A paz justa na Ucrânia

(Major-General Carlos Branco, in Jornal Económico, 26/05/2023)

Goste-se ou não, não é à luz do Direito Internacional, da moral ou dos sentimentos de justiça ou injustiça que o resultado do conflito vai ser determinado.


A obtenção de uma paz justa para o conflito na Ucrânia surgiu recentemente no léxico de alguns spin doctors.

A palavra “paz” transporta uma noção de compreensão, harmonia. Ornamenta a dialética. O súbito “abandono” seletivo do discurso belicista precisa, no entanto, de ser dissecado. Estes seres não passaram de falcões a pombas do dia para a noite. Não vêm propor uma solução de soma positiva. Para eles, paz justa é a paz nos termos de Kiev, i.e., a vitória de Kiev em toda a linha, em particular, a adesão da Ucrânia à NATO, e a retirada completa e total das tropas russas de todo o território ucraniano.

Por ser subjetivo, o conceito de “paz justa” é de pouca utilidade. Não nos ajuda a compreender os acontecimentos. A sua apreciação depende do lado da barricada onde se está entrincheirado, é preconceituoso.

Uma paz justa para Kiev não será seguramente uma paz justa para Moscovo; do mesmo modo que uma paz justa para Israel não o será para Damasco, quando falamos da ocupação dos Montes Golã por Israel; ou uma paz justa para Ancara não o será para Atenas, quando se trata da invasão de Chipre pela Turquia. E por aí adiante.

Colar a ideia de “paz justa” ao respeito pelo Direito Internacional, esquecendo problemas existenciais e geopolíticos prevalecentes, ou a julgamentos de ordem moral, é um exercício de imaturidade política. O mesmo sucede quando se politiza a justiça penal internacional. Dificulta em vez de facilitar o caminho para a paz.

Para produzir efeitos benignos, a justiça de transição deve ser feita após a obtenção da paz, e não antes. Tem um momento próprio para funcionar e facilitar a reconciliação. Caso contrário, corre o risco de não passar de uma mera revanche. Não será, por isso, de estranhar que os falcões travestidos de pombas aplaudam as decisões do TPI, quando estas visam convenientemente os outros, o que parece ser a sua missão. A estas inutilidades, juntam-se as incursões teóricas no domínio da paz justa, feitas por alguns académicos.

A não existir uma vitória militar decisiva de uma das partes, a solução de paz a encontrar deverá contemplar os interesses dos litigantes, incluindo compromissos e cedências. Só uma visão alienígena da realidade é que pode acreditar ser a Ucrânia capaz de infligir uma derrota militar decisiva à Rússia e conseguir a plenitude dos seus objetivos estratégicos, em particular, recuperar a península da Crimeia e ser admitida na NATO.

A paz não depende, portanto, da ação unilateral de um contendor, mas de movimentos coordenados de todos os envolvidos.

É aqui que entra a ação da mediação internacional, ajudar as partes a focarem-se numa abordagem de soma positiva: incentivar a comunicação, promover a discussão dos interesses das partes, destacar os interesses comuns, reduzir as tensões, ajudar as partes a salvar a face, sugerir concessões, alterar as expectativas dos litigantes, assumir responsabilidade pelas cedências, consciencializar os oponentes sobre o custo do não acordo, recompensá-los pelas as suas concessões, pressioná-los para mostrarem flexibilidade.

Goste-se ou não, não é à luz do Direito Internacional, da moral ou dos sentimentos de justiça ou injustiça que o resultado do conflito vai ser determinado. A paz que se vier a obter resultará principalmente, ou inteiramente, das relações de poder que prevalecerem entre os estados envolvidos, com os EUA à cabeça. Como noutros locais do planeta, a paz a que se chegar será a possível, e não a fantasiada paz justa.


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Comercializar a Reconstrução da Ucrânia para alimentar a guerra

(Por Laura Roggeri, in A Viagem dos Argonautas, 04/03/2023)

Imediatamente após o início da operação militar da Rússia na Ucrânia, os principais actores da coligação de apoio à Ucrânia, bem como as instituições financeiras transatlânticas e grupos de reflexão, já estavam a discutir a reconstrução da Ucrânia…


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E se a Rússia ganhar? Pergunta a revista conservadora britânica The Critic

(Alfredo Jalife-Rahme, in Geopol.pt, 02/03/2023)

A Anglosfera “deve saber o que quer conseguir da Ucrânia (…) porque à medida que as coisas se desenrolarem, estarão a favor de Putin.


