(Por Hugo Dionísio, in Facebook, 15/12/2022)
A série televisiva de produção alemã “Bárbaros” (Barbarians), da Netflix (não, não estou a fazer publicidade!), retratando as campanhas romanas contra os povos germânicos, constitui um retrato muito fiel de como atua um Império com uma pretensa vocação “civilizadora”. Não sei se a intenção foi a de estabelecer qualquer tipo de paralelo, mas se não foi… A introdução, durante a ação, de referências culturais, políticas e filosóficas que constituem paralelismos evidentes entre o Império Romano e o Império Estado Unidense, é demasiado incisiva para não ser propositada. E na Alemanha de hoje…
Pensava eu que iria assistir a mais uma série de pancada. Mas não. Todos os elementos usados pelo Império romano e pelo americano estão presentes, deixando-nos uma certeza: a construção do império anglo-saxónico estado-unidense, nos seus aspetos constitutivos, nada tem de casual. Todos os pilares da sua afirmação, expansão e domínio, estão ali presentes. Todos. Mais do que com qualquer outro Império, é com o Império romano que o Império atual mais semelhanças tem, podendo dizer-se mesmo ser seu herdeiro.
• A construção de uma classe política subserviente, através da educação, em Roma, dos filhos dos mais importantes chefes tribais, que de lá vêm romanos autênticos e, quando colocados na chefia da tribo, prosseguem os interesses do Império. Hoje, este papel é realizado através da captação pelas universidades da Ivy League, ou de universidades proeminentes inglesas (London School of Economics, p.e.), de jovens de todo o mundo, que, quando de lá vêm, já não vêm portugueses ou espanhóis, vêm americanos, defensores acérrimos da ordem liberal que, tal como a pax romana funcionava para o Império romano, a ordem liberal funciona para o Império estado-unidense.
• A ideia de que a submissão à lei romana constitui um requisito fundamental do que se pensa ser a civilização. Hoje, temos a constantemente afirmada “rules based order” (ordem baseada em regras) como matriz reguladora do que constitui a ordem liberal. Tal como a lei romana era feita pelos romanos, a regras da RBO são feitas pelos EUA: (“a RBO é uma comunidade aberta, admitindo todos os estados que lhe queiram aderir; com essa adesão passarão assim a ter uma palavra na feitura das regras”, disse o presidente dos EUA a seguir ao G7).
• A ideia de “pax romana”, ou seja, a submissão ao direito romano não apenas é condição de paz, como garante a continuidade da paz, uma vez que ao garantir a manutenção da superioridade do Império face ao povo assimilado, acaba por unir o que antes estava desunido. Atualmente, este papel é assumido pela submissão à RBO, pois os estados que não se lhe submetem são sancionados, bloqueados, desestabilizados e, por vezes, invadidos, uma vez que a RBO constitui o formato, a normalização, o receituário e o código de conduta que garante a superioridade e a hegemonia imperial.
• A ideia de “bárbaro” como alguém que não partilha da ideologia romana, hoje materializada na ideologia fracionária e intolerante “woke”, na cultura corporativa empresarial que funciona como um exército económico fardado em que todos se vestem, comportam e pensam igual (aqueles fatinhos azuis…) e no papel que os “direitos humanos” assumem, em matéria de RBO, para designar como “bárbaros” todos os que a RBO diz não os cumprirem.
• A ideia de que só pode haver uma forma justa de vida, a romana. As culturas germânicas, tribais, são vistas como atrasadas. A ordem liberal é uma versão moderna desta realidade. Para o ocidente coletivo, a aplicação das regras só pode levar a um estado de desenvolvimento, o estado capitalista liberal. Todas as outras formas de estado ou organização coletiva são apresentadas como atrasadas, ditatoriais, só havendo lugar a um modelo.
• O desrespeito romano pela diversidade de crenças, formas de organização, culturas, consideradas suprimíveis porque não se inserem na sua filosofia civilizadora, o que hoje é mais do que evidente com o processo de ocidentalização de sociedades não ocidentais, num desprezo absoluto por outras formas de vida, levando os povos, pelo domínio dos meios de comunicação, a acreditarem que a sua cultura é de algum modo inferior, nem que seja por considerarem a ocidental mais moderna e sofisticada, garantindo a manutenção da suposta superioridade cultural do ocidente.
• A acusação constante, por parte dos romanos, de que os povos germânicos é que são violentos, sanguinários, injustos e mal-intencionados, branqueando, justificando ou desvalorizando, ao mesmo tempo, todos os atos violentos que o Império usa para submeter esses povos.
