Sun Tsu entra num bar em Kherson

(Pepe Escobar, in Strategic Culture, 10/11/2022, Trad. Estátua de Sal)

Com ou sem acordo, o General Inverno está a chegar – pronto para brindar o seu convidado de honra, Sun Tzu, com tantos pratos novos à mesa de jantar.


O anúncio da retirada de Kherson pode assinalar um dos dias mais sombrios da Federação Russa, desde 1991.

Deixar a margem direita do Dnieper para estabelecer uma linha de defesa na margem esquerda pode fazer todo o sentido do ponto de vista militar. O próprio General Armageddon, desde o seu primeiro dia de trabalho, tinha insinuado que isso poderia vir a ser inevitável.

Tal como está no tabuleiro de xadrez, Kherson está no lado “errado” do Dnieper. Todos os residentes de Kherson Oblast – 115.000 pessoas no total – que queriam ser deslocados para latitudes mais seguras, foram evacuados da margem direita.

O General Armageddon sabia que tal era inevitável por várias razões:

nenhuma mobilização, após os planos iniciais da SMO, está no terreno; destruição de pontes estratégicas sobre o Dnieper – devido a um metódico ataque ucraniano, durante três meses, a pontes, ferries, pontões e cais; nenhuma segunda ponte a norte de Kherson ou a oeste (em direcção a Odessa ou Nikolaev) para conduzir uma ofensiva.

E depois, a razão mais importante: a quantidade enorme de armamento, associado à condução de facto da guerra pela NATO, traduziu-se numa enorme superioridade ocidental em reconhecimento, comunicações e comando e controlo.

No final, a retirada de Kherson pode ser uma perda táctica relativamente menor. No entanto, politicamente, é uma catástrofe não mitigada, um constrangimento devastador.

Kherson é uma cidade russa. Os russos perderam – mesmo que temporariamente – a capital de um território totalmente novo ligado à Federação. A opinião pública russa terá uma tremenda dificuldade em absorver a notícia.

A lista de aspetos negativos é considerável. As forças de Kiev asseguram o seu flanco e podem libertar forças para ir contra o Donbass. A artilharia do Ocidente coletivo recebe um grande impulso. Os HIMARS podem agora, potencialmente, atacar alvos na Crimeia.

A visão é horrenda. A imagem da Rússia no Sul Global é gravemente manchada; afinal de contas, este movimento equivale a abandonar o território russo – enquanto os crimes de guerra em série ucranianos desaparecem instantaneamente da grande “narrativa”.

No mínimo, os russos há muito que deveriam ter reforçado a sua grande vantagem estratégica de cabeça-de-ponte no lado ocidental do Dnieper para que se pudessem aguentar – mesmo com uma inundação amplamente prevista da barragem de Kakhovka. No entanto, os russos também ignoraram a ameaça de bombardeamento da barragem durante meses. Isso significa um planeamento muito mau.

Agora, as forças russas terão de conquistar Kherson de novo. E em paralelo estabilizar as linhas da frente; traçar fronteiras definitivas; e depois esforçar-se por “desmilitarizar” as ofensivas ucranianas para sempre, quer através de negociações ou de bombardeamentos.

É bastante revelador que muita gente próxima do sistema de informações da NATO, desde analistas a generais reformados, desconfie da jogada do General Armageddon: vêem-na como uma elaborada armadilha, ou como um analista militar francês a designou, “uma enorme operação de engano”. O clássico Sun Tzu. E foi isso que foi devidamente incorporado na mnarrativa oficial ucraniana.

Assim, para citar Twin Peaks, esse clássico subversivo da cultura pop americana, “as corujas não são o que parecem”. Se for esse o caso, o General Armageddon estaria a procurar esticar excessivamente as linhas de abastecimento ucranianas; seduzi-las para a exposição; e depois envolver-se num tiroteio maciço.

Portanto, ou é Sun Tzu; ou um acordo está a cozinhar-se, coincidindo com o G20 na próxima semana em Bali.

A arte do acordo

Bem, algum tipo de acordo parece ter sido feito entre Jake Sullivan e Patrushev.

Ninguém conhece realmente os detalhes, mesmo aqueles com acesso a informadores extravagantes da 5ª Coluna em Kiev. Mas sim – o acordo parece incluir Kherson. A Rússia manteria o Donbass mas não avançaria em direção a Kharkov e Odessa. E a expansão da NATO seria definitivamente congelada. Um acordo minimalista.

Isso explicaria porque Patrushev pôde embarcar num avião para Teerão em simultâneo com o anúncio da retirada de Kherson, e tomar conta, bastante descontraído, dos negócios de parceria estratégica muito importantes com Ali Shamkhani, Secretário do Supremo Conselho de Segurança Nacional do Irão.

