Propaganda e histeria no ocidente

(André Vitchek, in Resistir, 08/06/2020)

Se não fosse tão trágico, seria ridículo: os brigões políticos na América do Norte e na Europa furiosos, cuspindo injúrias e revirando os olhos, apontam os dedos em todas as direções, gritando incoerentemente: “China!”, “Rússia!”, “Venezuela e Cuba!”, “Irão!”; “Tu, tu, e TU!”.


A China e a Rússia estão silenciosamente a construir um novo mundo, que inclui infraestruturas totalmente novas, fábricas e bairros inteiros para o povo. Hospitais estão a ser construídos, assim como universidades, parques, salas de concerto e redes de transportes públicos. Ambos os países estão a fazer tudo isto de maneira rápida, silenciosa e com grande determinação. Apesar das sanções e embargos, eles nunca gritam de volta às bocas espumando raivosas dos gurus ocidentais da lavagem cerebral.

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A diferença entre o Ocidente e os dois poderosos aliados no Oriente é enorme. De facto, não é uma diferença, mas um contraste total.
Não é que a China e a Rússia sejam países perfeitos. Não. A perfeição é deprimente e é dirigida por fanáticos religiosos (graças a Deus sem sucesso) e por revistas de moda. Eu nem sei o que realmente significa, filosoficamente – perfeição.


O que sei é que na China e na Rússia as pessoas vêm primeiro. Os seus padrões de vida estão no centro de quase todos os esforços das economias planeadas. Pequim e Moscovo e a maioria das suas burocracias existem para que as pessoas vivam mais e melhor, e tenham vidas mais significativas. As cidades e vilas são projetadas para que os cidadãos se tornem mais educados e saudáveis, enquanto desfrutam de uma vida cultural mais profunda.

Visitando a Rússia, de Vladivostok a Kaliningrado, e também a China, de Guangzhou a Urumqi, isto é claramente visível, inegável.

Os grandes media e os governos ocidentais pararam de fazer as perguntas básicas e impediram que outros as fizessem publicamente. Perguntas como: “O que realmente queremos da vida?” “Do que temos medo?” “Em que tipo de sociedade queremos viver?”


A sério: quer realmente morar num país onde você e sua família poderiam conduzir os mais recentes Maserati ou Lamborghini, numa estrada cercada por favelas infestadas? Desejaria fazer compras em centros comerciais com casas de banho decoradas a mármore e torneiras douradas, enquanto, apenas a 100 metros, as pessoas morrem sem saneamento básico e cuidados médicos decentes?


Desejaria viver numa bolha ou no seu exíguo país, que está indo muito bem, simplesmente porque colonizava territórios enormes e continua indiretamente a colonizá-los, neste exato momento? Ou num país que se orgulha de nunca ter colonizado ninguém diretamente, mas que “investe” no expansionismo ocidental desde há décadas e séculos. Note-se que desta vez não estou a nomear nomes, nem a apontar dedos. Deixo o leitor preencher os espaços em branco.

Podem chamar-me ingénuo, mas sempre pensei que a maioria das pessoas quer viver vidas seguras, plenas de conhecimentos e cultura, sem medo de adoecer, sem ondas de crimes que proliferam com a miséria, sem a preocupação de como vão pagar o telhado acima de suas cabeças, amanhã ou daqui a um mês, ou mesmo daqui a dez anos.

Quantas pessoas no Ocidente estão assustadas, petrificadas? Estou a falar de medos desnecessários; medos que poderiam ser facilmente eliminados? Quantos estão deprimidos, até desesperados; que se tornam suicidas com pílulas venenosas que lhes são dadas, para que possam manter-se dia a dia?

E quantas pessoas nas neocolónias estão a viver na absoluta miséria; em África e no Médio Oriente, na América Latina, Ásia e Oceânia?

Tudo isso é necessário? Não é tudo totalmente absurdo? Os grandes media e as universidades no Ocidente e nas suas colónias estão ao serviço de um regime, que consiste principalmente nas grandes empresas e nas suas fachadas de relações públicas – os chamados governos eleitos.

O funcionamento do sistema político ocidental quase nunca é abordado. De novo, não são feitas grandes perguntas. Incluindo uma das mais essenciais: “Por quê a maioria das pessoas na América do Norte e Europa que desprezam o seu próprio sistema, continua elegendo os mesmos indivíduos e partidos que dizem detestar? Por que continuam a ser enganados no tecer dos próprios laços que os prendem? “

Será isto realmente, liberdade e democracia?

