Pequena memória das ruas e das raparigas

(Baptista Bastos, in Jornal de Negócios, 01/04/2016)

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Baptista Bastos

Há muito tempo que não passava por estas ruas. Aqui nasci, aqui aprendi a sobreviver. As ruas não são locais amenos; são instâncias de desaforo e temos de saber como nos defender. Foi nestas ruas e nas Redacções dos jornais que sempre me senti ameaçado e, simultaneamente, protegido. Fiquei, com sete anos, órfão de mãe. O meu pai trabalhava de noite, dormia de dia, e a minha avó Palhaça, assim como o meu primo Armando, surdo-mudo, enorme e atento, tomavam conta de mim. O meu primo armava aos pássaros e, por mais de uma vez, fui com ele vê-lo montar os bretes. Ele percebia e entendia os pássaros como nunca mais vi assim ninguém.

A minha família era enorme, com muitas primas e primos, e habitava zonas diferentes do bairro. Eu percorria todo aquele território, era amigo dos muitos ciganos que também lá moravam, e eram mantidos na ordem por um velho senhor de longas barbas, vestido de negro, Dom Teodósio, que costumava sentar-se à porta de casa, a observar o movimento e, ocasionalmente, a conversar com os homens seus amigos. Toda a gente gostava daqueles ciganos, e havia um, mais novo, grande jogador de bilhar às três tabelas, muito bem vestido, que ostentava um enorme anel de ouro, no dedo mindinho da mão esquerda

Era um bairro bom e acolhedor, cheio de sol e de raparigas.

As raparigas cheiravam bem e iam aos bailes das colectividades, aos sábados, e nós encostávamo-nos a elas, por vezes beijávamos-lhes as orelhas e elas sorriam felizes e divertidas.

Nesses sábados penteávamo-nos com fixador e usávamos umas popas a preceito. As camisas tabeladas, custavam 50 escudos, e descíamos até Alcântara ou amarinhávamos o Bairro Alto, para ir aos bordéis. As donas dos bordéis enxotavam-nos para a rua, éramos muito novos para aquelas assistências, e as mulheres riam muito e alto.

Quando morria alguém, as pessoas faziam “quêtes”, ou para se comprar flores ou para se ajudar quem cá ficava. Quando uma rapariga era desonrada, quer dizer: quando deixava que o namorado ou outro lhe tirasse os três, era ostracizada caso o tunante não casasse com ela. Com as ciganas ninguém se metia. Os ciganos usavam navalhas e outros métodos dissuasores e viviam num mundo de honra e de defesa e manutenção de outros valores.

Estava a escrever esta crónica quando, de repente, se me impôs o perfume das raparigas e o riso claro e único delas, nas épocas em que a Primavera causa tonturas e as exacerba. Agora, pergunto eu: tudo isto poderá ser esquecido?


Um grande romance de amor e de guerra

Pouso este belíssimo romance de João Paulo Guerra, cuja leitura me enche daquela alegria de que falava Montesquieu: “Não há uma boa hora de frequência de um bom livro que me não atenue e o sofrimento, qualquer que ele seja.” “Corações Irritáveis” (estimulante título camiliano) constitui o combate que João Paulo Guerra tem estabelecido contra as iniquidades da política que levam aos infortúnios da guerra. Ele sabe que todas as histórias beligerantes contêm, no seu bojo, uma grande história de amor. Escrito num português de lei, como é timbre do autor, “Corações Irritáveis” leva-nos a percorrer os caminhos da consciência lesada por uma circunstância medonha, que nada tem a ver com obtusas ideias de “patriotismo.” Todas as guerras têm uma causa económica, adverte João Paulo Guerra. Um texto invulgar pelos níveis de leitura que propõe.