A “ominosa” Praça do Império

(Amadeu Homem, in Facebook, 26/02/2023)

Vão por aí raios, coriscos e trovões a propósito da Praça do Império e dos seus brasões “colonialistas”. O pensamento vanguardista exige que a praça mude de nome e que se retirem os brasões, sejam eles feitos de buxo ou reproduzidos por pedrinhas da calçada à portuguesa.

Pelo que me respeita, o que eu tenho a dizer é que sempre tentei respeitar o pensamento dos meus semelhantes, por muito que ele possa diferir do meu. Por isso, compreendo muito bem que os anticolonialistas queiram modificar a praça e suprimir os brasões.

Dito isto, o que eu mais gostava era que este pensamento pudesse ser levado ao seu grau máximo de coerência. Analisados os pressupostos desta lógica, chegaremos à conclusão que o presente e todas as suas realidades se deva substituir ao passado e a todas as suas infâmias.

Não se vê motivo para travar o pensamento iluminado, a meio do seu caminho intelectivo. O mosteiro dos Jerónimos, bem vistas as coisas, também está a mais e é um ultraje. Recorda os tempos ominosos em que Portugal foi clerical e monárquico. Ora, isto não pode ser! O presente, todo ele validamente laico, exige que esta lepra da ilusão religiosa e do poder concentrado sejam raspados com a telha do bom senso.

Portugal falhou deploravelmente o seu Destino e a sua História. Olhe-se bem para esse Portugal português do nosso tempo. Que vergonha! Um país do século XXI coalhado de ermidas, igrejas, conventos, mosteiros! Pode lá ser! Apliquemos a todo o Portugal o sabão da fúria com que se pretende retirar da Praça, vergonhosamente chamada do Império, os brasões “colonialistas”! Abaixo as igrejas! Destruam-se os mosteiros e as ermidas! Pode lá tolerar-se que num Portugal lavadinho e modernaço sobrevivam estes lixos de épocas obscurantistas. Pode lá conceber-se que exista em Portugal uma Torre dos Clérigos, um mosteiro do Lorvão e da Batalha, uma Torre de Belém, evocando os inícios desse deplorável colonialismo. Os Poderes Públicos deverão agir prontamente, decretando para muito breve a lei do camartelo para aquilo tudo.

Mas há mais: a própria Cultura Portuguesa necessita imperativamente de correções “joacínicas”, de surtidas antirracistas, carecendo e suplicando um banho lustral de desalienação. Pode lá admitir-se que se possam ensinar nas escolas poesias e prosas tão reacionárias como “Os Lusíadas”, de um tal obscuro Camões, como a “Peregrinação, desse mentiroso compulsivo, que dava pelo nome de Fernão Mendes Pinto, como a Carta de Pero Vaz de Caminha, como a “Mensagem” desse badameco imbecil chamado Fernando Pessoa! Pode lá tolerar-se que se diga, em fraseologia sem suporte dialético e sem largueza de apreciação, que um jesuíta palavroso como o Padre António Vieira seja apresentado como o “imperador da língua portuguesa”! Cá está a palavrinha “imperador” a denunciar tudo o que é retrógrado, regressivo, aprisionado ao ontem!

O que Portugal está carecido, como pão para a boca, é de uma “revolução cultural” idêntica à que foi feita por um génio chinês da política, chamado Mao Zedong, infelizmente já falecido. Esse prodígio mental lançou uma campanha, no seu tempo, contra os pardais que comiam muito grão nas searas. Toda a China andou atrás dos famigerados pardais. Nos anos seguintes as colheitas caíram a pique na sua produtividade, porque o portento intelectual não se lembrou que os pardais também comiam as lagartas. Morreram milhões de pessoas, mas salvou-se um dos nomes axiais do comunismo. Ou seja: nem tudo se perdeu!

Também entre nós, iremos salvar o Bairro da Pampulha, mas não a Praça do Império; o Borda d’Água, mas nunca os “Lusíadas”; o estádio do Benfica, mas jamais a Torre dos Clérigos; os discursos das Manas Mortágua, mas com exclusão autoritária do aranzel de Pero Vaz de Caminha…e assim por diante.

