A União Europeia contra a História

(Hugo Dionísio, in Facebook, 19/09/2023)

Apesar de estar titulado como “Respondendo ao chamamento histórico”, O discurso de Ursula Von Der Leyen deixou a história sem resposta. Diria que visa mesmo contrariá-la, pois, afinal, a história humana é a história pela libertação de todas as formas de opressão e exploração. É precisamente contra essa história que luta o discurso da CEO designada para a Comissão Europeia!

Como uma diligente e bem-comportada CEO, a nunca eleita, mas plenipotenciária, Úrsula Von Der Leyen, esgrime todos os pontos e argumentos que era suposto. Um deles é o alargamento da UE. Este alargamento, que pode nunca acontecer – mas isso são outras contas -, por si só seria motivo para a Turquia abandonar, de forma imediata, a NATO e a proposta de adesão. Afinal, por tantos anos foi congelada a adesão da Turquia, usando-se argumentos falaciosos como “os direitos humanos”, e, de uma assentada, a UE abre todas as vias de acesso (fast-track) a um país com uma constituição integralista (que define quem é e quem não é “ucraniano” original, com base numa suposta etnia, que, por acaso até cheira a polaca); um país que persegue e oprime os direitos políticos, religiosos e culturais das etnias que considera forasteiras… Expliquem-me como é que a Turquia não se ressente com isto? Alguém acredita que a Turquia é menos democrática que a Ucrânia? E Portugal? O que beneficiaria com um alargamento destes? Perder a única fonte de investimento público que ainda lhe resta, os fundos estruturais?

O discurso de Úrsula é, uma vez mais, uma denunciada colagem aos interesses dos EUA. O próprio jargão político-administrativo utilizado denuncia essa realidade. O “Parlamento” passou a chamar-se  “Casa” – referência à “House” norte-americana -, os regulamentos e directivas passaram a designar-se “actos” – referências às leis federais norte-americanas “acts” – e até o próprio evento, não sendo a designação nova, não deixa também de denúnciar a colagem – o “estado da União” por referência ao “State of the Union Adress” norte-americano.

Disse Úrsula que “a guerra se ouve nas nossas fronteiras”, o que me leva a questionar que guerra é essa! Será a mesma guerra nas mesmas fronteias que o Presidente Marcelo designou de “nossas fronteiras” com a Federação Russa? É sintomática a conexão orgânica entre todas as figuras de proa do poder político europeu, talvez com excepção de Orban, na Hungria. Em todos ouvimos a mesma cassete…

Disse a CEO da Comissão Europeia que, durante o seu mandato (diria mais “comissão de serviço”), assistimos ao surgimento de uma “União geopolítica – apoiando a Ucrânia, enfrentando a agressão Russa, respondendo a uma China assertiva e investindo em parcerias”.

Vale a pena parar em cada um destes pilares da “Europa geopolítica”. Primeiro, importa, desde logo, dizer que a União Europeia como entidade geopolítica está longe de ser uma construção de Úrsula ou dos seus mestres actuais. A UE sempre foi, desde os primórdios da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, uma construção geopolítica, como não poderia deixar de ser. O papel da chamada “construção europeia”, no quadro da “ameaça vermelha”, constitui o pilar fundador desta entidade “geopolítica”. Hoje, esgotado esse papel, a missão da UE é o de servir de muleta geoeconómica, mercado preferencial e reserva de recursos dos EUA. Ou seja, a “entidade geopolítica” que Úrsula diz ter construído é uma falácia, tratando-se mais de um apêndice geopolítico. Tal como sucedeu no G20, a UE não existe sozinha, só como os EUA; A UE só tem ideias que coincidam com os planos geopolíticos dos EUA; a UE é uma cartada geopolítica jogada pelos EUA, de um baralho que cada vez mais se confina à realidade do G7 e restantes súbditos.

A UE é apenas a mordaça que contém, submete e aniquila, o orgulho e as soberanias nacionais dos países europeus. É a jaula que os prende a uma existência mesquinha, dependente, subserviente e secundarizada aos interesses hegemónicos de Washington.

