(Francisco Louçã, in Expresso, 24/06/2022)

Macron acreditou que o voto útil que o elegeu contra Le Pen o lançaria nas legislativas, mas foi derrotado pela sua impopularidade e perdeu um terço dos seus lugares na Assembleia.
Há governantes que são assim, mais populares entre as chancelarias estrangeiras do que entre quem vive no seu país. É o caso de Macron. Se avaliado pelos ditirâmbicos elogios que granjeia entre autoridades, a começar pelo seu aliado mais militante, o primeiro-ministro português, o reeleito Presidente francês seria o mais esclarecido visionário e condutor da União. Esse entusiasmo leva a tratar como se fossem coisa séria as sucessivas propostas do Eliseu, rapidamente dissipadas por um benévolo esquecimento (alguém se lembra da nova “Comunidade Política Europeia”? Olhe que foi no mês passado) e a aceitar, desta feita, que a política europeia seja governada ao ritmo de tuítes publicitários.
Ora, o que serve ao deslumbramento internacional não conta portas adentro e, pela primeira vez desde que as eleições legislativas se seguem às presidenciais francesas, o eleito não tem maioria parlamentar. A diferença de votos entre o partido de Macron e a aliança de Mélenchon, entre 22 milhões de votantes, ficou pelos 22 mil votos, bastaria ao segundo ter obtido uma parte deles para ter mais deputados. Macron acreditou que o voto útil que o elegeu contra Le Pen o lançaria nas legislativas, mas foi derrotado pela sua impopularidade e perdeu um terço dos seus lugares na Assembleia. Deste modo, ao criar um vazio político, esta nova direita abriu espaço para a consolidação da extrema-direita, que ultrapassa o partido gaullista, normalizando-se como alternativa, num longo caminho sempre acima dos 10% desde 1986. Assim, a Macron parece só restar alguma tentativa bonapartista, provocando uma crise com novas eleições, ou acomodar-se à possibilidade de que, uma vez terminado o seu mandato, essa nova direita seja tragada por Le Pen.

Ora, para a UE, a derrota de Macron tem duas implicações sinuosas. A primeira é que a instabilidade em França perturba o sistema institucional europeu, agora mais pulverizado. A resposta à dificuldade é refugiar-se em estratagemas, como na gestão da adesão da Ucrânia, que será elevada por estes dias ao estatuto de “candidata”. A condição da futura integração seria cumprir leis europeias, já agora como as que a Polónia e Hungria recusam, ou colocar-se na fila, como a Turquia (que negoceia o estatuto há 35 anos), Sérvia, Macedónia do Norte, Montenegro, Albânia, Bósnia e mesmo o Kosovo, que alguns países da UE nem reconhecem, e ainda rever os tratados e as regras de financiamento. Tudo inviável e um barril de pólvora para França, que não quer o dinheiro da PAC dividido com a Ucrânia. A segunda revelação é o efeito de desgaste que as políticas de redução da segurança social e de desqualificação do emprego têm provocado entre a população francesa. E esse é o mais pesado efeito destas eleições, pois demonstra que a normalidade europeia gera a crise. Isso é a macronmania e deu no que deu.
O SNS não se salva com ilusões
Quem defende o SNS já não pode escapar ao dilema entre ignorar o colapso e recusar a continuidade da ilusão sobre a estratégia presente, pois a evidência demonstra que o Governo não enfrentará o problema. É preciso virar a agulha. Apresentar o atual SNS como o modelo da virtude democrática custa a derrota, pois a realidade do desespero dos profissionais, da desorganização das unidades e dos tormentos dos utentes em centros de saúde ou em urgências impõe-se sem mais argumentos e cada ano será pior, com a aposentação de mais especialistas. Graças a estes fracassos programados, os privatizadores têm a estrada aberta e, apesar de alguns floreados alucinados (descobriram a “sovietização” do SNS, seguindo o guião ideológico da associação de médicos dos EUA, que no século passado conseguiu, na vaga da Guerra Fria, impedir que fosse instalado um serviço público de saúde no seu país), insistem na proposta mais simples: deem dinheiro aos nossos amigos que eles tratam de mais utentes do SNS.
Nesse caminho, a estratégia de desmantelamento do sector público tem-se imposto. Os investimentos são adiados, os concursos ficam parcialmente vazios, os tarefeiros recebem três a cinco vezes mais do que os seus ex-colegas numa urgência, os serviços navegam na imprevisibilidade. Na incerteza, os seguros cresceram e são um florescente ativo financeiro, que promete lucros confortáveis, graças ao controlo dos preços. A consequência é uma saúde mais cara para as pessoas: dois grupos privados já realizam a maioria dos partos na Grande Lisboa, naturalmente promovendo a cesariana como método preferencial, o que salga as contas finais; durante a fase aguda da pandemia, os hospitais privados ofereceram a sua disponibilidade por 13 mil euros e, se fosse caso grave, o doente era recambiado para o público; e as PPP, que transformaram em arte a regra do afastamento dos doentes mais caros, são elogiadas como se essa manigância fosse boa gestão. Apesar destes resultados, está montado o cenário da atrevida proposta dos grupos privados e dos seus liberais: aguentem o custo dos hospitais públicos desde que nos paguem mais, queremos os vossos impostos.
Assim sendo, a questão para quem tem terçado pelo SNS como a prova da democracia é que deixa de ser viável apresentar este sacrificado serviço como um modelo, ou fingir que não está a ser degradado de forma eficiente. A minha conclusão é que, se a liderança do SNS estiver na mão de quem tão metodicamente trabalha para o seu afundamento, então estaremos a desistir dele.