O acordo pode também ter sido o “segredo” contido no anúncio de Maria Zakharova de que “estamos prontos para negociações”.

Os russos deixarão a margem do rio Dnieper numa retirada militar gerida. Isso não seria possível sem negociações militares havidas entre militares de ambas as partes.

Estas negociações do canal de retaguarda estão a decorrer há semanas. O intermediário é a Arábia Saudita. O objetivo dos EUA, a curto prazo, seria uma espécie de acordo de Minsk 3 – incluindo também Istambul/Riyadh.

Ninguém está a prestar a mínima atenção ao palhaço da cocaína Zelensky. Sullivan foi a Kiev para o colocar perante uma espécie de facto consumado.

O Dnieper será – em tese – a linha de frente estabelecida e negociada.

Kiev teria de engolir uma linha de contacto congelada em Zaporizhye, Donetsk e Lugansk – com Kiev a receber eletricidade de Zaporozhye, e deixando assim de bombardear as suas infraestruturas.

Os EUA fariam um empréstimo de US$ 50 biliões mais parte dos bens russos confiscados – ou seja, roubados – para “reconstruir” a Ucrânia. Kiev receberia modernos sistemas de defesa aérea.

Não há dúvida de que Moscou não concordará com nenhuma dessas disposições.

Observe que tudo isso coincide com o resultado das eleições nos EUA – onde os democratas não perderam exatamente.

Enquanto isso, a Rússia acumula cada vez mais ganhos na batalha por Bakhmut.

Não há ilusões em Moscovo de que este cripto-Minsk 3 viesse a ser respeitado pelo Império “não capaz de acordo”.

Jake Sullivan é um advogado de 45 anos com nenhuma experiência estratégica e “experiência” apenas de fazer campanha para Hillary Clinton. Patrushev pode comê-lo no café da manhã, almoço, jantar e lanche da tarde ou da noite – e vagamente “concordar” com qualquer coisa.

Mas, por que os americanos estão desesperados para oferecer um acordo? Porque eles podem estar sentindo que o próximo movimento russo com a chegada do General Inverno deve ser capaz de vencer conclusivamente a guerra nos termos de Moscovo. Isso incluiria fechar a fronteira polaca por meio de um longo movimento em flecha da Bielorrússia para baixo. Com as linhas de fornecimento de armas cortadas, o destino de Kiev estará traçado.

Com ou sem acordo, o General Inverno está a chegar – pronto para brindar o seu convidado de honra, Sun Tzu, com tantos pratos novos à mesa de jantar.


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O ministro clandestino que quer um não-acordo não-escrito

(Francisco Louçã, in Expresso, 11/08/2018)

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Um não-acordo é navegar à vista e chamar-lhe acordo é enganar. Um acordo sem acordo é a forma de o ministro clandestino se manifestar contra a ‘geringonça’


Já foram duas as vezes e prometem-se mais episódios da telenovela. Um tal ministro, não um qualquer, ele é do núcleo restrito da coordenação do Governo, penso que são só cinco nessa faina, tem vindo sorrateiramente a público comentar o presente e explicar o futuro. Encontrou um canal privilegiado, como se diz na gíria, e usa-o para chistes, apreciações e até anunciações do que o primeiro-ministro pensaria fazer. Foi dele a esplêndida conclusão de que António Costa, se vencedor das próximas eleições, fará um acordo com as esquerdas, mas nunca com papel assinado. O assunto merece atenção, teve mesmo direito a manchete do jornal do tal canal. Assim, um ministro anónimo anuncia ao país como vai o seu partido resolver as dificuldades, com bordoada neste e afagos naquele.

A VANTAGEM DO BIOMBO

Pode interrogar-se alguém que leia essas florentinas intrigas sobre a razão do anonimato. O ministro, o canal diz-nos solenemente que é um ministro, está clandestino por alma de quem? Recorre ao anonimato porque tem medo do primeiro, mas antecipa oficiosamente as suas palavras? Será tudo mentira? Existirá o ministro ou será simplesmente uma forma de o próprio canal se citar a si próprio e assim explicar urbi et orbi o que entende ser mais conveniente para o país? Disso não pode haver certeza. O recurso ao anonimato, que neste caso contraria as regras da deontologia jornalística por não ter qualquer justificação, é simplesmente uma forma de fazer política malandreca, atirando a pedra e escondendo a mão. Quem colabora nesta farsa de um debate político escondido atrás de um biombo sabe que está a envenenar a democracia e a estimular uma agressividade gratuita.

E é que o ministro clandestino usa e abusa dessa perfídia. Fá-lo tratando o PCP com uma condescendência viperina, como se fosse um partido facilmente manipulável, indicando mesmo um dos seus deputados como um parceiro de Governo que seria absorvível sem dificuldade. Para quem conhece o PCP, nada de pior lhe pode ser atirado do que estas palavras melosas sobre a adaptabilidade e cedência do partido. Ao Bloco, o ministro clandestino reserva fel e suponho que vai servir novas doses em breve. Mas nos dois casos a sua estratégia resume-se a isto: destruir a confiança, minar as conversações, impedir as comunicações, exibir estados de alma, garantir falsa fé. O ministro clandestino é um bombista.