Não é a UE quem mais financia o “apoio à Ucrânia”, são os EUA, o que denuncia a quem interessa este conflito. Os EUA não pagam um cêntimo – nem através do papel que imprimem a que chamam dólar – por algo que não lhes seja útil; mas pagam todo o papel do mundo, se algo fizer parte da sua estratégia hegemónica. Não foi dos principais países europeus – França, Itália, Alemanha ou Espanha – que nasceu a tentação de fazer da Ucrânia um território NATO. Muito pelo contrário. Foram os países europeus que, no passado, impediram a Geórgia de fazer parte da aliança, precisamente para não acossarem a Rússia, país com que pretendiam manter-se em paz. Do lado da Alemanha, a relação era fundamental para o bem-estar do seu povo, como para a França, Áustria, Holanda e países do Leste. Apenas dois países apareciam repetidamente com esta tentação: EUA e Inglaterra! Este “apoio à Ucrânia” é tudo menos uma pretensão europeia, sendo, este conflito, resultado exclusivo da vontade americana, com a conivência, aí sim, dos “líderes” europeus eleitos a partir de 2007. Líderes cirurgicamente escolhidos, condicionados e instrumentalizados para nos prenderem a todos ao passado e presente colonial e imperialista.

A resposta à “assertiva China” vai pelo mesmo caminho. Todos conhecemos o início do discurso anti chinês, com a guerra de Trump à Huawei e a imposição de tarifas comerciais. A UE, nessa altura manteve-se imóvel, congelada, aprofundando os níveis de cooperação e investimento, o que fez até há muito pouco tempo. O crescimento do colosso oriental e a ameaça que introduz à hegemonia dos EUA – a UE como ponto de encontro de continentes não tem qualquer vantagem nesta estratégia -, constitui a única razão da classificação da China como um risco. Até à estratégia Biden do Indo-Pacífico, do AUKUS e da “contenção da China”, a UE não tinha qualquer doutrina concertada em matéria de “ameaça chinesa”. Portugal aceitou a Huawei, negociou a instalação de uma fábrica de baterias, vendeu-lhes – a meu ver erradamente – a EDP e parte da GALP, adjudicou obras, abriu as portas ao oriente. Hoje, a falta de independência a que governantes submissos como Marcelo e Costa votam Portugal, faz tudo isto perigar, com consequências graves para os trabalhadores e suas famílias.

Outro aspecto do discurso é o “investimento em parcerias”. Não existe uma parceria internacional da UE que não se enquadre: 1. Nas estratégias hegemónicas e geopolíticas norte-americanas; 2. Que não seja estabelecida com países e organizações que têm o beneplácito norte-americano; 3. Cujo resultado do investimento não tenha um retorno directo para Washington, seja económico, militar, político, ou todos juntos! Nada! Seja o corredor económico India-Arábia Saudita-Europa; seja a linha ferroviária entre o porto do Lobito, em Angola e a República Democrática do Congo; qualquer uma destas vias alternativas às rotas da seda chinesas, a que a UE chama de “global gateways” (ligações globais), está integrada na estratégia de Biden “um mundo, uma família, um futuro” e da “Buildbackbetter” (fazer bem outra vez). O benefício é, sobretudo, norte -americano, mas seremos nós que pagaremos os 300 biliões de “investimento”. Tudo para que os EUA tenham os metais raros africanos, de que necessitam, para a sua reindustrialização.

Diz então Úrsula que, agora, estamos mais “independentes” em sectores críticos como a “energia”, os “semicondutores” e “matérias-primas”. O mundo de Úrsula é um mundo fantástico! Nada lhe falta. É como o do CEO do Serviço Nacional de Saúde, que “gere” o SNS e usa serviços de saúde do privado! Uma lástima! O problema destes mundos maravilhosos, desta aristocracia burocrática, é que estão em colisão directa com os mundos das pessoas reais. Ao que julgo saber, a UE continua a comprar energia russa, apenas tendo trocado a posição do principal fornecedor, passando os EUA para primeiro lugar. Em troca, a UE perdeu um gasoduto que garantia fornecimento rápido, em qualidade e mais barato. Agora, tem de receber o gás em barcos. Não percebo que raio de independência é esta e como a UE se tornou mais energeticamente independente, aumentando a sua dependência em relação a um só fornecedor, muito mais caro e recebendo o gás através de logísticas mais complexas e com mais riscos.

A independência em “semicondutores” é caricata. Pois não consta que a UE seja local de produção em massa de “semicondutores”. O que a UE produz, isso sim, são máquinas litográficas, na Holanda, através da empresa ASML. A “independência” é tal que fazemos as máquinas mas compramos os semicondutores a Taiwan, à China (agora menos por causa das sanções – mais independência) e aos EUA. Acresce que, a ASML, como resultado da política de sanções norte-americanas, contra o desenvolvimento tecnológico chinês, se viu impedida – a agravar-se principalmente a partir do final deste ano – de vender as suas máquinas mais caras e avançadas ao seu principal mercado, a China! O que tem provocado uma queda abrupta nas suas receitas. Ora, se prescindir de um dos principais fornecedores de chips baratos; se ter de cumprir uma lei sancionatória que não é europeia, nem do interesse europeu; se assistir à disrupção das cadeias de abastecimento numa área fundamental; se ficar totalmente dependente dos EUA nesta matéria, e não mandar sequer na sua industria para este efeito, significa ser “mais independente em semicondutores”…

