Os anos

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 04/01/2020)

Miguel Sousa Tavares

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Já ultrapassei a idade com que a minha avó materna morreu, o que me parece inverosímil, pois lembro-me dela ainda de perfeita saúde mas recolhida a uma velhice voluntária e definitiva, que hoje seria incompreensível. Ela nascera com o século passado, em 1900, casara com 20 anos e enviuvara aos 47, já mãe de quatro filhos feitos e avó de seis netos. O meu avô, que se descruzou comigo por um par de meses, tinha morrido vítima das suas duas maiores paixões: a caça e a comida. Ele, que vivia para a caça e que se gabava de, quando em forma, ser capaz de comer a sua altura em linguiças e a largura em alheiras, morreu a caçar narcejas na ria de Aveiro, após um almoço que não deve ter sido ligeiro e provavelmente depois de ter entrado pela água adentro para levantar as aves, emboscadas nas margens. Teve uma morte de caçador: um tiro que apanhou em cheio uma narceja no seu voo em linha quebrada, e logo caíram, ela e ele, ambos fulminados de tiro e de emoção. E a minha avó vestiu-se de preto para sempre, deixou a sua casa de três andares onde vivia e mudou-se para casa do filho mais novo e para um simples quarto que desde então lhe sobejou e, se bem que passasse a viver a poucos metros do mar, nunca mais se chegou à praia ou entrou pelo mar adentro. Devia achar estranho saber que ainda continuo a entrar e a mergulhar no mar com o mesmo prazer de quando era criança e mais estranho ainda saber que, quando aos 12 anos me ofereceu a minha primeira raquete de ténis, que fora a sua aos 20 anos — uma Dunlop de madeira que tinha de se guardar numa prensa apertada com quatro parafusos para não empenar —, foi apenas o início de uma paixão ainda não terminada, agora com raquetes de materiais cada vez tão mais sofisticados que já nem sei dizer quais são. E acharia curioso saber que na idade em que o marido, o meu avô, parou de caçar, morto por uma narceja, comecei eu.

Lembrei-me da minha avó, do tempo dela, da vida dela, ao ler o último livro de Amin Maalouf, “O Naufrágio das Civilizações”, um ensaio sobre o que ele vê como a ruptura de um modo de vida, fosse a Oriente ou a Ocidente, moldado durante séculos pela certeza da continuidade daquilo que consti­tuía o cimento das comunidades e das nações: a família, a religião, os costumes, as culturas, as regras de comportamento ético. Maalouf, um cristão maronita cuja família, originária do Líbano, emigrara para o Egipto e teve de regressar ao Líbano quando a revolução nacionalista de Nasser expulsou primeiro os ingleses e depois todos os estrangeiros do Egipto, afirma ser capaz de recuar 14 gerações na sua família, constatando que todos nasceram, cresceram e morreram melhor ou pior mas perfeitamente cientes de quais eram as regras do jogo e ao abrigo daquilo a que ele chama agora “o naufrágio moral generalizado” em todo o mundo. O mundo árabe, o mundo asiático, os novos mundos, as democracias liberais ocidentais, o capitalismo que triunfou sobre o desastre comunista.

Confesso que, por precaução, tento olhar para este tipo de análises com muita cautela. É próprio das pessoas que entram na velhice a tentação de contemplar o mundo contemporâneo com um olhar impiedoso e pessimista, em contraste com a nostalgia e a generosidade com que julgam os seus tempos de juventude. A minha avó, que era uma mulher inteligente e dotada de uma ironia e sentido de humor arrasadores, autolimitava-se não apenas na sua ambição mas na forma de viver a vida, que mesmo para uma mulher do seu tempo se me torna impossível de entender. O seu mundo restringia-se ao Porto e a Lisboa e a ocasionais visitas aos arredores para visitar parentes ou fazer compras. Nas suas estadias em Lisboa, ficava em casa de uma amiga, sogra de um filho seu, também viúva e da mesma idade, com quem jogava canastra de manhã à noite, só interrompendo para um breve olhar ao jornal do dia. Às vezes, e a pedido dos netos, levava-nos ao cinema, mas invariavelmente, ao intervalo, dava uma gorjeta ao arrumador para que ele nos contasse o resto da história e arrastava-nos de volta para casa, por mais que protestássemos. Era católica firme sem ser beata, era acomodada sem ser do regime, era generosa e desprovida de luxos e tinha uma distante curiosidade pelo mundo que jamais a levava a viajar e que a deixou verdadeiramente aterrorizada quando, em 1961, a minha mãe decidiu que passava a ir de férias de Verão com os filhos para o Algarve, farta dos nevoeiros e dos mexericos das praias do Norte. Foram precisos anos até a minha mãe a convencer a ir lá visitar-nos, porque ela não acreditava que o comboio fosse até ao Algarve e que todo aquela exótica terra não fosse habitada apenas por mouros. Morreu rapidamente e viveu até uns meses antes de perfeita saúde. Morreu quando quis e porque quis, quatro meses depois de ver morrer-lhe um filho como morrera o marido. Compreendo que tivesse querido morrer, o que não compreendo é que tenha perdido os últimos 20 anos de vida sem ter querido viver a sério. E não porque não gostasse de viver, mas por uma espécie de fatwa que se abatia sobre as mulheres nas suas circunstâncias e no seu tempo.

