Outros 25 de Abril

(José Pacheco Pereira, in Público, 27/04/2019)

Pacheco Pereira

As coisas podem mudar no futuro, porque o futuro é imprevisível, mas 45 anos já estão no papo.


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O que dá vida ao 25 de Abril em 2019 é nele caberem várias causas para além da celebração da data de 1974. É já uma manifestação internacional, com presença de brasileiros, de catalães, de franceses, de alemães, alguns dos quais vivem em Portugal, e outros são turistas que sabem muito bem o que estão a fazer e não se ficam pelos monumentos nem pelas sardinhas. Quer as cerimónias oficiais, quer as chamadas “comemorações populares”, são interessantes de seguir para além do dilema que mobiliza os jornalistas quando não há mais nada para dizer: quem leva cravo e quem não leva. (De passagem repito que nunca levei cravo na Assembleia, primeiro porque não preciso de mostrar nada, segundo, porque não gosto da flor.) Na Assembleia já assisti a discursos ridículos em que, à direita, houve quem citasse Rosa Luxemburgo, depois de uma consulta apressada à Wikipedia, como tendo feito declarações em 1921, ou seja, dois anos depois de estar morta. E este lado oficial substituía-o muito bem por ver a Assembleia, Governo e autoridades “comemorar” o 25 de Abril com uma obra qualquer que passasse a ser ligada a esta data, um centro de saúde numa zona do interior, uma biblioteca, um jardim, mais uma linha de transportes públicos, etc. Em muitos casos é até mais barato do que as pompas militares e civis desse dia.

Mas a rua é de um modo geral mais interessante, numa manifestação mais “livre” e mais plural do que é costume, em que o PCP participa com um elevado número de militantes, mas não lhe dá o tom. Das Toupeiras ao BE, a outros grupos esquerdistas e de causas, ecologistas, feministas, LGBT, ou mesmo a participações individuais de um solitário com uma queixa ou uma causa, todos vão lá. É também uma manifestação mais diversa etariamente, com a participação de casais e famílias, num ambiente que vai da luta à festa.

Com imagens tiradas no 25 de Abril pelos voluntários do Arquivo Ephemera vamos revisitar o dia.

1 A primeira imagem mostra uma pequena manifestação no dia 25 de Abril do Movimento dos Coletes Amarelos Portugueses com cerca de 20 pessoas. Ao manifestarem-se no 25 de Abril, fazem uma homenagem irónica ao significado da data, provavelmente não pretendida. As palavras de ordem da manifestação são aceitáveis embora contraditórias: “Corrupção = Prisão”, “IVA mais baixo”, “combustível mais barato”, aumento do salário mínimo”, “abolição das portagens das Scut”, etc.. Mas a afirmação, mais do que palavra de ordem, do cartaz que reproduzimos é que tem um imenso problema. “Aqui não há partidos”, ou seja, não há democracia. Ponto.

2 A Iniciativa Liberal, que participa pela primeira vez, é um novo partido normalmente classificado à direita do espectro político. Mas, como se passa há muito com a dicotomia esquerda/direita, ela é muito pouco esclarecedora da complexidade da vida política dos dias de hoje. Como já escrevi, a dicotomia esquerda/direita não é heurística, não permite esclarecer muita coisa e, quando é aplicada, dá resultados simplistas ou confusos. Os libertários americanos, por exemplo, não querem Estado, mas querem a liberalização das drogas. Têm nas suas sedes Bakunine e Milton Friedman. Hoje, em Portugal, há muitos que se autodenominam liberais quando na realidade têm as mesmas causas de Steve Bannon, ainda que com palavras mais mansas. Mas esses não estiveram na manifestação do 25 de Abril, estiveram em suas casas a espumar contra o “marxismo cultural”, coisa que obviamente não sabem o que é.

3 Os catalães manifestaram-se em Lisboa pelo direito à autodeterminação da Catalunha e em solidariedade com os presos políticos a ser julgados em Madrid por “sedição” e outros crimes que, no contexto das pessoas presas e das suas causas, são pretextos jurídicos para perseguições políticas. Se a acusação e os juízes se tomarem a sério no que dizem e no que fazem, vão ter penas da ordem de dezenas de anos de prisão. Na verdade, a causa dos presos políticos é a que no 25 de Abril deveria estar no âmago da manifestação, desde a frente até à retaguarda. Pode haver quem não concorde com a independência da Catalunha, embora haja alguma hipocrisia em quem traga um autocolante ou um pin a favor de Rojava, o território curdo da Síria, ou do Curdistão. Mas os presos que foram libertados de Caxias e de Peniche sempre contaram com a solidariedade de estrangeiros, e devemos o mesmo aos catalães.