Quando nos falarem de Afonso Henriques, haveremos de dizer, sensatamente: “esse bruto até na mãe batia” ; se ouvirmos o nome de D. Dinis, iremos obtemperar: “era tão atrasado que nunca soube organizar eleições”; no caso de falarem na “Ínclita Geração dos Altos Infantes”, obtemperaremos: “nunca ganharam o torneio de futebol dos Campeões Europeus”; e se nos vierem com a crueldade de D, João II, responderemos: “teria de estagiar com Estaline ou Putin, para ser coisa que se visse”.

A Praça do Império, onde hoje se deslocam estrangeiros, por ser um local próximo da fábrica dos Pastéis de Belém, necessita ser suprimida com a máxima urgência. A bem da nossa Cidadania e a bem do Progresso. Ponham lá um monumento ao futuro. Sugiro que tenha a forma de um manguito. E depois coloquem lá o Beijocas a vender “selfies”.

Com esta gente, acho que não iremos merecer mais!


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Afinal, quem são os bárbaros?

(Por Hugo Dionísio, in Facebook, 15/12/2022)

A série televisiva de produção alemã “Bárbaros” (Barbarians), da Netflix (não, não estou a fazer publicidade!), retratando as campanhas romanas contra os povos germânicos, constitui um retrato muito fiel de como atua um Império com uma pretensa vocação “civilizadora”. Não sei se a intenção foi a de estabelecer qualquer tipo de paralelo, mas se não foi… A introdução, durante a ação, de referências culturais, políticas e filosóficas que constituem paralelismos evidentes entre o Império Romano e o Império Estado Unidense, é demasiado incisiva para não ser propositada. E na Alemanha de hoje…

Pensava eu que iria assistir a mais uma série de pancada. Mas não. Todos os elementos usados pelo Império romano e pelo americano estão presentes, deixando-nos uma certeza: a construção do império anglo-saxónico estado-unidense, nos seus aspetos constitutivos, nada tem de casual. Todos os pilares da sua afirmação, expansão e domínio, estão ali presentes. Todos. Mais do que com qualquer outro Império, é com o Império romano que o Império atual mais semelhanças tem, podendo dizer-se mesmo ser seu herdeiro.

• A construção de uma classe política subserviente, através da educação, em Roma, dos filhos dos mais importantes chefes tribais, que de lá vêm romanos autênticos e, quando colocados na chefia da tribo, prosseguem os interesses do Império. Hoje, este papel é realizado através da captação pelas universidades da Ivy League, ou de universidades proeminentes inglesas (London School of Economics, p.e.), de jovens de todo o mundo, que, quando de lá vêm, já não vêm portugueses ou espanhóis, vêm americanos, defensores acérrimos da ordem liberal que, tal como a pax romana funcionava para o Império romano, a ordem liberal funciona para o Império estado-unidense.

• A ideia de que a submissão à lei romana constitui um requisito fundamental do que se pensa ser a civilização. Hoje, temos a constantemente afirmada “rules based order” (ordem baseada em regras) como matriz reguladora do que constitui a ordem liberal. Tal como a lei romana era feita pelos romanos, a regras da RBO são feitas pelos EUA: (“a RBO é uma comunidade aberta, admitindo todos os estados que lhe queiram aderir; com essa adesão passarão assim a ter uma palavra na feitura das regras”, disse o presidente dos EUA a seguir ao G7).

• A ideia de “pax romana”, ou seja, a submissão ao direito romano não apenas é condição de paz, como garante a continuidade da paz, uma vez que ao garantir a manutenção da superioridade do Império face ao povo assimilado, acaba por unir o que antes estava desunido. Atualmente, este papel é assumido pela submissão à RBO, pois os estados que não se lhe submetem são sancionados, bloqueados, desestabilizados e, por vezes, invadidos, uma vez que a RBO constitui o formato, a normalização, o receituário e o código de conduta que garante a superioridade e a hegemonia imperial.

