Europa – um continente que se transforma em península

(Vítor Lima, in Blog Grazia Tanta, 02/06/2021)

Habituámo-nos a considerar a Europa como um continente. E se a realidade política e económica a transformarem de dependência norte-americana em península asiática?


1 – A União Europeia das desigualdades

No capitalismo avançado, de perfil neoliberal, as fronteiras são tomadas como estorvos que podem dificultar a tramitação de mercadorias. E a internet veio facilitar de modo exponencial os contactos em geral, as operações de capitais e a demência especulativa, em particular. Quanto aos seres humanos as coisas são algo diferentes; são necessários cartões de cidadão, passaportes, vistos, títulos de residência e … em curso, um certificado sobre a situação face à covid-19.

A UE pretendeu ser um factor de homogeneidade quanto a direitos e usufrutos no sentido da facilitação das trocas entre os países membros, como resposta à grande rivalidade saída da II Guerra, entre norte-americanos e soviéticos. Inicialmente, as diferenças políticas e económicas entre os seus membros não eram muitas até à integração da Grécia (1981) e dos países ibéricos (1986), com graus de desenvolvimento económico claramente inferiores aos fundadores. Posteriormente, com a inclusão dos países saídos do Comecon e do sangrento desmembramento da Jugoslávia, as desigualdades no seio da UE alargada cresceram substancialmente, apresentando enormes bolsas de potenciais emigrantes destinados a trabalhar nos países mais ricos, desertificando e envelhecendo os seus países de origem, tomados como exportadores de mão-de-obra. Como os níveis de formação desses países são dos mais elevados da Europa (mormente a Leste) e, essa formação sendo paga pelas famílias dos países das suas origens, logo se vê que quem vai beneficiar da qualificação desses trabalhadores emigrados são os países ricos, com dinheiro suficiente para pagar salários que nos países de origem não são praticados. Como essas desigualdades interessam aos contratantes (países ricos) e aos contratados (trabalhadores dos países pobres), falar de coesão social e territorial no seio da UE é uma mentira consolidada com a passagem do tempo.

O piedoso objetivo de unificação e solidariedade não se cumpriu. São perfeitamente visíveis os países ou regiões em processo de regressão populacional e aquelas que atraem população, embora na UE não haja apenas migrações entre os estados-membros mas também de gente vinda do exterior. Por exemplo, os turcos dirigem-se para a Alemanha, os marroquinos para Espanha, indianos e paquistaneses para a Grã-Bretanha, brasileiros para Portugal…

Os países mais ricos viram nos países mais pobres integrados na UE destinos interessantes para investimentos, com aproveitamento dos baixos níveis salariais locais e, em muitos casos, ligados a níveis educativos elevados (sobretudo nos antigos países do Comecon); nesses territórios encontrava-se gente ávida de consumo e bem-estar, pronta para trabalhar e obter melhorias nas suas vidas[1]. Por outro lado, a integração desses países funcionaria como um modelo de consolidação de centros e periferias, com estas a orbitarem os países com maior pujança económica, demográfica ou financeira; um modelo de reorganização espacial e económica, geradora de desigualdades que interessam ser permanentes nomeadamente no capítulo do preço do trabalho. Tudo porém, bem camuflado numa linguagem de igualitarismo que a realidade demonstra ser falsa; registando-se entre as periferias casos de algum sucesso, como de total insucesso.

Toda essa arquitetura está bem embrulhada em textos legais, extensos e detalhados onde claramente se evidenciam as dificuldades para os países que queiram voltar atrás, saindo da União; sem prejuízo de ser evidente o desastre de uma saída para qualquer estado-membro de menor gabarito, sobretudo se incluído na área do euro[2]. A Grã-Bretanha conseguiu sair mas levou consigo problemas que põem em causa a continuidade das suas parcelas periféricas – Escócia e Ulster – deixando à realeza a Grande Londres como poderosa praça financeira ligada aos numerosos pontos offshore espalhados pelo planeta. É duvidosa a viabilidade da saída de países desestruturados, pobres, com comércio em grande parte efetuado no seio da UE e dependente de apoios comunitários. A UE replica no seu seio as desigualdades típicas dos estados federados; nos EUA as diferenças entre a Florida e a Virgínia Ocidental são gritantes; no Brasil, o estado de S. Paulo tem uma capitação de rendimento três vezes superior ao do Ceará; em Espanha, o rendimento na Comunidade de Madrid é duplo da autonomia mais pobre (Extremadura); e em Portugal a região Norte apresenta um rendimento pouco superior a 2/3 do registado em Lisboa e Vale do Tejo. Em suma, a UE replica as desigualdades sociais e económicas vigentes em todos os estados-nação e estas jamais desaparecerão num quadro de competição capitalista; a gestão global da pandemia atual revela à saciedade as diferenças que o capitalismo gera e sustenta. Cooperação e entreajuda dão melhores resultados do que a tara da acumulação de capital até ao infinito.