E nas matérias primas… O mesmo que no gás! Antes estavam aqui ao lado; baratinhas e boas, rápidas e em quantidade. A UE podia também ir comprar terras raras à China, à Rússia. Hoje, vê-se obrigada a ir buscar o que antes tinha barato e rápido, ao outro lado do mundo (América latina), mais caro e em menos quantidade, disputando o mercado com outros potentados regionais. Acresce que, resultado da política de sanções norte-americanas a alguns metais raros de origem chinesa, a UE, vê-se impedida também de os ir lá buscar. Como é que isto é ser mais independente?

Mas esta farsa continuou ao longo de todo o discurso. É interessante quando Úrsula fala da “resposta ás alterações climáticas” e do papel europeu nesta matéria. Quem a ouviu ficou com a impressão que o mundo pode ser salvo pela própria União Europeia. Um “planeta saudável”, como disse. Alguém explique como é que ir buscar energia e matérias-primas a locais mais distantes, gastando mais energia para os trazer e mais dinheiro, contribui para isto. Como é que substituir gás por carvão salva o planeta? Como é que transferir a base industrial da China para a India, onde as exigências ambientais ainda são menores, salva o planeta? Mas, não vivemos todos no mesmo planeta, ou a CEO da Comissão Europeia vive num planeta à parte? Na Lua, por exemplo? E que tal produzir aqui, na Europa, em Portugal e substituir as importações? Não? Que tal produzir e consumir localmente e apenas comprar fora o que não se produz aqui, taxando como luxo tudo o que seja importado sem necessidade? Também não? Pois…

Mas o melhor estava guardado para a parte da “competitividade” e da “concorrência desleal”. Depois de dizer que as “nossas empresas tecnológicas gostam de competir”, “elas sabem que a competição é boa para os negócios”, “a competição protege e cria bons empregos na Europa” … Ela vem falar em competição “verdadeira” e “justa”. Para atacar quem? A China, claro.

E é neste ponto que temos a confirmação sobre quem é que está aos comandos do drone Von Der Leyen. Se antes víamos uma criatura desprovida de vontade, que se limitava a papaguear agendas pré-determinadas… Nesta matéria conseguimos vislumbrar, por reflexo, a cara do piloto. Biden aprovou um “ACT” para as indústrias estratégicas para a “segurança nacional” dos EUA, que visou beneficiar e subsidiar as empresas norte-americanas de semicondutores e desviar tecnológicas europeias para o seu território. À data, o próprio Scholz deu sinais de poder ficar furioso. Pensou nisso e acordou!

Eis que o ataque é feito à China e aos subsídios que o estado chinês dá às empresas. Eu já nem falo dos mais de 10 triliões de dólares que os EUA enterraram em  empresas e bancos, desde a crise de 2008. A própria indústria automóvel americana recebeu biliões de dólares no tempo de Obama, para se restruturar. Parte dessa restruturação está, hoje, visível na fusão entre a PSA francesa, a FIAT-Chrysler, criando a Stellantis. O próprio estado francês tem 6% do maior construtor mundial de automóveis. Mas a CEO da Comissão Europeia diz que é a China quem financia as suas empresas a partir do estado. E é claro que o faz, todos o fazem. Daí que Úrsula queira aprovar um “acto” “anti subsídios” que investigue o desenvolvimento de veículos eléctricos chineses e possa levar à sua proibição nos mercados europeus. Segundo ela diz, são muito “baratos”. Os chineses cometem o “crime” de querer fazer carros eléctricos para todos!

Assim, querendo que os europeus paguem mais por automóveis, do que devem, Úrsula esconde que, também a UE, financia de forma regular o sector privado. Todos o fazem! E mais, acusa a China de financiar a “investigação” de veículos eléctricos. Isto quando a UE tem um programa temático dirigido ao sector privado chamado “mercado único, inovação e emprego”. Fantástica hipocrisia, certo?

Vamos lá a ver se nos entendemos: eu não sou contra o investimento público; eu não sou contra o proteccionismo dos estados, para defenderem a sua indústria, os seus postos de trabalho. Pelo contrário. Eu sou contra a mentira e os falsos pretextos e, ainda mais, contra a manipulação e a dissimulação. Usar este pretexto contra a China? OK… E os EUA? E o Japão? E a Coreia do Sul? Fazê-lo para proteger a indústria automóvel europeia? Certo! Mas… E então a ameaça americana, japonesa e coreana? Ou, o propósito é defender esses todos? Mesmo contra os interesses do povo trabalhador europeu?