• A ideia de “bárbaro” como alguém que não partilha da ideologia romana, hoje materializada na ideologia fracionária e intolerante “woke”, na cultura corporativa empresarial que funciona como um exército económico fardado em que todos se vestem, comportam e pensam igual (aqueles fatinhos azuis…) e no papel que os “direitos humanos” assumem, em matéria de RBO, para designar como “bárbaros” todos os que a RBO diz não os cumprirem.

• A ideia de que só pode haver uma forma justa de vida, a romana. As culturas germânicas, tribais, são vistas como atrasadas. A ordem liberal é uma versão moderna desta realidade. Para o ocidente coletivo, a aplicação das regras só pode levar a um estado de desenvolvimento, o estado capitalista liberal. Todas as outras formas de estado ou organização coletiva são apresentadas como atrasadas, ditatoriais, só havendo lugar a um modelo.

• O desrespeito romano pela diversidade de crenças, formas de organização, culturas, consideradas suprimíveis porque não se inserem na sua filosofia civilizadora, o que hoje é mais do que evidente com o processo de ocidentalização de sociedades não ocidentais, num desprezo absoluto por outras formas de vida, levando os povos, pelo domínio dos meios de comunicação, a acreditarem que a sua cultura é de algum modo inferior, nem que seja por considerarem a ocidental mais moderna e sofisticada, garantindo a manutenção da suposta superioridade cultural do ocidente.

• A acusação constante, por parte dos romanos, de que os povos germânicos é que são violentos, sanguinários, injustos e mal-intencionados, branqueando, justificando ou desvalorizando, ao mesmo tempo, todos os atos violentos que o Império usa para submeter esses povos.

• O uso da traição, da corrupção e da subserviência como armas do domínio, colocando umas tribos contra as outras, afirmando a lógica do dividir para reinar, tal como se faz hoje, usando diferenças étnicas e outras, para fazer colapsar nações e povos inteiros; tal como antes, a exploração da dimensão individualista (da liberdade e da identidade) era utilizada como veículo de submissão, na medida em que era mais fácil atrair cada um, de per se, do que toda uma comunidade. Daí a exploração do egoísmo, da ganância, das liberdades meramente individuais, uma vez que são as coletivas (base das diferenças) que são perigosas para a manutenção da lógica de submissão.

• O papel do Latim como língua da civilização. Hoje é o inglês que cumpre essa função a que Orwell chamou de “novilíngua”, fazendo sentir-se complexado quem não o fala, como se, de algum modo, estivesse numa (falsa) posição de inferioridade em relação aos que, por o dominarem, têm acesso ao coração da civilização. Num e outro caso, a língua deixa de ser um veículo de cultura, para se tornar num sistema operativo que garante a submissão constante.

• A superioridade racial, traduzida no sentimento de que o “ser romano” é ser superior, hoje bem presente na ideia de que são os EUA que têm de liderar o mundo e que mais ninguém o pode fazer. Uma ideia absolutamente supremacista com a qual tão bem convivem os mais efusivos “antirracistas” “woke”, para os quais todas as discriminações são importantes, menos a mais importante de todas, a material.

Todos os elementos estão bem presentes e, a cada cena, nos surge a mensagem explícita de que os povos têm direito às diferenças que constituem a sua identidade, a sua liberdade. Esta liberdade não nos é apresentada, apenas, como sendo individual, mas sobretudo, coletiva.

As cenas, inclusive as de guerra, vão-se desenrolando, mostrando que todos os presentes, homens e mulheres, romanos ou germânicos, são capazes da barbárie e da bondade, sendo o contexto em que vivem e em que operam que mais decisivamente influencia o que fazem e não a ideologia ou filosofia de vida que assumem. E, com esta mensagem, não podemos, no final, deixar de pensar que: quanto mais poderosos, mais violentos!