Depois da falsa partida de Santos Silva, que veio exigir aos partidos de esquerda que se convertessem ao santossilvismo, o nosso ministro clandestino pode pensar como Santos Silva e até falar como Santos Silva, mas anónimo será sempre.

O NÃO-ACORDO NÃO ESCRITO

Resta ainda a fantasia do acordo-sem-acordo-escrito. Nisso aproveitando as palavras de Jerónimo de Sousa, repetidas com ingenuidade ou engenho por João Oliveira, o ministro clandestino atreve-se mesmo a afirmar — como o anonimato facilita a fanfarra! — que o primeiro-ministro-ele-próprio estaria disposto a essa modalidade curiosa. Só que as palavras nem sequer enganam e cada um fala de coisa diversa: o PCP refere-se a não haver acordo escrito, ou seja, a não haver acordo e ficar tudo em aberto; e o tal ministro a haver acordo não escrito, ou seja, a haver um acordo secreto. Porque, entendamo-nos: se não fica escrito ou não é acordo ou é um acordo secreto. E isso não convém nada à esquerda. Se secreto, é pífio; se nada, nada é e então fingir é o pior remédio.

Imagine por um instante quem lê estas linhas que não tinha havido acordo escrito em 2015. Acha mesmo que o Governo tinha concretizado 600 euros de salário mínimo, ou que tinha recuado no bónus patronal no caso da TSU? O acordo escrito foi o que garantiu os mínimos que foram cumpridos. Conversa fiada em vez do acordo seria desacordo sempre que fosse tempo de decisão.

Como toda a gente percebeu, este cenário só é falado porque um acordo em 2019 é muito mais difícil do que em 2015. Primeiro, a razão de afastar a direita já não vale, está afastada. Segundo e mais importante, o acordo depende de políticas estruturais nas contas públicas e por exemplo no SNS, mas o PS está a dar sinais de nem querer ouvir falar disso. Por isso, só haverá acordo se for escrito. Um não-acordo é navegar à vista e chamar-lhe acordo seria enganar toda a gente. Por isso, a proposta de um acordo sem acordo é a forma do ministro clandestino operacionalizar a sua oposição à ‘geringonça’, que vem de 2015 e sobretudo se preocupa com 2019.


N.B. São José Almeida despejou-me nutridos insultos no “Público” do sábado passado, no tom chocarreiro que faz o seu estilo. Confesso que já estava preocupado, havia meses que não me atacava (da última vez foi por causa do “compadrio mal disfarçado” com a corrupção, pela minha oposição ao golpe de Temer e Bolsonaro contra a presidente eleita do Brasil). Temia que me esquecesse ou, pior, que me ignorasse. Felizmente, não é o caso. Desejo-lhe por isso as melhores felicidades, visto que perseguir ódios de estimação é carreira em algum jornalismo.

Moralices

Um coro de personalidades de todos os quadrantes sentenciou: o defeito da esquerda é o “discurso moralista”. Sentença unânime e sem apelo nem agravo. Do jornal de referência ao pasquim, toda a gente à uma, a culpa é do moralismo. Até ficava mal a alguém opinar sobre o assunto sem lavrar a sua concordância solene com tal finalmente.

Pois peço autorização para me juntar, se não ao relambório, pelo menos à premissa da conclusão. De facto, tenho por certo e até por definitivo que nenhuma política se pode justificar por uma moral. A razão é suficientemente evidente para dispensar muita argumentação: se a política se fundamenta numa moral, então não permite aprendizagem pois é sempre definitiva, não tolera negociação pois é sempre conclusiva, nem aceita diferenças pois é por definição ultimatista. Um moral só se reconhece a si própria. Uma política que se pretende expressão da moral é por isso totalitária por construção. É a mais detestável das políticas. A política como moral é a Inquisição, é Khomeini, é Netanyahu, é Kim Jong-un, é Trump. Outra tentativa de estatuir a origem sagrada de uma política, como a “superioridade moral dos comunistas”, naufragou na abjeção estalinista e dela só restam as seitas.

Não, uma política democrática num mundo de diversidade e conflitos não pode ter por fundamento uma moral. Alexandra Lucas Coelho tem toda a razão a esse respeito num texto que escreveu recentemente. Esse é o argumento que defendo desde há mais de 30 anos, escrevi-o pela primeira vez n’“O Jornal”, suponho que em 1985, e repeti-o amiúde. Outra coisa é que cada pessoa, em particular quem exerce cargos públicos, se obrigue à sua própria ética e, se os seus atos só são julgados pela lei, a coerência dessa ética não deixa de ser parte do escrutínio social. No entanto, se essa ética te obriga, não te justifica; se também sugere o que deves fazer, não é por isso que exclui os outros. Aceitarão então os leitores que nisto encontre razões para recusar moralices de políticas e para só pedir clareza ética na política.