Se inicialmente, os países da CEE tinham níveis de rendimento e estruturas produtivas aproximadas, a partir da entrada da Grécia na então CEE as coisas modificaram-se com a inclusão daquele país pobre, com estruturas produtivas e rendimentos muito diferentes; e a que se seguiram os países ibéricos, etc. Como é evidente, as classes políticas dos países menos desenvolvidos, sedentos de se tornarem os elos de ligação e protagonistas de uma corrupta absorção dos fundos comunitários, não se preocuparam em consultar as populações sobre a aceitação ou não, de tal alteração geopolítica. Pelo contrário, locupletaram-se ao que puderam e alguns tornaram-se “empresários” beneficiando das boas ligações no âmbito do partido-estado PS/PSD, no caso português. Os chamados investidores internacionais sabem que têm de pagar um fee específico para qualquer negócio com um paísonde a corrupção faz parte da naturalidade e, tratam de contratar intermediários abalizados – os escritórios de advogados.

Onde se afirmava um plano político de coesão territorial, política e de bem-estar, manteve-se, na realidade, apenas uma hierarquia de países com diversos níveis de poder político, comercial e tecnológico, concorrendo uns com os outros, para o aproveitamento dos fundos comunitários que possibilitassem o investimento dos capitalistas dos países mais ricos nos menos ricos, de mais baixos níveis salariais, dando ainda margem para a aplicação desses fundos de acordo com os interesses das mafias partidárias, nacionais ou autárquicas. Europa das Regiões, alguém se lembra?

Na realidade, os países mais pobres continuam a estar na parte baixa da hierarquia, mantendo-se a UE como uma união de desiguais.

Nesse contexto, há uma “especialização”. Os países da UE com estruturas económicas mais potentes e especializações produtivas de maior conteúdo tecnológico tendem a focar-se nas relações comerciais com um vasto leque de países, mormente na exportação – é o caso evidente da Alemanha. Os países com padrões de especialização menos avançados tendem a focar-se na produção de bens de menor conteúdo tecnológico, como produtos agrícolas ou turísticos, tendo como compradores os países mais ricos da União. E, no caso de produtos agrícolas de exportação, não faltam mafiosos locais para a integração de imigrantes não comunitários em condições e salários substandard.

2 – A UE no plano global

No final da II Guerra, a Europa tornou-se uma área política e militarmente partilhada. Na parte ocidental, a presença de tropas norte-americanas visaria a defesa face a qualquer avanço soviético; e, para tal foi instituída em 1949, a NATO, a que se juntaram a Grécia e a Turquia em 1952. Como resposta, em 1955, surgiu o Pacto de Varsóvia, abrangendo os países de modelo soviético, liderados pela URSS. Uma Europa segmentada, bipartida e,  obrigada a aceitar o fim de séculos de colonização, apresentou-se ainda mais frágil perante os dois colossos do momento – EUA e URSS.

Com o final da chamada guerra fria, a NATO manteve a sua existência, alargou o seu âmbito geográfico com a integração dos países do extinto Pacto de Varsóvia e, com intervenções militares nos Balcãs e, fora do âmbito europeu, na Líbia, no Sahel e no Afeganistão. O domínio militar e político dos EUA no cenário europeu representa também a garantia de um mercado cativo para a enorme produção norte-americana de armamento; mantém a influência política dos EUA a ocidente da fronteira russa e no Mediterrâneo; e, pretende ainda a contenção da penetração da influência comercial e política da China em todos os cantos do planeta (ver o mapa no final do texto) .

