempre com a Venezuela quando queriam falar de “luta por valores” e nos “EUA” quando se tratava de economia e mudança. Dependendo de para cujos bolsos vão os “valores”, assim mudam eles o discurso.

Enquanto os BRICS se tornam BRICS+ e agora BRIICSS, depois da adesão do Irão e da Arábia Saudita, discutem uma nova moeda, na Alemanha fechou uma siderurgia que já tinha quase 700 anos. Porquê? Porque o gás que têm de comprar aos EUA não presta e custa três vezes mais. E o que vai Úrsula fazer à China? Fazer “bulying” pró Washington e regime de Kiev. E o que faz o nosso governo? Aplaude efusivamente. E há cada vez mais gente a dormir na rua.

Na Malásia celebram-se acordos e propõe-se a criação de um Fundo Monetário Asiático, porque segundo o governo do país – vítima de meses de tentativas de ”revolução colorida” -, “não existem razões para depender do dólar e do FMI”, na Europa e em Portugal, vivem-se crises de habitação, inflação e endividamento… O que faz Úrsula? “Bullying” em nome de Biden contra a China. E Cravinho? Faz coro! E, enquanto isso, mais gente a passar fome, roubada pela ganância da grande distribuição!

Na África do Sul boicota-se a venda de armas à Polónia, porque as manda para Kiev, o México celebra acordos para a BRI que trarão enormes benefícios ao país – a tal da “armadilha da dívida” que todos preferem ao FMI -, por cá somos obrigados a ver a Úrsula a negociar acordos de energia e matérias-primas com os EUA, nas costas dos europeus, a preços muito mais caros do que antes. E o que faz a burocrata de Bruxelas na China? Pois… E o que fazem os daqui? E lá vai mais gente para a sopa dos pobres!

É uma tragédia. Enquanto o mundo se tenta levantar, o nosso insiste em cair. Assistimos, como entusiasmados fanboys num qualquer concerto ou jogo de futebol, a uma caminhada, a qual, a cada passo, mais nos leva ao precipício. Vejam lá que, depois de tanto disparate, agora, nos EUA, está-se a montar uma equipa – tipo mafioso, claro – de “especialistas”, paridos no Departamento do Tesouro dos EUA, “em sanções e financiamento do terrorismo”, que virão para a Europa, “convencer” empresas a deixar o mercado russo e os bancos a não financiarem as que resistirem ao assédio. Ou seja, não contentes, vão dedicar-se a fazer “bullying” às nossas próprias empresas e bancos. “Especialistas americanos”, do departamento do tesouro americano a fiscalizarem “sanções europeias” em países europeus… Quanto mais te baixas…. Já dizia o meu avô!

Muita “liberdade” e “democracia” nos discursos, mas a única coisa a que é dada escolha é a de que ricos mandarão em nós. Serão os ricos “A” ou os ricos “B”? São os ricos, ricos, ou são os pobres corrompidos por ricos? Serão os ricos que já eram ricos, ou serão os pobres que querem ser e estar entre os ricos? No final, é disto que trata a governação por bem comportados e competentíssimos quadros formados nas melhores universidades e colégios que os ricos podem pagar, suportar ou manietar! Passar pela Ivy League (Stanford, Harvard…) leva-te a Bruxelas, ao FMI e à NATO…. É selo de marca. A London Business qualquer coisa, dá-te o Ministério das Finanças ou o Banco de Portugal!

Quanto custará ainda a entender que vivemos numa espécie de “a liberdade de uns é a prisão de outros”. Esta “democracia” que finta a vontade popular, imune as escolhas eleitorais ou mesmo revolucionárias, porque tem natureza transnacional, chama-se “Ordem baseada em regras”. Trata-se de uma “ordem” que nos aprisiona, com “regras” que nos negam a soberania!

E vem gente dizer que “a U E vive de concessões de espaços de soberania” em prol de “um bem comum”! É “comum”, mas não é de todos. Pagamos todos esse “bem comum”, mas ele só é “bem comum” para alguns. Para outros é bullying e prisão!

O próprio povo americano é prisioneiro deste extremismo reaccionário e belicista. É o primeiro a sofrer o bullying e a ser seu prisioneiro!

Haja força para a libertação!


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A macronmania está a naufragar a União Europeia

(Francisco Louçã, in Expresso, 24/06/2022)

Macron acreditou que o voto útil que o elegeu contra Le Pen o lançaria nas legislativas, mas foi derrotado pela sua impopularidade e perdeu um terço dos seus lugares na Assembleia.