O meu problema é que aqui chegado tenho dificuldade em entender o tal consenso dos opinadores sobre o “discurso moralista”. É que não estão a discutir a pretensão moral de uma política, eles que tantas vezes são os mais moralistas dos fiéis, estão a condenar o “discurso”. E então qual discurso? Quais são as palavras proibidas? Atrevo-me a adivinhar que nem um destes sentenciadores sairá à liça para fazer listagem desses pecados discursivos. Seria difícil e provavelmente revelador: tal diria que o “discurso moralista” foi condenar os estratagemas do BES Caimão para esconder o dinheiro de Pinochet, outro diria que “discurso moralista” foi criticar o governante do CDS em cujo turno desapareceram dez mil milhões de euros da lista de transferências para offshores, outro ainda que esse “discurso moralista” é condenar a publicação seletiva de escutas telefónicas em processos judiciais. Não, estes não são bons exemplos? Então digam-me por favor quais são os que contam e qual é esse “discurso” que é preciso erradicar. Tenho alguma curiosidade sobre o assunto e a vaga suspeita de que nenhum dos moralizadores contra o “discurso moralista” se chegará à frente para dizer do que está a falar porque, na verdade, uma boa publicidade não chega a ser uma razoável razão.

Os acordos para a (in)Justiça

(Joseph Praetorius, in Facebook, 26/01/2018)

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Joseph Praetorius

Estive a ver o documento divulgado pela ASJP dos “acordos para o sistema de justiça” concluídos entre a ordem dos advogados (!) a coisa dos agentes de execução, o sindicato dos funcionários judiciais e o dos juízes, mais a gente do Ventinhas.

É inenarrável, aquilo.

É a Economia concebida pelo sucateiro, a Justiça pelo polícia, a execução pelo cobrador e o apoio judiciário pelo funcionário asilar.

É também, evidentemente, uma reivindicação de meios, meios e meios, sem que ninguém reivindique a presença de algumas cabeças capazes de raciocinar, de alguma boa vontade capaz de operar, de alguma normalidade capaz de eficácia.

Propõem, por exemplo, a caça à sociedade comercial infirme para lhe precipitarem a insolvência, a perseguição (penal) do administrador que aposte na recuperação, o levantamento informativo, policial e geral do património do devedor.

Isto numa terra onde se nasce devedor, onde o devedor é animalizado, onde o crédito substitui usurariamente o pagamento devido ao trabalho, como uma exploração mais – que fabrica devedores – e onde o desempregado é alvo de medidas de segurança como a apresentação periódica, só exigível aos presumidos delinquentes (a presunção de inocência é figura de retórica), para além, evidentemente, de ser, como devedor, livremente saqueável em execução e atirável para o estatuto de insolvente a qualquer momento…

Fiquei sem dúvidas quanto ao facto indesmentível da grosseria do sistema ser estritamente imputável à gente grosseira que nele se aboletou e em roda livre opera, constituindo um perigo gravíssimo para a população de quem está completamente dissociada e à qual nenhum amor a vincula.

É a vacuidade moral na sua mais aterradora expressão. Mas a vacuidade moral caracteriza o lumpen. De tais cabeçorras e tais guantes só sai e só pode sair a desgraça. É o fim da colmeia dos funcionalismos. Desaparecida a abelha mestra, algumas obreiras alteraram a alimentação e o abdómen chegando em alguns casos a pôr ovos. Mas desses ovos só saem os estéreis zangãos.

A assinatura daquilo por Guilherme Figueiredo em nome da Ordem dos Advogados, sem que aos advogados tenha sido dada qualquer hipótese de qualquer discussão, deixa-me sem fala.

As pessoas normais não estão a fazer nada entre tal gente.

O apelo a tais fenómenos para que produzissem tal coisa, vindo de Marcello II, traduz obviamente a incapacidade radical do inteiro leque partidário para dirigir, conceber, exigir ou decretar qualquer solução.

O Direito foi expulso do sistema e não tem porta-vozes audíveis.

O silêncio da esquerda e da direita diante de tal coisa, significa, evidentemente, que não há esquerda nem direita operantes.

Meus caros amigos, lamento informar-vos que só resta a ruptura radical em nome do Direito. Isto é, resta a Revolução e a sua direcção será revelada pela crise, que aqui nenhuma estrutura existe, nem há alguém que se conheça capaz de assumir tal tarefa.

Vão-se habituando à ideia. É o que há de mais certo.