A utilização da ideologia civilizadora, pelos impérios, foi uma constante no ocidente (não exclusivamente), principalmente desde o nascimento do que consideramos constituir o seu pilar fundador, concretamente, a civilização greco-romana. A ideia de “civilização” trouxe substância ideológica e filosófica, a toda uma lógica imperial expansionista e de tendência global. Os romanos chamavam bárbaros a todos os que não partilhavam os pilares constitutivos da sua civilização, como a sua religião, língua, cultura e, principalmente, o direito romano, elemento fundamental para a “pax romana”.

No caso dos impérios ocidentais, em virtude da falta de matérias-primas, da pequenez dos seus domínios, inclusive em matéria de mão-de-obra, esta realidade material moldou-os de forma diferente dos demais. Todos eles, desde as cidades-estado italianas ao português e espanhol primeiro, ao francês e ao holandês depois, e, por fim, o inglês, qualquer um destes pendeu para a expansão global, transcontinental. Outros, como o russo ou o austro-húngaro, tendiam a afirmar-se como potências continentais, junto das suas fronteiras mais próximas.

Esta tendência transcontinental, global, observável, porventura, também nos mongóis e nos povos muçulmanos, constitui a pedra de toque da ideia inicial de “globalização”. Se os romanos aproveitaram a sabedoria, a experiência e o conhecimento gregos para os integrarem na sua conceção de civilização (até os deuses copiaram), os EUA herdaram a vocação global britânica e a ideia civilizadora da “common law”, lei esta que constitui uma transposição da antiga “lei romana”, a que hoje ouvimos chamar “ordem baseada em regras” (rules based order). No âmbito da EU, nunca tanto como hoje se ouviu falar de “estado de direito”, desconsiderando, contudo, quem faz e que direito faz, porque o faz e como o faz.

É esta assunção que permite classificar como “ditadores” todos os que não se conformam às suas regras, pois é a “RBO” (Rules Based Order) que determina o que é, e não é, democracia e liberdade. A mesma lógica prevalece em matéria de direitos humanos, não porque estes não estejam devidamente tipificados na Declaração Universal, mas porque as avaliações das variáveis relativas à sua aplicação são definidas através da “RBO”. A própria “RBO” determina o que é e não é “civilizado”, na medida em que é fonte das regulações sobre os pilares do que se considera constituir a “civilização”.

Neste sentido, a série “Bárbaros” não deixa de constantemente nos alertar: quem são, afinal, os bárbaros?


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Eu, estátua, indefesa e silenciosa

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 11/12/2021)

Miguel Sousa Tavares

“Eu, Diogo Cão, navegador,
deixei este padrão ao pé
do areal moreno
E para diante naveguei”

Fernando Pessoa, in “Mensagem”


Mário Lúcio de Sousa, natural do Tarrafal, Cabo Verde (onde, da última vez que lá estive, nenhuma estátua, nenhuma placa, nenhuma simples escultura, evocava o campo de morte onde tantos resistentes portugueses pagaram pela sua luta contra o fascismo e o colonialismo), escreveu no “Público” de domingo passado um artigo a defender o derrube, o “afundamento” ou a “vandalização” das estátuas coloniais portuguesas em Portugal. Embora identificado pelo jornal como “escritor e músico”, confesso que a minha ignorância sobre ele era total. Erro meu: a sua biografia ilustra-o como poeta, escritor (com dois prémios literários portugueses conquistados), músico, cantor, “cantautor”, “pensador”, pintor, global artist e ex-ministro da Cultura de Cabo Verde. Um personagem e tanto! Das suas qualidades musicais, a net pouco mais me revelou que brevíssimos excertos dos vários concertos ao vivo em que parece ter ocupado o seu último Verão em Portugal, mas nada que o aproxime sequer dos vários nomes que fizeram da música cabo-verdiana uma referência mundial. Das suas qualidades literárias, apenas consegui chegar a dois poemas sofríveis, para não dizer medíocres, e o próprio texto publicado no jornal, onde, em minha modesta opinião, faz um fraco uso desta extraordinária língua que lhe deixámos em herança… para além das estátuas. Mas isso é o menos, o fundamental é o seu argumentário.