Princípios éticos, religiosos, costumes, famílias, culturas: sim, são regras do jogo. Todas as comunidades precisam deles, e os indivíduos, os negócios, os países. Mas, quando nada muda eternamente, nada avança eternamente. Se os tempos são de ruptura é porque chegámos a um ponto em que a ruptura é necessária.

Quando a minha avó morreu, em 1967, a população mundial caminhava para os 6 mil milhões; hoje somos 7,2 mil milhões. Metade dela passava fome; hoje são apenas 10%. Morria-se de uma série de doenças, algumas das quais hoje estão erradicadas e outras perfeitamente controladas clinicamente. Não mais de mil chineses, todos do Partido e em missão do Partido, viajavam pelo mundo em cada ano; hoje, só na Europa, são 25 milhões por ano a fazer turismo. Havia dois canais de TV em Portugal: um passava o telejornal e o “Bonanza”, o outro a missa e a “TV Rural”. Em cada dia voavam dois mil aviões nos céus do planeta; hoje são 200 mil. A única coisa que não mudou foi o tempo de viagem de comboio do Porto para Lisboa que ela apanhava: demora menos 15 minutos agora, quando não se atrasa.

A mim, o que me assusta não é que os tempos sejam de ruptura, é que circunstancialmente não pareça haver gente capaz e à altura de dirigir o mundo em direcção às mudanças necessárias. Quando Maalouf diz que vê o mundo actual como o “Titanic”, deslizando em festa em direcção ao icebergue que o há-de afundar, tem razão no que diz quando olhamos para a ponte de comando e vemos ao leme loucos perigosos ou pantomineiros como um Trump, um Kim, um Boris Johnson, o MBS da Árábia, o assassino filipino e por aí fora. E, nos convés de primeira, segunda e terceira classes, uma multidão sem bússola, embriagada de mentiras e de ilusões, seguindo cegamente estes almirantes da catástrofe em direcção a icebergues que até já não existem. Mas a espécie humana já resistiu a tanta coisa que até a estes imbecis há-de resistir. É certo que os anos passam, vai-se fazendo tarde. Mas não somos a primeira geração a pensar assim. Os bons hão-de regressar, e a história continuará.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

A ditadura do presente, a força do passado

(António Guerreiro, in Público, 24/08/2018)

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António Guerreiro

Deve-se ao historiador francês François Hartog a invenção de um conceito com o qual designa um “regime de historicidade” marcado pelo ditadura do presente — o conceito de presentismo. O presentismo faz com que não consigamos sair do tempo da urgência, do imediato, do horizonte de onde desapareceu qualquer ideia de progresso. Num tempo presentista, a lei fundamental é a da aceleração (e daí o fascínio do nosso tempo pelo fim e pela catástrofe).

A política que hoje vigora exclusivamente é presentista, vive na lógica da reacção e remeteu para o domínio da efabulação encantatória todo o discurso que abre para o futuro. A política não tem tempo e tudo aquilo que precisa de tempo encontra hoje imensas dificuldades para subsistir.

Tudo conspira para que não sejam admitidas as discordâncias dos tempos. Tornando-se presentista, a política nega-se enquanto tal e torna-se gestionária. É verdade que esse problema não começou hoje: o presentismo é o culminar do processo da modernidade, que impôs um novo ritmo temporal que já não é o da maturação lenta e orgânica próprio de outras épocas.