Na Rússia e na China, as pessoas estão muito mais satisfeitas com os sistemas que possuem.

As pessoas também estão, quase sempre, muito mais satisfeitas com os sistemas revolucionários pelos quais lutaram e venceram, em países como Venezuela e Cuba, Irão e Bolívia antes que o Ocidente decidisse afastá-los, brutal e sem cerimonia. Obviamente, se sanções terríveis forem impostas, ou mesmo embargos; se planos de assassinato e ataques terroristas são desencadeados por mercenários ocidentais e seus aliados, a vida não pode ser feliz, equilibrada e agradável. Basta olhar para a Síria. Mas será culpa do socialismo ou do comunismo, culpa de sistemas que são diferentes?

Francamente: nenhum verdadeiro sistema comunista ou socialista teve a hipótese de florescer, ou se desenvolver, ininterruptamente. Eles sempre foram atacados, brutalizados e despedaçados pelos interesses ocidentais e seus exércitos, de aliados ou mercenários

E assim foi porque todos os sistemas comunistas lutaram com determinação contra o colonialismo, o imperialismo e a pilhagem.

Seria interessante ver o que aconteceria, se não tivessem existido intervenções, campanhas de difamação, embargos e guerra. Talvez a maioria dos países comunistas florescesse?

E, no entanto, apesar de todo esse horror imposto pelo Ocidente, a China e a Rússia estão florescendo.

A América do Norte e a Europa estão em pânico. Eles estão literalmente tremendo. Suas elites estão totalmente excitadas, tentando inventar novas fórmulas, novos insultos, para manchar os dois pioneiros globais.

O maior medo que eles têm é: e se o resto do mundo notar? E se alguns países começassem a mudar de lado e de alianças. Alguns países estão a fazer exatamente isso! Tudo está subitamente mudando, evoluindo. As coisas estão sendo discutidas agora, nas Filipinas e no México, no Quénia e em muitos outros lugares.

A maioria das pessoas nos países colonizados ainda está com muito medo de sonhar. Eles não se atrevem a acreditar que outro mundo é possível; que as tentativas de construir um planeta muito melhor não seriam novamente afogadas naqueles banhos de sangue habituais. Muitos são como reféns mantidos num subterrâneo imundo durante anos, não estão mais acostumados aos raios do sol, vivem com medo constante. A síndrome de Estocolmo parece estar omnipresente.

Nações imensas e inegavelmente bem-sucedidas, como China e Rússia, podem estar absolutamente, totalmente erradas? Podem ser completamente más? Lendo os media ocidentais, ouvindo funcionários do governo na América do Norte e na Europa, aqueles países são precisamente isso: enganosos, sinistros e perigosos para seu próprio povo e para o mundo.

Não há absolutamente nada de positivo escrito (no Ocidente) sobre nações que decidiram ou foram forçadas a seguir o seu próprio caminho: China, Rússia, mas também Coreia do Norte, Síria, Irão, Venezuela, Cuba e até a África do Sul.

Eles enfrentam uma enxurrada de negatividade, agressões cínicas e insultos. Todo sucesso é questionado e menosprezado. Quase todas as notícias são apresentadas com um ponto de interrogação sarcástico. Líderes são ridicularizados


No Ocidente, o jornalismo praticamente morreu. Milhares de escribas são destacados pelos meios de comunicação corporativos, em busca dos “segredos mais sombrios” dentro da China, Rússia e outros países não ocidentais. As histórias positivas só podem ser destacadas se ocorrerem no Ocidente ou nas neocolónias do Império Ocidental.


Tudo isso porque o regime luta desesperadamente pela sua sobrevivência. Porque não pode mais inspirar ninguém. Não pode oferecer otimismo ou motivar com ideais entusiásticos. Manchar os seus oponentes é “o melhor que pode fazer”.

A Rússia e a China não podem competir com o mecanismo de propaganda do Ocidente. E eles não tentam mais. Faziam-no, mas desistiram há já algum tempo.

Em vez disso, estão a desenvolver novos conceitos sociais para seu povo, trabalhando na implementação de uma civilização ecológica e na melhoria dos padrões de vida de todos.