4 A última imagem mostra um miúdo a puxar para a frente uma senhora, que pode ser a sua mãe ou avó. Não sabemos as motivações da criança, pode ter feito este gesto porque estava farto da manifestação e queria ir-se embora depressa. Mas a imagem tem um valor simbólico. A senhora atrás viveu o 25 de Abril, a criança nem deve saber o que é. Não vou aqui repetir os lugares comuns sobre o futuro e o passado, mas lembrar que a memória e o sentido da memória dura muito pouco. Quem é que hoje sabe alguma coisa sobre os “bravos do Mindelo”? Conta-se pelos dedos da mão. Com o 25 de Abril, vai acontecer o mesmo, com o tempo, esse mestre da usura das coisas. Mas, ainda hoje, Portugal é diferente, e milhões de portugueses viveram e morreram desde 1832 de forma diferente, por causa dos “bravos do Mindelo”, e o mesmo se aplica ao 25 de Abril de 1974. As coisas podem mudar no futuro, porque o futuro é imprevisível, mas 45 anos já estão no papo.


A ditadura do presente, a força do passado

(António Guerreiro, in Público, 24/08/2018)

Guerreiro

António Guerreiro

Deve-se ao historiador francês François Hartog a invenção de um conceito com o qual designa um “regime de historicidade” marcado pelo ditadura do presente — o conceito de presentismo. O presentismo faz com que não consigamos sair do tempo da urgência, do imediato, do horizonte de onde desapareceu qualquer ideia de progresso. Num tempo presentista, a lei fundamental é a da aceleração (e daí o fascínio do nosso tempo pelo fim e pela catástrofe).

A política que hoje vigora exclusivamente é presentista, vive na lógica da reacção e remeteu para o domínio da efabulação encantatória todo o discurso que abre para o futuro. A política não tem tempo e tudo aquilo que precisa de tempo encontra hoje imensas dificuldades para subsistir.

Tudo conspira para que não sejam admitidas as discordâncias dos tempos. Tornando-se presentista, a política nega-se enquanto tal e torna-se gestionária. É verdade que esse problema não começou hoje: o presentismo é o culminar do processo da modernidade, que impôs um novo ritmo temporal que já não é o da maturação lenta e orgânica próprio de outras épocas.

O presentismo é incompatível com tudo o que precisa de tempo: a investigação científica, as artes, a literatura. Há manifestações evidentes de mal-estar em todos estes campos por causa do imperativo da aceleração do tempo. O ritmo de publicação de um escritor, actualmente, não é — salvo algumas excepções – comparável ao que era até há pouco mais de meio século. O publish or perish que se tornou uma palavra de ordem nas universidades está hoje instalado na edição literária: os escritores desaparecem do horizonte se não dão provas publicamente e com frequência de que estão activos enquanto escritores, de que estão presentes.

E estar presente tornou-se quase sempre responder ao apelo do presentismo. Se Proust estivesse submetido à lei do presentismo nunca teria escrito a Receherche. Nem Joyce teria escrito o Ulisses. Os grandes edifícios da literatura moderna parece que foram projectados não para o presente mas para o futuro. Por isso, são muitas vezes obras inacabadas, reclamando mais tempo e menos história.

Uma das mais radicais reacções ao presentismo, encontramo-la em toda a obra de Pasolini. Recordemos La Ricotta (1963), onde a personagem de Orson Welles, no papel de realizador de cinema se identifica com o próprio Pasolini. Sentado na cadeira de realizador, Orson Welles responde às perguntas um pouco idiotas de um jornalista: “O que quer exprimir com esta sua nova obra?”. Resposta: O meu profundo, arcaico, catolicismo”. “O que pensa da sociedade italiana?”. Resposta: “O povo mais analfabeto, a burguesia mais ignorante da Europa”. Como sabemos, Pasolini sempre tentou traduzir em termos acessíveis às massas a tradição cultural, com uma operação pedagógica em grande estilo. E no final da entrevista o realizador interpretado por Orson Welles faz uma verdadeira declaração poética que é na realidade a citação de um poema de Pasolini. Começa assim: “Io sono una forza del passato, /Solo nella tradizione è il mio amore”.

Pasolini foi um revolucionário com os olhos e o coração postos no passado. Deter as imposições do presente, não se submeter à sua ditadura, foi uma missão salvífica que prosseguiu de maneira radical, com um desespero heróico. Ele tinha compreendido, com a sua sensibilidade exasperada ao tempo em que estava a viver, que era preciso afirmar a discordância dos tempos e não ser absolutamente moderno. A força do passado que ele reivindica é, contra todas as convicções comuns, uma força revolucionária, uma arma contra aquilo a que hoje chamaríamos o presentismo.