O gasto militar conjunto dos EUA, da França, da Grã-Bretanha e da Alemanha em 2020 foi de $ 942,7 mil milhões dos quais $ 778 mil milhões cabem aos EUA e, sabendo-se que a utilização de tais recursos está espalhada por várias partes do planeta e não apenas na Europa. O gasto militar da Rússia foi de $ 61.7 mil milhões, certamente não apenas centrados no cenário europeu. E a China, por seu turno, gastou $ 252 mil milhões, concentrados, no Extremo Oriente.

Outros factores desenham a menoridade europeia. O euro não conseguiu suplantar o dólar como moeda global, o renminbi chinês também não e, a libra é uma sombra do seu passado. Não é estranho que a Europa se mostre como uma potência exportadora (a despeito das suas gritantes desigualdades internas) mas com uma capacidade de intervenção reduzida no xadrez político global. Mantém-se, portanto, a situação de uma Europa como uma base norte-americana para o domínio estratégico do Atlântico Norte e do Mediterrâneo, contando ainda os EUA com a desestruturação política e económica do espaço que se estende do Líbano à Mesopotâmia e ao mar de Oman, englobando-se aí, obviamente o Golfo Pérsico[3]; e, sobretudo com o apoio da fiel entidade sionista. Em resumo, os EUA mantêm o seu controlo estratégico sobre a Europa; e esta evidencia a sua menoridade política focando-se nas minudências burocráticas, deixando ao longe a liderança global marcada em Lepanto (1571) e, consolidada no segundo cerco de Viena (1683).

Está em curso uma grande alteração vinda do Leste asiático, depois de uma primeira fase protagonizada pelo desempenho económico do Japão e da Coreia do Sul, países que continuam desde os finais da II Guerra sob protetorado dos EUA (como na Europa com a presença da NATO) embora não se dispensando de elevados custos militares; aqueles dois países em 2020 gastavam com as forças armadas pouco menos de $ 50000 M cada um.

Essa tara militarista que carateriza os EUA, com bases e frotas em todo o mundo, com o envolvimento em guerras e destruições assombrosas tornou os EUA totalmente distanciados da criação, em 2014 doAsian Infrastructure Investment Bank (AIIB); ou, em 2020, do Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP) que inclui países tutelados militarmente pelos EUA (Coreia do Sul e Japão) ou, sob a sua influência política (Austrália e Nova Zelândia) e no qual a Índia não quis participar… por enquanto, durante o consulado do fanático hinduísta, Modi. A História regista que o comércio, as trocas, aproximam os povos, promovem interações culturais e constituem um enorme instrumento de desenvolvimento económico, ao contrário do militarismo; como se pode observar no quadro seguinte.Percentagem do PIB mundial (em termos de paridade de poder de compra)

 198019902000201020152020  (est)
UE30.227.623.719.016.915.6
EUA21.922.120.716.815.814.7
China2.34.17.513.917.319.0

                                                     Fonte: FMI – Economic Outlook 2016

Em 2020, a pujança económica chinesa conduziu a que a UE tenha tornado a China como o seu primeiro parceiro comercial, remetendo os EUA para um segundo posto; a forma como ambos os países enfrentaram o surto do coronavírus releva a decadência dos EUA e a sua substituição pela China como principal economia mundial.

A relação que se estará a firmar na Euro-Ásia, envolve várias vertentes. Uma, é o reforço da Rússia como elo essencial de ligação entre a Ásia Oriental e a Europa; ligação essa que pode vir a ser praticada através do Ártico. Outra, é um desenvolvimento do abastecimento de gás russo à Alemanha, através do Báltico, perante o azedume dos EUA.

Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

Uma terceira vertente é o estabelecimento de vários troços da Rota da Seda, integrando os países da Ásia Central e os países muçulmanos do Próximo e do Médio Oriente, através de vias ferroviários de elevada velocidade, uma área em que a China tem um elevado desempenho, como se releva adiante. Segundo Keith Bradsher, do New York Times, em 2012, a China inaugurou uma linha férrea de alta velocidade que percorre 2298 km entre Pequim e Guangzou, com 35 paragens, em dez horas; transposta para a Europa, essa infraestrutura faria um percurso Londres-Belgrado em… oito horas. A distância acima referida equivale à distância entre New York e Key West, no sul da Florida; no entanto, um percurso ferroviário atual, um pouco menor (New York/Miami) é, hoje efetuado em… 30 horas de viagem. Tais desenvolvimentos na China como na Europa poderão oferecer percursos diversificados para as transações entre a Europa e o Oriente e incluir os países da referida ASEAN e da costa oriental de África.