A revista britânica The Critic, próxima do Partido Conservador no poder – que está a tentar colocar o antigo primeiro-ministro destituído Boris Johnson no secretariado da NATO, suspeito de ter impedido as negociações de paz entre a Ucrânia e a Rússia – pergunta na sua capa: E se a Rússia ganhar? (bit.ly/3J0Dqnv), ao lado de um balão da China em ascensão a tentar esvaziar o Tio Sam americano com uma baioneta, fazendo outra pergunta obstinada: Será que Pequim tomou o lado errado?(bit.ly/3ZnzLFG).

No próprio artigo, The Critic afirma que, numa verificação da realidade: a Rússia pode ganhar.

O seu diagnóstico é simplesmente sombrio quando as coisas vão piorar para a população da Ucrânia, com muitos mais milhares de mortos e o país a levar décadas a recuperar, sugerindo que a Anglosfera “deve saber o que quer conseguir da Ucrânia (…) porque à medida que as coisas se desenrolarem, estarão a favor de Putin”.

Acontece que o modelo anglo-saxónico de guerra através de sanções, lançado por Londres e mais tarde imitado por Washington, já não funciona eficazmente face à ascensão da China e à medida que Moscovo se prepara para uma guerra dura.

Argumenta que os objectivos de mudança de regime no Kremlin e a balcanização da Rússia são rebuscados, dado o apoio da sua população à guerra quando as sanções fracassaram.

Actualmente as linhas defensivas da Ucrânia estão a desmoronar-se; os russos estão a avançar em grandes secções da linha da frente e a maioria dos factores (sic) indicam que é provável que a Rússia consiga algum tipo de resultado favorável na Ucrânia, mesmo com a chegada urgente do armamento moderno da NATO para apoiar Kiev.

A revista observa que o potencial para conversações de paz tem sido envenenado pela linguagem desajeitada de uma grande quantidade de funcionários norte-americanos, sobretudo da secretária de Estado adjunta Victoria Nuland (VN; bit.ly/3ZqCsGL), que esteve profundamente envolvida nos bastidores das maquinações políticas da crise da Ucrânia de 2014, e que acaba de se recrear ao constatar que ela estava “muito gratificada (sic) por saber que NordStream 2 é agora (…) um pedaço de metal no fundo do mar”. Outro “Fuck Europe” de VN!

Depois das confissões da ex-chanceler alemã Angela Merkel – sobre os enganosos acordos de Minsk (bit.ly/3xYcNJB) – e do ex-presidente ucraniano Petro Poroshenko à BBC — que deu à Ucrânia oito anos para construir uma coligação global anti-Putin — Moscovo já não está confiante em lidar com os EUA e a NATO.

The Critic destaca a angustiante afirmação existencial de Putin: o objectivo dos nossos adversários estratégicos é debilitar e fracturar a Rússia porque acreditam que o nosso país é demasiado grande e representa uma ameaça, quando a máquina militar da NATO causou estragos e destruição na Sérvia, Iraque, Líbia e Síria.

A revista comenta que o actual director da CIA e antigo embaixador dos EUA na Rússia, William Burns, enviou um telegrama em 2008 (sic) ao chefe das forças conjuntas dos EUA recordando-lhe que a adesão da Ucrânia à NATO é a mais brilhante de todas as linhas vermelhas (sic) para a elite russa.

The Critic defende que a intervenção da Rússia na Ucrânia foi um acto de desespero, não de força, e adopta a tese do geopolítico americano John Mearsheimer da Universidade de Chicago (bit.ly/3xXVecH) e (bit.ly/3kDPkKP).

É impressionante que The Critic fulmine ferozmente — tão analiticamente asinina (sic) — que os interesses vitais da Rússia não foram tidos em conta quando hoje goza com o “equilíbrio da determinação” (balance of resolve).

Faltou ao The Critic perceber que a singularidade militar no teatro de batalha ucraniano foi ultrapassada por duas reviravoltas supremas: a desdolarização/fim da hegemonia financeira anglo-saxónica e a visibilidade de uma nova ordem multipolar (bit.ly/3meoN7m).

Imagem de capa por Matthias Berg sob licença CC BY-NC-ND 2.0

Peça traduzida do espanhol para GeoPol desde La Jornada


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