Primeiro que tudo, a questão da legitimidade. Mário Lúcio (como ele gosta de assinar) fala em nome dos “antigos colonizados, seus descendentes, hoje pessoas nascidas, crescidas, naturalizadas, cidadanizadas, nacionalizadas, simplesmente portuguesas”. Ora, os de quem ele fala, sim, são portugueses, tal qual como eu; ele, não. Por mais que este país o acarinhe e premeie, ele continua a ser, de direito, um estrangeiro, como eu sou em Cabo Verde — embora, segundo percebi, ele goze daquele estatuto especial de alguns cidadãos dos PALOP de serem aqui quase tão portugueses como nós, mas, vade retro, orgulhosamente africanos em África e no Brasil… Assim, a minha pergunta é: que legitimidade tem um estrangeiro para vir pregar o derrube de estátuas, ou do que quer que seja, num país que não é o seu? Acaso ele se atreveria a isso em Inglaterra, em Angola ou no Brasil? Acaso ele me consentiria isso em Cabo Verde?

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Segunda questão, o fundamento. Diz ele que os “‘novos portugueses’ conti­nuam a ouvir os ecos das ordens de matar e de castigar, esses que abafam os uivos de dor”. Não vou, obviamente, discutir o que foi a barbárie da escravatura e o tráfico de 1.400.000 seres humanos, que, só os portugueses, levaram, acorrentados, de África para o Brasil — e sem os quais o Brasil que conhecemos não existiria. Mas se os “novos portugueses” ainda ouvem esses ecos, eu não: não há chicotes nem correntes em minha casa e não oiço uivos de dor vindos da sanzala dos meus escravos. O meu dever contemporâneo é contar a história, a verdadeira história (e, sim, ao contrário do que ele diz, já há em Lisboa um monumento de homenagem às vítimas da escravatura, mas, por pudor, não há um Museu das Descobertas). E, sobretudo, é meu dever denunciar novas formas de escravatura, com novos disfarces, sem chicote nem correntes, como as de que são vítimas os trabalhadores asiáticos na agricultura intensiva — e de que não se ocupam estes activistas talvez porque eles não são negros. Porque também me espanta que estes derrubadores de símbolos de um passado que há muito deixou de existir se remetam a um silêncio sujo de cumplicidade com as múltiplas formas como os povos dos países africanos outrora colónias portuguesas hoje são roubados pelos seus dirigentes, à vista de todos e como nunca foram antes. Não é o caso de Mário Lúcio, natural do único desses países que tem orgulhado a sua independência, mas o que dizer da deputada portuguesa Joacine Katar, aqui acolhida como em raros países do mundo, tão crítica do seu país de acolhimento e tão silenciosa perante a vergonha continuada que é a governação do seu país de origem e a desgraça do seu povo?

ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Terceira questão: o que querem eles derrubar ao certo? Mário Lúcio não esclarece esta questão, dizendo apenas que “a história é tanto a erecção das estátuas e monumentos como a sua demolição”, e o “Público” ilustra o seu texto com uma fotografa do Padrão dos Descobrimentos — cuja demolição, aliás, já foi defendida por uma luminária do PS. E, numa infeliz comparação, Mário Lúcio diz que os alemães, pelo menos, “não expõem as estátuas dos nazistas”. Passe o insulto, decerto imponderado, a verdade é que eu não conheço por cá nenhuma estátua a esclavagistas — a não ser, assim se achando, as que houver ao Infante D. Henrique, que foi, historicamente, o primeiro importador de escravos em Portugal. Mas uma vez derrubado o Infante, um dos maiores homens do seu tempo e um visionário da História da Humanidade, tudo o resto que tenha que ver com aquilo que ele iniciou e a que chamamos a epopeia das Descobertas Portuguesas terá de ser varrido do olhar e da memória, actual e futura. Estátuas, monumentos, Padrão dos Descobrimentos, Torre de Belém, Jerónimos, Mafra, Queluz, e não só aqui: por todo esse mundo fora, onde, desde 1415 até à independência de Macau, alguma vez os portugueses pousaram pé, e onde, com bússolas ou sextantes, com mapas ou sem mapas, com escravos, sem escravos ou com índios, ergueram castelos, fortes, igrejas, feitorias, sinais do Ocidente europeu e do seu tempo entre “gente remota”. Aquilo que esses países preservam como património histórico e como fonte de receitas turísticas, mas que o buldozer da história “limpa” deveria derrubar, em consequência e por igual.