Tendo em consideração a população da “Península Europeia” a integração euro-asiática (de momento, excluindo a Índia) vai para além dos 2500 M de pessoas ligadas por uma massa continental contínua e diversificada, culturalmente e quanto aos níveis de vida ou criação de riqueza.

Não é expectável uma guerra na Europa com uma dimensão global. A presença militar dos EUA foi justificada durante quase meio século com a existência da URSS e do Pacto de Varsóvia. A extinção destes últimos teria sido uma boa oportunidade para o enterro das alianças militares; no entanto, a NATO continua a existir, feliz por ter englobado os países balcânicos; e esperando, depois da inclusão dos países do extinto Comecon, cercar as fronteiras russas na Ucrânia e no Cáucaso.

Depois do final da Guerra Fria, os EUA, com ou sem a máscara NATO, promoveu guerras no território da antiga Jugoslávia, invadiu a Líbia e o Afeganistão, armou o ISIS para desestabilizar a Síria e o Iraque, com o reforço da ligação às monarquias do Golfo para isolar o Irão e, desenvolver o cancro sionista na exata medida do esmagamento do povo palestiniano. Os EUA continuam a estar presentes nos conflitos africanos, mantendo a sede do seu Africom localizada em Estugarda (!), numa situação reveladora do seu papel de entidade estranha aos povos do continente; e enquadrando, entre outros auxiliares, também em África, mercenários portugueses.

A aposta militarizada dos EUA é uma verdadeira demência, sobretudo quando se toma conta do grau de pobreza de grande parte da sua população e as suas deficiências quanto a infraestruturas, como atrás exemplificámos. A sua presença militar na Europa continua a utilizar e reproduzir o cenário da Guerra Fria, imputando à Rússia um poder económico e militar que esta não tem. A Rússia tem apenas 150 milhões de habitantes e o seu gasto militar é mais de doze vezes inferior ao dos EUA.

Onde parece haver bastante homogeneidade entre os membros da UE é na subserviência estratégica perante a NATO, com a aceitação da liderança dos EUA[4]. Na UE parece que se quer manter os EUA com um pé na Europa, para evitar uma imersão total da Península Europeia nas infraestruturas da Rota da Seda, cuja concretização manterá bem longe as esquadras norte-americanas no Índico e no Pacífico, tendencialmente obsoletas do ponto de vista estratégico, com o aumento da relevância de vias terrestres na ligação entre o Oriente, a Ásia Central e a Europa. A pujança económica da China, aliada à sua força demográfica (mais que dupla que a dos países da UE) promete secundarizar a Europa. Essa secundarização, no passado, mostrou-se bem evidente em Bretton Woods, com a segmentação da Europa em ocidente e oriente, com a presença de bases militares de potências ocupantes e, com sangrentas descolonizações (Argélia, Vietnam e colónias portuguesas).

Que papel caberá à Europa, a médio ou longo prazo?

·        Potência económica regional sem um papel relevante na política internacional inserida, sem protagonismo, no confronto estratégico China/EUA?

·        Quanto à China, a Europa procurará uma relação de vantagens económicas mútuas integrando-se nos corredores logísticos previstos e para cuja construção a maioria dos países europeus se ligou (o AIIB acima referido);

·        Manutenção das atuais e gritantes desigualdades regionais no seio da UE susceptíveis de posições políticas desviantes, como o que a GB decidiu, com o seu Brexit? E potenciadores de diversificadas clivagens, facilitadas pela grande diversidade de culturas e enquadramentos históricos recentes?

·        Uma preferência como aliado subalterno dos EUA cuja decadência relativa é evidente, como se observou na gestão da pandemia, nas enormes bolsas de pobreza, pelos problemas políticos e sociais resultantes de um relevo ancestral dado à “raça”? Um país que gasta em armamento tanto como os restantes e que força os seus aliados a comprar o necessário à manutenção do seu enorme e influente complexo militar-industrial?