Há governantes que são assim, mais populares entre as chancelarias estrangeiras do que entre quem vive no seu país. É o caso de Macron. Se avalia­do pelos ditirâmbicos elogios que granjeia entre autoridades, a começar pelo seu aliado mais militante, o primeiro-ministro português, o reeleito Presidente francês seria o mais esclarecido visionário e condutor da União. Esse entusiasmo leva a tratar como se fossem coisa séria as sucessivas propostas do Eliseu, rapidamente dissipadas por um benévolo esquecimento (alguém se lembra da nova “Comunidade Política Europeia”? Olhe que foi no mês passado) e a aceitar, desta feita, que a política europeia seja governada ao ritmo de tuítes publicitários.

Ora, o que serve ao deslumbramento internacional não conta portas adentro e, pela primeira vez desde que as eleições legislativas se seguem às presidenciais francesas, o eleito não tem maioria parlamentar. A diferença de votos entre o partido de Macron e a aliança de Mélenchon, entre 22 milhões de votantes, ficou pelos 22 mil votos, bastaria ao segundo ter obtido uma parte deles para ter mais deputados. Macron acreditou que o voto útil que o elegeu contra Le Pen o lançaria nas legislativas, mas foi derrotado pela sua impopularidade e perdeu um terço dos seus lugares na Assembleia. Deste modo, ao criar um vazio político, esta nova direita abriu espaço para a consolidação da extrema-direita, que ultrapassa o partido gaullista, normalizando-se como alternativa, num longo caminho sempre acima dos 10% desde 1986. Assim, a Macron parece só restar alguma tentativa bonapartista, provocando uma crise com novas eleições, ou acomodar-se à possibilidade de que, uma vez terminado o seu mandato, essa nova direita seja tragada por Le Pen.

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Ora, para a UE, a derrota de Macron tem duas implicações sinuosas. A primeira é que a instabilidade em França perturba o sistema institucional europeu, agora mais pulverizado. A resposta à dificuldade é refugiar-se em estratagemas, como na gestão da adesão da Ucrânia, que será elevada por estes dias ao estatuto de “candidata”. A condição da futura integração seria cumprir leis europeias, já agora como as que a Polónia e Hungria recusam, ou colocar-se na fila, como a Turquia (que negoceia o estatuto há 35 anos), Sérvia, Macedónia do Norte, Montenegro, Albânia, Bósnia e mesmo o Kosovo, que alguns países da UE nem reconhecem, e ainda rever os tratados e as regras de financiamento. Tudo inviável e um barril de pólvora para França, que não quer o dinheiro da PAC dividido com a Ucrânia. A segunda revelação é o efeito de desgaste que as políticas de redução da segurança social e de desqualificação do emprego têm provocado entre a população francesa. E esse é o mais pesado efeito destas eleições, pois demonstra que a normalidade europeia gera a crise. Isso é a macronmania e deu no que deu.

O SNS não se salva com ilusões

Quem defende o SNS já não pode escapar ao dilema entre ignorar o colapso e recusar a continuidade da ilusão sobre a estratégia presente, pois a evidência demonstra que o Governo não enfrentará o problema. É preciso virar a agulha. Apresentar o atual SNS como o modelo da virtude democrática custa a derrota, pois a realidade do desespero dos profissionais, da desorganização das unidades e dos tormentos dos utentes em centros de saúde ou em urgências impõe-se sem mais argumentos e cada ano será pior, com a aposentação de mais especialistas. Graças a estes fracassos programados, os privatizadores têm a estrada aberta e, apesar de alguns floreados alucinados (descobriram a “sovietização” do SNS, seguindo o guião ideológico da associação de médicos dos EUA, que no século passado conseguiu, na vaga da Guerra Fria, impedir que fosse instalado um serviço público de saúde no seu país), insistem na proposta mais simples: deem dinheiro aos nossos amigos que eles tratam de mais utentes do SNS.

Nesse caminho, a estratégia de desmantelamento do sector público tem-se imposto. Os investimentos são adiados, os concursos ficam parcialmente vazios, os tarefeiros recebem três a cinco vezes mais do que os seus ex-colegas numa urgência, os serviços navegam na imprevisibilidade. Na incerteza, os seguros cresceram e são um florescente ativo financeiro, que promete lucros confortáveis, graças ao controlo dos preços. A consequência é uma saúde mais cara para as pessoas: dois grupos privados já realizam a maioria dos partos na Grande Lisboa, naturalmente promovendo a cesariana como método preferencial, o que salga as contas finais; durante a fase aguda da pandemia, os hospitais privados ofereceram a sua disponibilidade por 13 mil euros e, se fosse caso grave, o doente era recambiado para o público; e as PPP, que transformaram em arte a regra do afastamento dos doentes mais caros, são elogiadas como se essa manigância fosse boa gestão. Apesar destes resultados, está montado o cenário da atrevida proposta dos grupos privados e dos seus liberais: aguentem o custo dos hospitais públicos desde que nos paguem mais, queremos os vossos impostos.