O presentismo é incompatível com tudo o que precisa de tempo: a investigação científica, as artes, a literatura. Há manifestações evidentes de mal-estar em todos estes campos por causa do imperativo da aceleração do tempo. O ritmo de publicação de um escritor, actualmente, não é — salvo algumas excepções – comparável ao que era até há pouco mais de meio século. O publish or perish que se tornou uma palavra de ordem nas universidades está hoje instalado na edição literária: os escritores desaparecem do horizonte se não dão provas publicamente e com frequência de que estão activos enquanto escritores, de que estão presentes.

E estar presente tornou-se quase sempre responder ao apelo do presentismo. Se Proust estivesse submetido à lei do presentismo nunca teria escrito a Receherche. Nem Joyce teria escrito o Ulisses. Os grandes edifícios da literatura moderna parece que foram projectados não para o presente mas para o futuro. Por isso, são muitas vezes obras inacabadas, reclamando mais tempo e menos história.

Uma das mais radicais reacções ao presentismo, encontramo-la em toda a obra de Pasolini. Recordemos La Ricotta (1963), onde a personagem de Orson Welles, no papel de realizador de cinema se identifica com o próprio Pasolini. Sentado na cadeira de realizador, Orson Welles responde às perguntas um pouco idiotas de um jornalista: “O que quer exprimir com esta sua nova obra?”. Resposta: O meu profundo, arcaico, catolicismo”. “O que pensa da sociedade italiana?”. Resposta: “O povo mais analfabeto, a burguesia mais ignorante da Europa”. Como sabemos, Pasolini sempre tentou traduzir em termos acessíveis às massas a tradição cultural, com uma operação pedagógica em grande estilo. E no final da entrevista o realizador interpretado por Orson Welles faz uma verdadeira declaração poética que é na realidade a citação de um poema de Pasolini. Começa assim: “Io sono una forza del passato, /Solo nella tradizione è il mio amore”.

Pasolini foi um revolucionário com os olhos e o coração postos no passado. Deter as imposições do presente, não se submeter à sua ditadura, foi uma missão salvífica que prosseguiu de maneira radical, com um desespero heróico. Ele tinha compreendido, com a sua sensibilidade exasperada ao tempo em que estava a viver, que era preciso afirmar a discordância dos tempos e não ser absolutamente moderno. A força do passado que ele reivindica é, contra todas as convicções comuns, uma força revolucionária, uma arma contra aquilo a que hoje chamaríamos o presentismo.

Um certo Abril*

(Baptista Bastos, in Correio da Manhã, 27/04/2016)

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Baptista Bastos

 

O que foi não voltará a ser. Mas temos de estar sempre preparados para a felicidade, acaso para a descobrir ou inventar. As imagens ditosas desses dias antigos estão delidas. Fomos envelhecendo quase sem dar por isso e aquele ali já não sou eu, nem ela é ela: somos outros com a absurda ilusão de que somos os mesmos.

Passámos pelo tempo. O tempo não magoa: pune; não damos por ele, mas ele dá por nós. Numa igreja dos Altos Pirenéus está inscrita esta sentença, em forma de velado aviso: “Todas as horas nos ferem; a última mata-nos.”

Vivemos rodeados de perigos; porém, o prestígio da palavra revolução exultava-nos e convidava-nos a ir em frente. As revoluções são produto de jovens: são os beijos que nos eram proibidos, os beijos frescos e felizes que prendiam o tempo, e parecia que os não queríamos largar. Vivemos de memórias inesquecíveis e estas constroem a saudade, é o que é. E as memórias são inesquecíveis porque as seleccionamos, e somos sempre novos antes que a realidade nos surpreenda com a desconfiança e o sofrimento.

Claro que os velhos, com a consciência de o ser, propendem para a melancolia, pois talvez entendam que já não são precisos. Os velhos. Preenchem o que lhes sobra com a ideia de que alguma vez foram felizes. Isso basta aos velhos. Não sabem quanto das suas lembranças enfada os novos; não sabem ou não querem saber, o que vem a dar no mesmo.

Todavia, viveram, arrebatados, os vertiginosos dias de Abril, porque eram muito novos, e a esperança era o sonho cuja substância se tornara palpável. Não queriam “mandar aqui”: os desejos eram mais modestos: apenas desejavam que a felicidade se prolongasse. Ainda não tinham sido castigados com a evidência de que até o amor morre. As revoluções, não: transformam-se, mas a raiz inicial é sempre a mesma, singela e única: o homem precisa de liberdade e de ser feliz.

*Ao Francisco e ao Manuel, os tempos novos