Fonte aqui

Nem o Papa comove os empedernidos dirigentes europeus

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 11/05/2021)

Diz o Papa Francisco que há várias “variantes do vírus”: a primeira será o “nacionalismo fechado, que impede, por exemplo, uma internacionalização das vacinas”, vem depois a “outra variante, quando colocamos as leis do mercado ou da propriedade intelectual acima das leis do amor, da saúde e da humanidade”, e ainda uma terceira, “quando criamos e promovemos uma economia doentia, que permite que uns poucos muito ricos possuam mais do que todo o resto da humanidade, e que os modelos de produção e consumo destruam o planeta, nossa casa comum”.

Saiba mais aqui

Ao ouvir estas palavras, percebe-se a razão para os frémitos de indignação que sacodem as administrações de algumas das principais farmacêuticas e tantos governantes europeus, sentiram-se ameaçados na carteira. Por isso, a recusa à proposta da Administração Biden para o levantamento das patentes tardou poucos dias e foi categórica, como se viu na Cimeira do Porto, e o pedido do Papa foi ignorado: num ápice, Merkel, mesmo à distância, alinhou as declarações de Von der Leyen e de António Costa, calou Macron e deixou Sanchez a falar sozinho.

A ministra portuguesa já tinha antecipado o argumento e, em fevereiro, afirmava que o seu governo recusa a quebra de patentes, mesmo considerando que esse conhecimento é “um bem público universal”, mas que deve continuar a ser gerido pelos gigantes privados. Em março, voltou a garantir que a medida proposta por duas das suas antecessoras no ministério, junto com o ex-bastonário da Ordem dos Farmacêuticos e ex-diretor do Infarmed, “não resolve a capacidade industrial”. Esta convicção foi abalada pela surpresa da nova posição do governo norte-americano, que forçou as autoridades portuguesas a declarar que a proposta já merecia atenção, até serem obedientemente reconduzidas ao redil de Merkel. Não foi caso único. Macron, que a 6 de maio dizia entusiasticamente que era “completamente a favor da abertura da propriedade intelectual”, passou a repetir que isso nem importa. E a União Europeia fechou a porta a um acordo, mantendo o bloqueio na Organização Mundial do Comércio (OMC), que impede que a África do Sul e a Índia possam ampliar a sua produção, mas também recusando o pedido de empresas de outros países, do Canadá ao Bangladesh.

Esta fronda em nome da Big Pharma garante que é irresponsável reduzir os lucros das farmacêuticas, porque isso diminui o seu incentivo para investigação científica sobre novas estirpes. O termo “irresponsabilidade” tem aqui uma conotação curiosa. Talvez alguém se lembre que uma das maiores empresas mundiais, a Gilead, tentou convencer o mundo a usar o Remdesivir, um medicamento para a ébola, como solução para a pandemia, ou que uma turba de governantes lançou a cloroquina, sem que os seus produtores avisassem que era uma fraude. Seriam atos de dedicada responsabilidade, como se entende. Por outro lado, quem pede o levantamento das patentes não são só dirigentes políticos (Biden) ou religiosos (o Papa Francisco). Antes de todos, foi a Organização Mundial de Saúde e António Guterres, secretário-geral da ONU, que pediram a partilha voluntária do conhecimento para que a vacinação mundial não se arraste até 2024. Se querem usar o termo “irresponsável”, apontem-no para a OMS e para a ONU e deixem o Papa em paz.

Acresce que a ameaça de parar a investigação se os lucros não se multiplicarem não é para levar a sério, dado que a investigação de base nem depende da Big Pharma. Todas estas empresas dependem da ciência produzida em universidades e laboratórios nacionais. A vacina da Moderna resulta de uma parceria com o National Institute of Health dos EUA, aproveitando a sua investigação sobre a proteína spike, que permite o ataque ao coronavírus. Foi o NIH que realizou o primeiro ensaio clínico desta vacina. A BioNTech, como a Moderna, usa as descobertas da cientista húngara Katalin Karikó, que trabalhava na Universidade da Pensilvânia (e é hoje vice-presidente da empresa). A vacina da AstraZeneca depende do trabalho de Sarah Gilbert e do Jenner Institute da Universidade de Oxford, que aplicou os resultados do seu combate a outro coronavírus, o MERS.