Em vez de brigar, apontar dedos e insultar os oponentes, a Rússia e a China estão a avançar irreversivelmente. Esta marcha confiante é o que provavelmente salvará a humanidade do colapso iminente, da terrível agonia do canibalismo, promovido como “democracia” e “liberdade” pelo fundamentalismo do mercado ocidental e a ditadura brutal dos 1%.

A China e a Rússia podem não ser perfeitas, mas o que está a acontecer no Ocidente é monstruoso. O que acontece no novo tipo de colónias do Ocidente é simplesmente um crime contra a humanidade, da Papua Ocidental ao Médio Oriente, da República Democrática do Congo à Amazónia brasileira, para citar apenas algumas partes completamente saqueadas e arruinadas do mundo.

E há um silêncio total quando se trata desses crimes. Quanto a isto os media ocidentais são silenciosos, obedientes e disciplinados.

As partes arruinadas e feridas do mundo levitam silenciosamente em direção à Rússia e à China. Sofreram enormemente, durante décadas e séculos. Eles não têm mais lágrimas nos olhos; nem sangue nas veias. Eles não leem folhas de propaganda. Eles estão com cicatrizes, famintos e doentes. Eles precisam sobreviver, precisam de uma tábua de salvação, rapidamente. Eles precisam de um braço forte e determinado para se apoiar. Rússia e China estão lá, prontas para ajudar. Agora, imediatamente, incondicionalmente.

E eles sabem isso – em Londres, Washington, Paris, Berlim, Camberra, Otava! Eles sabem isso e fazem todo o possível para interromper o processo. Silenciar as vítimas. Para manter o controlo sobre o mundo. Para continuar saqueando. Decidir quem deve viver e quem deve morrer, quando e como.

Não é uma vida boa. Nada bom. Nem para o planeta, nem para a maioria das pessoas no Ocidente. As grandes questões precisam ser colocadas; as essenciais.

Rússia, China, Irão, Venezuela, Cuba – eles perguntam e respondem a essas questões, nem sempre por palavras, mas construindo as suas próprias sociedades, geralmente contra todas as probabilidades.

Quanto mais alto os propagandistas ocidentais gritam, mais claro se torna que têm medo. No fundo, sabem que estão errados e que seus dias estão contados.

Nem preciso escrever sobre o COVID-19 neste ensaio. Muitas pessoas que leiam estas linhas estão bem conscientes do terrível fracasso e da vergonhosa falta de solidariedade no Ocidente.

Da próxima vez, quando ouvirem gritos e insultos altos, cheire esse terrível mau hálito que surge e veja os dedos a apontarem para a Rússia e a China, procure uma cadeira, sente-se e calmamente, com muita calma, faça a si próprio pelo menos algumas perguntas básicas:

“É este o mundo em que quero viver?” “Se o mundo em que vivo me assusta, me frustra, me deixa infeliz, por que devo confiar em seus ideólogos e propagandistas?”

“Talvez a razão pela qual os governantes ocidentais odeiem, desprezem e temam países como a Rússia e a China, seja porque eles estão realmente fazendo algo essencialmente bom para o nosso planeta e o povo! Se sim, não deverei apoiá-los? “



[*] Filósofo, romancista, cineasta e jornalista investigação, tendo coberto guerras e conflitos em dezenas de países. É o criador de Vltchek’s World in Word and Images . Alguns dos seus livros: China’s Belt and Road Initiative: Connecting Countries Saving Millions of Lives . Escreve regularmente para “New Eastern Outlook.”

O original encontra-se em journal-neo.org/…

Confinado ou desconfinado, o pobre lixa-se sempre

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 01/06/2020)

Daniel Oliveira

Não é possível, sem o trabalho de sociólogos, comparar o aumento da covid-19 com a condição social dos infetados. Mas desde o início de maio que sabemos, por trabalhos da Escola Nacional de Saúde Pública, que os concelhos com maiores taxas de desemprego e maiores desigualdades de rendimento eram os que tinham mais casos de covid-19. Olhando para o que está a acontecer em Lisboa, percebemos que são os mais pobres que estão a sofrer mais com o desconfinamento.

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Os concelhos que registam maiores aumentos na região de Lisboa e Vale do Tejo foram Loures, Barreiro, Amadora, Moita, Seixal e Montijo. E não é por acaso que esta é a região mais massacrada. A caricatura irritantemente instalada de uma região privilegiada trata-a como uniforme. Só que Lisboa sofre o preço alto do centralismo, com periferias onde se concentra pobreza, precariedade e desigualdade, sobretudo entre os trabalhadores.

