Do bicho humanizado ao homem animalizado – algumas notas

(Amadeu Homem, 14/04/2021)

Amadeu Homem

Dizem que a humanidade acrescenta à pura animalidade qualquer coisa. Insiste-se muito na racionalidade e no livre-arbítrio. Claro que, com exceção de Kafka e de mais alguns autores malditos, ninguém fez ou faz um esforço sério para se meter na organização biológica de uma formiga, de um chimpanzé ou de um gato, senão com propósitos de simples curiosidade científica.

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Ficam de fora as zonas penumbrosas que respeitam ao problema de uma possível consciência animal. Como podemos facilmente pisar formigas, meter chimpanzés em jardins zoológicos ou domesticar gatos, ainda com maior vigor sentimos a legitimidade de sustentar que nós, os humanos, cume da criação divina ou da complexificação da matéria, possuímos diferenciações de superioridade que nos projetam para a galeria do excecional.

Vem isto a propósito de ter lido um texto sobre as estratégias de produção do riso na obra literária. Lá se falava que a atribuição de características humanas aos animais é um expediente divertido. Foi o que fez um Esopo ou um La Fontaine.

Mas não é menos verdadeiro que a transposição de reações animais para os seres humanos apenas arranca – quando arranca… – um sorriso tímido, comprometido, vagamente culpado. Kafka escreveu a “Metamorfose”, narrativa incómoda por trazer até nós o sofrimento de um bicho que herdou certas características humanas anteriores a uma mutação operada a partir do humano. Esse facto incomoda-nos, deprime-nos, parece aviltar-nos. Pergunto-me se a “vaidade do Eu” – e de um eu exclusivamente humano – não desempenha aqui o papel determinante.

Por outro lado, lendo as aventuras do Homem da Mancha, achamos piada a Sancho Pança, ao seu largo ventre de animal primário, ao seu rifoneiro castiço, a esse “viver à flor das vísceras”, ao realismo cru das suas avaliações. Gostamos dele complacentemente, é um facto. Já não nos incomoda; apenas nos diverte. Não nos embaraça porque morfologicamente, constitutivamente, é igual a nós, sem mutações de metamorfose.

Mas, embora lhe devotemos alguma ternura, fica esta complacência misturada com a defesa do nosso reduto de gente letrada e mais polida; gente que sabe que os moinhos atacados pelo Quixote, sendo apenas vulgares moinhos, possuem junto da mente do atacante a figuração mental de gigantes. E também saberemos que por detrás desses gigantes aflora a sublimação do Ideal, a flor sagrada dessa defunta Cavalaria andante. Sancho não sabia nada disto. E, por tal, gritava, aflito, para o seu amo: – Senhor, senhor, não são gigantes, são moinhos!

Agrada-nos imaginar que também nós, nas condições em que nos fosse possível transfigurar a realidade, desafiaríamos os leões e confiscaríamos o elmo de Mambrino. Na maior parte dos casos, a verdade é que não seríamos capazes de nada disso – e não apenas pelo facto do elmo de Mambrino ser uma ficção airosa. O Ideal é uma bela coisa quando temos de sacrificar pouco por ele…

Voltemos ao riso que se move na zona indecisa que vai da animalidade tornada humana à humanidade feita animal. E confessemos que nos é bem mais agradável privar com o Coelho apressado de Lewis Carroll (animalização com hábitos humanos) do que com o bicharoco imundo da Metamorfose de Kafka (humanização que se animalizou sem retorno à forma inicial).

Somos seres ambíguos, é o que é. Mas nessa ambiguidade, quão decisiva será a supuração do nosso narcisismo?


Construir uma catedral

(António Guerreiro, in Público, 19/04/2019)

Notre-Dame

Em 1985, na Kunsthalle de Basileia, enquanto este santuário da arte contemporânea expunha as obras do artista italiano Enzo Cucchi, teve lugar um encontro entre quatro figuras importantes da história da arte na segunda metade do século XX: Joseph BeuysAnselm Kiefer, Enzo Cucchi e Jannis Kounellis. A discussão, conduzida pelo director do Kunsthalle, Jean-Christophe Ammann, resultou num livro em edição alemã e italiana (Ein Gespräch/ Una discussione).