Mas, uma vez isto feito, a limpeza da memória histórica não estaria terminada. A exaltação do “colonialismo” português, confundida por estes derrubadores de estátuas com tudo o resto, não poderia, coerentemente, ficar sacia­da. Sobrariam ainda, por exemplo, as pinturas e os livros: “Os Lusíadas”, “A Peregrinação”, “As Décadas da Índia”, o “Esmeraldo de Situ Orbis”, os relatos da “História Trágico-Marítima”, o “De Angola à Contracosta”, e tantos, tantos livros mais, que haveria bibliotecas inteiras para queimar em autos-de-fé. E os escritores que algum dia se deixaram tomar pelo espanto daqueles que navegavam sem horizonte conhecido: Camões, Pessoa, Jorge de Sena, Manuel Alegre, Sophia.

Diga-me lá, Mário Lúcio, com a sua visão de global artist: a sua fúria demolidora começa em que estátua nossa em concreto e acaba em que específico pergaminho?

2 Os Estados Unidos, a União Europeia e a NATO dizem que a Rússia se prepara para invadir a Ucrânia, como fez com a Crimeia, e porque nunca desistiu dos seus sonhos imperiais. Putin responde que aceitará uma garantia firme do Ocidente de que a Ucrânia não se tornará membro da NATO e não acolherá no seu território armas nucleares capazes de atingirem Moscovo em cinco ou sete minutos. Putin tem toda a razão. Há 30 anos, a Rússia “imperial” fez aquilo que só em sonhos o Ocidente podia esperar: dissolveu a União Soviética e o Pacto de Varsóvia, devolveu a independência aos Estados Bálticos, às repúblicas russófonas e à Ucrânia, província russa durante séculos, sede de uma importante base naval e de silos nucleares. A NATO respondeu não só não se dissolvendo, como ainda alargando sistematicamente as suas fronteiras para leste, em direcção à Rússia. E se é verdade que Putin anexou a Crimeia, não é menos verdade que esta sempre fora uma província russa (como a Florida é dos Estados Unidos) — tanto que foi ali, em Ialta, que teve lugar a mais importante cimeira dos Aliados durante a 2ª Grande Guerra, entre Estaline, Churchill e Roosevelt, e que a sua anexação teve o apoio maio­ritário da população, pois a entrega à Ucrânia, durante o tempo da URSS, fora um gesto absurdo do ucraniano secretário-geral do PCUS, Khrushchov. E na questão da adesão da Ucrânia à NATO, com a consequente instalação de tropas da NATO e armas nucleares no seu território apontadas à Rússia, Putin está carregado de razão: por igual razão, Kennedy esteve à beira de desencadear a terceira guerra mundial quando o mesmo Khrushchov quis instalar mísseis russos em Cuba, apontados aos Estados Unidos. A mesma narrativa não pode ter duas leituras e duas morais diferentes.

3 Eduardo Cabrita devia ter-se demitido quando um serviço do Estado, sob a sua direcção, espancou até à morte um cidadão estrangeiro no aeroporto de Lisboa. Agora, quando o carro de serviço em que seguia atropelou mortalmente um peão que saiu inesperada e ilegalmente do separador central da auto-estrada para a pista, a única coisa que ele deveria ter feito era defender o motorista. Porque, não obstante toda a especulação mediática e o penoso esforço de aproveitamento político da situação, aquilo que é por demais evidente é que a tese da acusação de homicídio por negligência não tem a menor base de sustentação, de boa-fé. Basta imaginarmo-nos ao volante e não termos um ministro sentado atrás.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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