• O uso da traição, da corrupção e da subserviência como armas do domínio, colocando umas tribos contra as outras, afirmando a lógica do dividir para reinar, tal como se faz hoje, usando diferenças étnicas e outras, para fazer colapsar nações e povos inteiros; tal como antes, a exploração da dimensão individualista (da liberdade e da identidade) era utilizada como veículo de submissão, na medida em que era mais fácil atrair cada um, de per se, do que toda uma comunidade. Daí a exploração do egoísmo, da ganância, das liberdades meramente individuais, uma vez que são as coletivas (base das diferenças) que são perigosas para a manutenção da lógica de submissão.
• O papel do Latim como língua da civilização. Hoje é o inglês que cumpre essa função a que Orwell chamou de “novilíngua”, fazendo sentir-se complexado quem não o fala, como se, de algum modo, estivesse numa (falsa) posição de inferioridade em relação aos que, por o dominarem, têm acesso ao coração da civilização. Num e outro caso, a língua deixa de ser um veículo de cultura, para se tornar num sistema operativo que garante a submissão constante.
• A superioridade racial, traduzida no sentimento de que o “ser romano” é ser superior, hoje bem presente na ideia de que são os EUA que têm de liderar o mundo e que mais ninguém o pode fazer. Uma ideia absolutamente supremacista com a qual tão bem convivem os mais efusivos “antirracistas” “woke”, para os quais todas as discriminações são importantes, menos a mais importante de todas, a material.
Todos os elementos estão bem presentes e, a cada cena, nos surge a mensagem explícita de que os povos têm direito às diferenças que constituem a sua identidade, a sua liberdade. Esta liberdade não nos é apresentada, apenas, como sendo individual, mas sobretudo, coletiva.
As cenas, inclusive as de guerra, vão-se desenrolando, mostrando que todos os presentes, homens e mulheres, romanos ou germânicos, são capazes da barbárie e da bondade, sendo o contexto em que vivem e em que operam que mais decisivamente influencia o que fazem e não a ideologia ou filosofia de vida que assumem. E, com esta mensagem, não podemos, no final, deixar de pensar que: quanto mais poderosos, mais violentos!
A utilização da ideologia civilizadora, pelos impérios, foi uma constante no ocidente (não exclusivamente), principalmente desde o nascimento do que consideramos constituir o seu pilar fundador, concretamente, a civilização greco-romana. A ideia de “civilização” trouxe substância ideológica e filosófica, a toda uma lógica imperial expansionista e de tendência global. Os romanos chamavam bárbaros a todos os que não partilhavam os pilares constitutivos da sua civilização, como a sua religião, língua, cultura e, principalmente, o direito romano, elemento fundamental para a “pax romana”.
No caso dos impérios ocidentais, em virtude da falta de matérias-primas, da pequenez dos seus domínios, inclusive em matéria de mão-de-obra, esta realidade material moldou-os de forma diferente dos demais. Todos eles, desde as cidades-estado italianas ao português e espanhol primeiro, ao francês e ao holandês depois, e, por fim, o inglês, qualquer um destes pendeu para a expansão global, transcontinental. Outros, como o russo ou o austro-húngaro, tendiam a afirmar-se como potências continentais, junto das suas fronteiras mais próximas.
Esta tendência transcontinental, global, observável, porventura, também nos mongóis e nos povos muçulmanos, constitui a pedra de toque da ideia inicial de “globalização”. Se os romanos aproveitaram a sabedoria, a experiência e o conhecimento gregos para os integrarem na sua conceção de civilização (até os deuses copiaram), os EUA herdaram a vocação global britânica e a ideia civilizadora da “common law”, lei esta que constitui uma transposição da antiga “lei romana”, a que hoje ouvimos chamar “ordem baseada em regras” (rules based order). No âmbito da EU, nunca tanto como hoje se ouviu falar de “estado de direito”, desconsiderando, contudo, quem faz e que direito faz, porque o faz e como o faz.
É esta assunção que permite classificar como “ditadores” todos os que não se conformam às suas regras, pois é a “RBO” (Rules Based Order) que determina o que é, e não é, democracia e liberdade. A mesma lógica prevalece em matéria de direitos humanos, não porque estes não estejam devidamente tipificados na Declaração Universal, mas porque as avaliações das variáveis relativas à sua aplicação são definidas através da “RBO”. A própria “RBO” determina o que é e não é “civilizado”, na medida em que é fonte das regulações sobre os pilares do que se considera constituir a “civilização”.
Neste sentido, a série “Bárbaros” não deixa de constantemente nos alertar: quem são, afinal, os bárbaros?
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