A certa altura da discussão, Beuys incita à acção artística contra um inimigo, o materialismo (tanto sob a forma do capitalismo ocidental como sob a forma do capitalismo de Estado e do centralismo comunista do Leste europeu), que “reduziu o tamanho do ser humano em relação às suas possibilidades”.

A sua ideia é que a arte pode “recriar o ser humano na sua totalidade”. E, logo a seguir, prosseguindo a sua ideia da arte como grandioso empreendimento (mesmo quando é feita por todos), capaz de contrariar a redução do mundo e resgatar a consciência humana a essa redução, faz uma intempestiva injunção: “Devemos construir uma catedral”.

A catedral de Colónia tinha sido evocada pouco antes por Kounellis, que tinha dito que ela “remete para uma centralidade, engloba uma cultura e indica o futuro”. Mas não é uma catedral como a de Colónia que Beuys quer construir. Essa, diz ele, “é uma má escultura, daria uma boa estação de comboios. A de Chartres é melhor”.

E mais à frente, depois de ouvir as palavras mais prudentes de Kounellis (“Para construir uma catedral, é necessário um método e um conhecimento do passado”), reafirma a sua disposição: “Nós não estamos aqui reunidos para melhorar as nossa relações. Estamos aqui para construir uma catedral”, isto é, para retirar a arte da periferia e da não existência para onde ela foi empurrada “pelo sistema económico dominante”.

Podemos comentar estas afirmações, lembrando que muitos poetas modernos e romancistas, assim como artistas, embora conscientes, tal como Joseph Beuys, de que a cultura actual não pode ser marcada pelas catedrais góticas, recorreram ao símbolo da catedral e investiram nele uma enorme significação. Generalizando com algum cuidado, digamos que a catedral simboliza as aspirações culturais colectivas da Europa pré-moderna, mas também consagra a esperança de recuperar através da arte uma cultura perdida.

Muito em especial, foi esta a mensagem de Victor Hugo quando, na sua megalomania (Baudelaire disse uma vez que Victor Hugo era aquele que tinha a presunção de se tomar por Victor Hugo), afirmou que a sua obra, Notre Dame de Paris, esse colosso, tinha um poder destrutivo: “O livro vai matar o edifício”. Isto é: a catedral gótica seria reduzida à insignificância pelo monumento literário.

Balzac, por sua vez, comparou o trabalho de sua vida, a Comédie humaine, à catedral de Bruges. E Julia Kristeva, escrevendo sobre Proust, disse que o autor da Recherche perseguiu incessantemente o mesmo objectivo, de acordo com um programa que pode ser resumido nestes termos: “Se eu estiver à altura de penetrar nas memórias do tempo perdido, irei erigir uma nova catedral “

Voltemos à discussão no Kunsthalle de Basileia, para verificar que há uma diferença entre o projecto artístico de construir uma catedral, tal como Beuys e Kounellis o reivindicam, e o projecto literário de Proust. Afirma Kounellis quase no final de sua discussão com Beuys, Kiefer e Cucchi: “A construção da catedral é a construção de uma linguagem visível”. Nestas palavras, é o mundo “visível” que surge sublinhado.

Quanto a Victor Hugo e Balzac, ambos sentiram que a missão de criar uma comunidade cultural, literária, tinha-se deslocado da função ritual do culto para a leitura do romance de grande circulação. E enquanto Proust acreditava que o poder da memória individual era a base para construir o seu monumento literário, Kounellis pensa — e di-lo explicitamente — que “a construção de uma catedral é a construção da linguagem visível”.



Estamos a viver tempos enfeitiçados – tempos em que os nossos dirigentes cometem sempre os mesmos erros dia após dia

(Por Chris Martenson, in a Viagem dos Argonautas, 05/03/2019)

Diz-se que a verdade espelha a ficção. Estou a pensar que isto é o caso cada vez mais comum hoje em dia. Tomemos o filme O dia Enfeitiçado de 1993. Bill Murray acorda todos os dias para viver  exatamente as mesmas circunstâncias diárias e interações interpessoais. Ele revive o mesmo dia, 2 de fevereiro, dia após dia, uma e outra vez.


Continuar a ler aqui: ESTAMOS A VIVER TEMPOS ENFEITIÇADOS – TEMPOS EM QUE OS NOSSOS DIRIGENTES COMETEM SEMPRE OS MESMOS ERROS DIA APÓS DIA, por CHRIS MARTENSON


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