Assim sendo, a questão para quem tem terçado pelo SNS como a prova da democracia é que deixa de ser viável apresentar este sacrificado serviço como um modelo, ou fingir que não está a ser degradado de forma eficiente. A minha conclusão é que, se a liderança do SNS estiver na mão de quem tão metodicamente trabalha para o seu afundamento, então estaremos a desistir dele.


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Tanta verdade junta mereceu publicação – take X

(Carlos Marques, 20/06/2022)


(Este texto resulta da resposta a:

1) um comentário a um artigo que publicámos de António Jorge, ver aqui.

2) um comentário a um artigo que publicámos de Carlos Matos Gomes, ver aqui.

Perante tanta verdade junta, resolvi dar-lhe o destaque que, penso, merece.

Estátua de Sal, 20/06/2022)


Ver comentário de André Campos Campos ao 1º Artigo aqui.

Resposta 1

«Teremos um França ingovernável e com uma guerra civil à porta com os aumentos dos combustíveis e escassez de quase tudo»

Não, o que temos finalmente é um pequeno vislumbre de representatividade democrática no regime NÃO-representativo da 5ª República.

Os macronistas deviam ter vergonha na cara de obter maiorias só com 25% dos votos. E mesmo hoje, deviam ter vergonha de ficar com mais de 200 deputados, ao mesmo tempo que a NUPES fica com mais ou menos 150, numas eleições em que o nº de votos é semelhante para ambos.

Isto dos círculos uninominais, do bipartidarismo forçado, da NÃO-proporcionalidade, só agrada a quem não gosta da Democracia. Tipo António Costa (adepto de Macron, e do Pinochetismo em geral) que tem também uma “maioria” à francesa: só com 41% dos votos, só de 21% dos eleitores.

A candidata a Primeira-ministra, em vez de pedir desculpa pela governação que tantos franceses prejudica e levou a este cartão amarelo, em vez de prometer uma reforma eleitoral que torne a França numa Democracia representativa de facto, preferiu fazer estas declarações: “estes resultados são um perigo”

Esta gente, estas “elites”, esta oligarquia de Davos e Bruxelas, não tem mesmo noção nenhuma, pois não?

Quanto ao “ingovernável”, vamos ver. Sendo o Pinochetismo/Neoliberalismo uma coisa tão de Direita na economia, e sendo a economia o que interessa (“it´s the economy, stupid”), obviamente o que veremos é o Macron a formar um governo minoritário (a mandar a Esquerda às urtigas como A. Costa desde 2019), em que todos os ataques aos trabalhadores, pensionistas, consumidores, e Estado Social, serão feito com uma “abstenção violenta” do Partido Republicano (que já agora antecipo que será a última vez que terá um grupo parlamentar com poderes de voto plenos naquele sistema, ou seja, a última vez que terá mais de 60 deputados).

Se a NUPES (Mélenchon, os Comunistas, os “Socialistas”, e os Verdes) jogarem a sua cartada como devem: intransigência que obrigue os Pinochetistas a depender da abstenção dos Republicanos, e a NUPES se mostrar do lado do povo, vai ser uma legislatura interessante de acompanhar, e de saber se chega ao fim.

Até lá, a NUPES tem também de colocar uma reforma eleitoral no topo das prioridades, que isto de ter +50% de abstenção (devido ao descontentamento contra o sistema político e económico), e de chegar ao poder com +40% dos deputados quando só se teve 25% dos votos na primeira volta, é tudo menos democrático e legítimo. Nem no pior momento do regime de Maduro na Venezuela se chegou a uma vergonha destas.

Basicamente, teremos em França agora o cenário de Portugal após as legislativas de 2019, mas com uma grande diferença: um povo bem menos manso e menos ignorante do que o povo que deu a “maioria” aos cangalheiros do SNS… É que em Portugal o PS pode votar 99% das vezes ao lado da Direita (Pinochetistas da IL e Fascistas do Chega incluídos), que o seu eleitorado cego e ignorante continua nas eleições a abanar bandeiras vermelhas com um punho e a gritar “Socialista”. Mas em França, não. Se os Macronistas passarem, como é expectável, a legislatura a votar ao lado dos Republicanos, cairá a ilusão do “Centrismo” ou do “ex-Ministro do PS”.