Os surtos na plataforma logística da Azambuja e no bairro degradado da Jamaica – é interessante a abissal diferença de comportamento das autoridades nas duas situações – mostram como há um país que esteve sempre em risco e que, com a pressão do regresso generalizado ao trabalho, levou a primeira pancada. Parece que os centros comerciais vão manter-se fechados.

Não contesto, mas não deixo de achar graça que os momentos de lazer, e não as condições de trabalho e de transporte, sejam a única preocupação que sobra com os pobres. Assim como não deixa de ser revoltante haver quem julgue pessoas que vivem em barracas por não ficarem fechadas em “casa” ou ouvir a ministra da Saúde a responsabilizar os trabalhadores da plataforma logística pelo contágio.

Defendi o urgente regresso das atividades económicas porque também foram os mais pobres quem mais sofreu com o confinamento. O tal estudo do início de maio dizia-nos que um quarto das pessoas que ganham 650 euros mensais perdeu a totalidade do rendimento e isso só aconteceu a 6% dos que ganham mais de 2500 euros. Ao fim de um mês penso que a situação será muito mais dramática. E não é só o rendimento. São as crianças afastadas da escola e sem acesso a computadores e Internet ou casas sem condições para lá permanecer durante quase dois meses.

O confinamento foi uma tragédia para os mais pobres, por causa da economia; o desconfinamento está a ser uma tragédia para os mais pobres, por causa do vírus.

É por isso que tenho recusado o absurdo combate de trincheiras que opõe “desconfinadores” e “confinadores”, corajosos e responsáveis. De um lado e do outro, ouvi absurdas certezas científicas sobre um vírus de que tão pouco se sabia. De um lado e do outro, se falou em nome dos pobres massacrados pelo desemprego ou pela pandemia. Defender a ponderação dos dois fatores sempre foi o menos sexy. Nunca garantirá a ninguém o estatuto de visionário, que percebeu a verdade antes de todos os outros. Mas parece-me que foi e continua a ser a única posição intelectualmente séria.

Quanto à pobreza, a questão é tragicamente mais simples. E resume-se assim: os pobres lixam-se sempre. Lixam-se confinados, lixam-se desconfinados. E é por isso que o problema não é o vírus inesperado ou o desconfinamento inevitável. O problema é a desigualdade. E essa não tem nada de inevitável.

Se houver um terramoto quem se lixa mais são os mais pobres. E quando chega a reconstrução são os mais pobres que são expulsos da nova cidade. Numa sociedade desigual, a catástrofe lixa o mais pobre tanto como o lixa a solução. Porque o problema nunca é a tragédia que bate no pobre, é a pobreza que lhe tira todas as defesas para lidar com essa tragédia.

É por isso que defendo, desde o primeiro dia, que o critério do confinamento e do desconfinamento tinha de ser sanitário e social. E que enquanto continuarmos a ser uma das sociedades mais desiguais da Europa não seremos exemplo de nada. O que corra bem deixará sempre de fora demasiada gente. Os outros, o país que se trama, são os moradores do Bairro da Jamaica ou os trabalhadores da Plataforma Logística da Azambuja. E, para tornar tudo um pouco mais chocante, uns e outros ainda são apontados como responsáveis pelo seu próprio infortúnio.


A última oportunidade

(Anselmo Crespo, in Diário de Notícias, 02/01/2020)

Anselmo Crespo

Bem-vindos a 2020. Parecendo que não, já passaram quase 900 anos desde que Afonso Henriques – o conquistador – expulsou daqui os mouros para, quatro anos depois, conseguir o reconhecimento do reino de Portugal, dando assim início à primeira dinastia.

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De 1139 até 1974 não foi propriamente “um tirinho”, mas a história, de alguma forma, repetiu-se. Em vez de mouros, expulsámos os ditadores que nos oprimiram durante 41 anos e reconquistámos a nossa liberdade. O que fizemos depois com ela pode ser alvo de muitas discussões, de muita divergência, mas não deve colocar em causa o essencial: Portugal, com todos os problemas mais ou menos estruturais que ainda tem por resolver, é hoje um país melhor. E tem uma democracia mais madura.