Além disso, o levantamento do direito de patentes, provisório que seja, já foi testado no passado. Quando Nelson Mandela enfrentou a Administração norte-americana de Clinton para conseguir produzir genéricos dos antirretrovirais para o HIV, chocou com a barreira dos interesses económicos e só quando Al Gore, o vice-presidente, cedeu, é que foi possível disponibilizar o tratamento na África do Sul. O que se verificou, e não podia ser de outro modo, foi que, quanto mais difundido está o conhecimento essencial de um medicamento, maior é a capacidade de inovação incremental.

Ao contrário do que hoje afirmam as grandes farmacêuticas, a partilha do conhecimento entre mais instituições de investigação de ponta multiplica o êxito científico. Assim, no contexto desse conflito, foram definidos novos procedimentos legais para suspender os direitos de propriedade intelectual no caso de medicamentos essenciais, através de licenças compulsórias. A OMC aceitou essa regra no acordo sobre Trips (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights) e está na letra da lei. Foi nesse sentido que, em 20 de abril do ano passado, uma declaração conjunta de Azevedo, então diretor da OMC, e de Ghebreyesum, diretor da OMS, pediu a “partilha dos direitos de propriedade intelectual”. Bem sabiam que a proposta estava bloqueada pelos EUA e pela UE. Agora só a UE a impede.

Antes de sugerir esta nova posição para um acordo mundial sobre levantamento das patentes, Biden já tinha forçado um acordo entre a Johnson & Johnson e a maior farmacêutica mundial, a Merck, para que esta passasse a produzir em larga escala a vacina da primeira. A Moderna, entretanto, anunciou que não processará judicialmente quem reproduzir a sua vacina, embora alguns dos procedimentos associados ao uso da produção de vacinas na base do RNA mensageiro (mRNA) estejam patenteados por outras instituições. Deste modo, a ameaça de suspensão das patentes pode pelo menos ter um efeito imediato, obrigando as empresas a licenciarem a produção e estendendo o sistema produtivo para usar a capacidade tecnológica disponível, e é muita. Se, como tudo leva a crer, a produção das vacinas se vier a basear predominantemente na tecnologia do mRNA, que usa recursos mais facilmente acessíveis, será possível cobrir a população mundial.

Que o governo alemão instrua a Europa a recusar o acesso universal ao conhecimento sobre as vacinas tem uma mesquinha justificação: Merkel quer criar um campeão industrial nacional nesta área, a BioNtech, que está associada à Pfizer. Que a Pfizer, que anunciou para 2021 sete mil milhões de dólares em lucros com a vacina, ou outras farmacêuticas não aplaudam o aumento da produção mundial, também se compreende. Mas que os líderes europeus aceitem estas chantagens diz muito sobre a mentira que é a prometida cooperação na saúde e a solidariedade contra a doença. Tem razão o Papa Francisco, estes vírus já contaminaram muito fundo a nossa vida social, é “uma economia doentia” em que a lei do mercado está acima do respeito pela humanidade.


Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

A propósito dos movimentos pela “verdade” que negam a pandemia

(Carlos Marques, 28/03/2021)

Quem são de facto os negacionistas? Sim, há uns quantos nas manifestações anti-confinamento. Mas esses não aleijam mais ninguém a não ser a si próprios e à sua reputação. A maior parte dos que se manifestam, estão simplesmente fartos e revoltados, e têm muitas razões para tal. Senão vejamos, temos primeiro o “ai ai ai que a pandemia é tão má”:

– mas depois recusam suspender/quebrar patentes das vacinas made in UE/EUA, desperdiçando assim a capacidade de produção instalada. Exemplo disso é que um dos maiores produtores de vacinas, a Índia, só tem 4% da população vacinada;

– recusam também acelerar a burocracia da EMA (Agência Europeia do Medicamento) para termos as vacinas da Rússia e da China, que são tão boas ou melhores que as outras. Exemplo disso é que a Sérvia (fora da UE) já vacinou 34% da população enquanto a média da UE ainda está nos 15%.

– ora das duas uma, ou a pandemia é mesmo má e então as patentes têm de ser suspensas e todas as vacinas aproveitadas, ou então, se se recusam a quebrar patentes e recusam vacinas de fora do lobby farmacêutico EUA/UE, então andam a gozar connosco!