Ora, é mesmo esse o contexto (aliado a esta derrota história de um Presidente neste sistema eleitoral NÃO representativo) que, espero eu, seja o que a Esquerda precisava para ser a favorita nas próximas eleições, que dificilmente serão daqui a 5 anos, mas sim mais cedo.

Outro pormenor interessante: mesmo sem ser um sistema proporcional, por pouco que não havia uma maioria de deputados críticos da NATO (NUPES + Le Pen). Em termos de votos, anda na casa dos 55% versus 45% (pró-NATO versus críticos da NATO). E isto numa conjuntura em que Macron falou da morte cerebral do bicho, e propôs o tal exército europeu alternativo, ou seja, não é sequer líquido que todos no lado dos 55% sejam assim tão adeptos da atual ocupação (e desestabilização) da Europa por parte de exércitos americanos. E esta, hein?


Ver comentário de André Campos Campos ao 2º Artigo aqui.

Resposta 2

«A europa é como um grande navio! Mas quando a tripulação não fala a mesma língua, torna-se difícil pilotar.»

No mar não se “pilota”, navega-se. 😉

Mas a imagem por si descrita está certa. Aliás, o cinema já previu isto há mais de 20 anos atrás. Lembra-se do quarteto a tocar no Titanic a afundar? Foi essa a imagem que me veio à cabeça ao ver esta foto e o seu comentário. Obviamente o Zelensky é o que toca o violino…
(ou então, visto que há um italiano envolvido, isto é o Costa Concórdia, e Draghi faz o papel do Capitão Schettino)

E pior, vai ser um Inverno com muitos Jack a morrer e frio, e muitas Rose a ter a sua vida dependente de um pedaço de madeira, neste caso para se aquecerem na lareira…

Por falar nisso, esta falta de gás no Nordstream 1 é anedótica: a Europa até tinha “planeado” (não se pode usar este verbo perante a idiotice, daí as aspas) encher as reservas de gás agora no Verão, para mais tarde fazer frente ao Inverno mais descansada. Mas eis que os aparelhos da Siemens precisaram de reparação, a Gazprom enviou-os para o Canada pois a Siemens não as repara na Alemanha (a globalização é engraçada…) e agora a empresa de reparação da Siemens no Canadá, devido às sanções, não pode enviar a coisa para a Alemanha, porque é para uma empresa russa (Gazprom).

Mas há ainda mais uma anedota sobre esta mesma história: os governos da Alemanha e Canadá estão neste momento em discussões para saber como se ajudarem mutuamente a ultrapassar as sanções que os próprios impuseram. Caso contrário a empresa canadiana não será paga pelo trabalho, e a Alemanha fica sem o gás, e congelará no Inverno… São uns autênticos génios, estes líderes ocidentais.

Entretanto, como anunciado no SPIEF, a Rússia bate records de vendas de gás (e petróleo, e carvão, etc.) aos países amigáveis. E mesmo fazendo descontos (em relação aos preços inflacionados nos mercados), está a lucrar como nunca, e em rublos cheios de resiliência. E os responsáveis já disseram: a Rússia não voltará atrás. O que deixar de vir para a Europa, acabou, nunca mais voltará.

E mais uma anedota: um dia os 3 estarolas foram a Kiev convidar aquela ditadura a entrar na UE. Uns dias depois o Boris foi também a Kiev, mas desta vez para convidar o regime de Kiev a sair da UE. Vamos ver para que lado se vira o Zelensky.

Ah, e lembrei-me agora, parece que o Dmitry Medvedev também sabe contar anedotas. Disse qualquer coisa assim: a Ucrânia só recebeu promessas, e se chegar a entrar na UE, não será antes do meio deste século (como anteciparam Costa e Macron: décadas). O que torna a coisa mais complicada é que por essa altura a UE já não existirá, logo a Ucrânia entra onde?

E por fim, a anedota que nos governa a todos no Império das Mentiras, um homem que mal se aguenta em pé, que começa uma frase e a meio se esquece do que ia dizer, foi dar uma volta de bicicleta e deu um trambolhão. É a analogia perfeita sobre a situação do Ocidente. “Fast & Furious”, chamou-lhe a RT. Ah Ah Ah Ah. Ver vídeo aqui.

PS: Se eu colocasse o link https://t.me/intelslava/31490 a partir da internet da Moldávia, devido à mais recente decisão PIDEsca da Presidente Maia Sandu (mais uma Saakashvili ou Zelensky à espera de acontecer a propósito da Transnístria…), estaria a cometer um crime. Diz que é a “liberdade de expressão” da “democracia liberal”…


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