Se isto não é apenas um lugar comum, o que segue também não o é: as democracias são sempre projetos inacabados, que se constroem passo a passo, com avanços e recuos, mas que só sobrevivem se soubermos preservar os seus alicerces. Aqui chegados, a 2020, é importante termos todos a noção de que alguns dos pilares mais importantes da nossa democracia estão a ser seriamente ameaçados. E que, se não se fizermos nada, podemos mesmo vir a perdê-la.

O populismo, que é, para muitos, a ameaça mais latente, é, na verdade, a consequência natural de um desgaste lento em zonas onde o Estado não pode – não deve – falhar aos seus cidadãos. Dos erros com que não aprendemos e que vamos repetindo, dos problemas estruturais que fomos empurrando com a barriga, das respostas que continuam por dar.

O discurso de ano novo do Presidente da República, mas, sobretudo, o de Natal do primeiro-ministro – dedicado exclusivamente ao Serviço Nacional de Saúde -, são a prova disso mesmo. Em 2020 ainda há urgências hospitalares a fechar por falta de médicos, centros de saúde e hospitais públicos indignos de um país de primeiro mundo, ainda não há médico de família para todos e continuamos a ter famílias desesperadas porque não têm onde colocar os familiares que precisam de cuidados continuados. No Portugal de 2020, em que agora entramos, ainda há uma saúde que é diferente para pobres, para remediados e para ricos. Ainda há médicos e enfermeiros a fugir para o privado ou para o estrangeiro porque se sentem maltratados, mal pagos e pouco reconhecidos pelo Estado.

No Portugal de 2020 ainda há quem receba menos de 300 euros de pensão. Ou quem trabalhe todos os dias, sem conseguir fugir da pobreza. Crianças que, não podendo trabalhar, ficam condenadas a essa pobreza. Ou quem trabalhou a vida toda para agora viver pobre até à morte.

No Portugal de 2020 ainda há jovens altamente qualificados pagos como se tivessem a quarta classe, que não encontram casa que possam pagar e que adiam os seus projetos familiares porque desconfiam do futuro que o país lhes tem reservado.

No Portugal de 2020 a educação ainda depende da conta bancária e do estrato social. Ainda há escolas que são autênticos guetos, onde a violência e o insucesso escolar andam de mão dadas. E, apesar disso, nessas escolas ainda há professores que resistem e não desistem de educar, mesmo quando são maltratados por alunos, pais e pelo próprio “patrão”, o Estado.

No Portugal de 2020 ainda há quem pague os seus impostos e os dos outros, que fogem, só porque sim, porque podem. São os mesmos – os que pagam impostos – que assistem incrédulos à lentidão de uma justiça que, paradoxalmente, se torna injusta e que tantos, justa ou injustamente, classificam de impunidade.

No Portugal de 2020 ainda há dois países: o do litoral e do interior. O país sobrelotado e o país cada vez mais vazio, onde quem resiste devia ser elevado à qualidade de herói nacional. Porque paga ao Estado o mesmo que os do litoral – mais portagens – e recebe infinitamente menos.

Se tudo isto – e o mais que aqui não cabe – são ameaças reais aos pilares da nossa democracia, nada disto é uma inevitabilidade. E a próxima década pode muito bem ser a última oportunidade para não deitarmos tudo a perder. Para construirmos uma economia que cresça e apareça, em vez da roda de hamster onde temos andado nos últimos largos anos e de onde já caímos três vezes. Para reformarmos a justiça, a saúde, a educação, as forças de segurança e militares. Para olharmos de uma vez para a vida das pessoas, em vez de andarmos a contar os meses para o próximo ato eleitoral.

Porque, por cada ponta solta que deixarmos, haverá sempre um oportunista à espreita. Alguém que se alimenta do sofrimento dos outros e que está sempre pronto a cavalgá-lo, em nome da sua própria sobrevivência. Por cada ameaça que o Estado – e nós também somos o Estado – deixar escapar, ignorar, empurrar com a barriga, é mais um passo que está a dar para acabar com um regime democrático que, até prova em contrário, é o melhor dos sistemas políticos.

Em democracia há sempre soluções. Foi isto que me ensinaram e é nisto que acredito. Mas a democracia não é um fim em si mesmo e 2020 pode bem ser o início de um combate há muito adiado ou o princípio do fim.

Bom ano para todos.