Depois do “ai ai ai”, vem o “ui ui ui que os que protestam são todos negacionistas”:

– mas quem protesta, está a ser abusado por um Estado de Emergência excessivo, que origina multas de 200 € a cidadãos que estão a comer uma sandes no carro, sozinhos, após saírem do trabalho. Isto no mesmo país que permite tudo aos ladrões (capitalistas e políticos por si corrompidos) para fazerem negociatas com barragens e fugirem aos impostos de mil e uma maneiras;

– recusam também um pingo de decência na execução orçamental, cativando tudo o que podem, desde o investimento até à fidelização de médicos no SNS (perderam-se quase 1000 profissionais experientes até Dezembro, e só agora se remenda a coisa com cerca de 2000 inexperientes acabados de formar). Mas fazem um teatro na hora de se despedirem dos médicos que vieram da Alemanha, a dizer “se precisarem nós (médicos portugueses) estamos cá”… é mesmo sem noção, não é?

– já para não falar da bazuca europeia, que nem é bazuca mas sim fisga, e nem é sequer real, pois até agora chegaram ZERO €uros. O Tribunal Constitucional da Alemanha já vetou, e bem (mas isso é outro assunto), a emissão de dívida conjunta, portanto parte da fisga nunca virá. Outra parte teremos de recusar porque seria mais dívida a juntar à que já temos. E a parte que sobra divide-se em impostos cobrados por não eleitos (isto nem na Venezuela…) ou transferências de outras partes do orçamento comunitário que já existia antes da crise. Mais operações plásticas que isto para disfarçar a decadência, só mesmo a Lili Caneças…

– ora das duas uma, ou a crise é real e é preciso todos os esforços para ajudar toda a gente, em vez de andar a ameaçar que se vai ao Constitucional para impedir… APOIOS SOCIAIS a quem está a passar fome, ou então andam a gozar connosco!

Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

Que não fiquem dúvidas, a pandemia é real e a crise económica é real. Se há aqui alguém que é negacionista, são os corrompidos pelo lobby das farmacêuticas (governo Português incluído), as “elites” sem noção sempre alinhadas com Washington até mesmo quando esse alinhamento significa recusar vacinas de comprovada eficácia, e os Europeístas fanáticos (aka Extremo-Centro) que em nome do €uro não se importam de condenar milhões à miséria. Estes sim, são os negacionistas, do pior tipo de negacionismo que existe: apesar de estarem muito bem informados, negam a realidade em nome dos seus próprios interesses, lixe-se quem se lixar!

Já em 2011 tinha sido assim, mas nessa altura foi devido a uma pandemia do €urovírus, que provocou uma doença chamada Bancovid11. E também aí se condenou tanta gente à miséria e à fome, alguns mais desesperados até mesmo ao suicídio. E tudo em nome, mais uma vez, do negacionismo que realmente aleija: o das “elites” que ainda não perceberam que Portugal só chamou a troika porque não tem moeda própria, e dos governantes que mais depressa se indignam contra um grevista, do que contra um ladrão que gere um banco (passe a redundância…) ou um vigarista que fez uma negociata aquando da porta-giratória criada com a privatização disto e a concessão daquilo.

Enquanto este país não se vacinar (informar) contra esse vírus (Extremo-Centro) e criar imunidade (sair do €uro) para resistir à doença (governos PS e/ou Direita), este país continuará doente, entrará nos cuidados intensivos, e morrerá. Segundo parece, a data para sermos um Estado falhado é por volta de 2050, quando tivermos 3 milhões de reformados, e só 2,5 milhões a trabalhar para matar a fome, e só meio milhão de jovens (isto na previsão otimista…).

E os outros 4 milhões de habitantes? Perderam-se! Ao longo destas décadas, essas gerações ou emigraram para um país decente com direitos laborais, moeda própria, Estado onde é preciso, e bons salários, ou ficaram presos por cá mas desistiram de ter filhos. Não é uma pandemia, é uma pirâmide etária completamente invertida, à qual também se chama de peste grisalha! Custa a aceitar a definição? Então não matem o mensageiro, “matem” antes quem está a colocar Portugal nesse caminho! Os negacionistas das “elites” que nos DESgovernam desde 1992 (desde a “lógica” NeoLiberal e anti-soberana de Maastricht). A resposta completamente falhada a esta crise é a prova do que digo.