Diz Úrsula que os veículos eléctricos “são bons para o ambiente”. Então…, mas tê-los baratos não é bom? A UE, na Estratégia 2020 aprovou 142 biliões para a competitividade, 420 para o crescimento sustentável e recursos naturais, 371 para a coesão económica, social e territorial. Na estratégia 2030, agora a iniciar o ciclo de financiamento, foram 166 biliões para o mercado interno, inovação e digitalização; 336 para o ambiente e recursos naturais e 392 para a coesão. Uma fatia importantíssima destes fundos vai parar às empresas privadas. Por exemplo, em Portugal, dos 2.9 biliões de euros para empresas, mil milhões foram para as médias empresas e 932 milhões para as grandes. Para investigação, digitalização, internacionalização… Apenas do PT 2020 e sem contar com os fundos da formação profissional (outros mil milhões), para competências, com os fundos para transição energética e ambiental ou os fundos para agricultura, pescas e outros mais. São muitos, muitíssimos milhões, apenas da UE, pagos pelos trabalhadores – não contando também com fundos nacionais que vão dos Lay-off à formação profissional e estágios profissionais – que vão parar às empresas privadas.

O que se passa com a China é um problema bem diferente: É que, pela primeira vez, na história dos últimos 500 anos, os EUA e a UE (o bloco imperialista e hegemónico) passaram a ter um competidor de peso, em todas as áreas, capaz de os suplantar em tudo! Na qualidade e no preço! E, ao mesmo tempo, melhorando paulatinamente as condições de vida do seu povo.

Este desafio demonstra toda a falácia da teoria liberal, do mercado livre e da concorrência. É fácil defendê-lo quando se têm as melhores universidades, as melhores competências, a maior fatia de capital acumulado, a moeda mundial de reserva, o sistema interbancário de trocas, o FMI, o Banco Mundial e tudo mais. Quando se domina isto tudo, e usamos o sistema para manter distâncias relativas, deixando os mais pobres subirem apenas o suficiente para que não sejam ameaça (quando sobem), mantendo as dependências e as interdependências que alimentam a submissão… Assim é fácil ser “liberal”. Logo que surge um competidor a sério, com armas a sério, com capital, conhecimento e capacidade organizativa… Os “liberais” passam logo a proteccionistas. Mas fazem-no à “liberal”, ou seja, mentindo e inventando desculpas. Admitir as verdades não está na sua matriz, pois tudo para eles é marketing, é venda, é logro.

É como dizer-se que a UE é “democrática”. Uma estrutura não eleita, como a Comissão Europeia, manda em tudo, de forma omnipotente, mas é “democrática”!

A UE não “responde à história”. A UE luta contra ela, tentando manter as estruturas de submissão, das quais o Sul global se tenta libertar! A UE, precisamente, não se dá conta de que a sua própria existência, tal como a do capitalismo, é “histórica”, passageira, contextual, transitória…

E é esse o drama de Von Der Leyen e dos seus mandantes!

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Os cães ladraram… mas a caravana lá passou

(Hugo Dionísio, in Facebook, 12/09/2023)

Na que foi, talvez, uma das reuniões do G20 com menor exposição mediática (o que se percebe), a última reunião deste grupo, em Nova Deli, foi frutuosa em respostas quanto ao conflito Atlântico-Russo, e não só. Perante o assumido falhanço, por parte da – territorialmente estática – “contra-ofensiva”, esta reunião demonstrou que a sobrevivência do poder hegemónico dos EUA, seja sob que forma for, se tornou mais importante que qualquer outra diatribe. O último G20 decretou o final anunciado do conflito Atlântico-Russo. Derrotada que está uma ofensiva planeada, apoiada e programada pela NATO, usando o sangue do povo ucraniano, só falta determinar o dia em que oficialmente tal acontecerá.

Relembro que, na última reunião, em Jacarta, Indonésia, o conflito entre a NATO e a Rússia, combatido na Ucrânia, foi razão suficiente para que os EUA tentassem – e conseguiram – partir o grupo em 2, dividindo-o entre campos opostos. O G7, dentro do G20, comportou-se como um gangue mafioso, praticante de bullying e ávido por discussão e conflitos, o que levou a inúmeras queixas e recriminações, por parte de dirigentes do Sul Global, quanto à falta de educação e elevação dos líderes ocidentais. O facto é que, no final, apenas ficou uma “declaração de Líderes”. Mesmo de forma contida, era possível encontrar os ecos de condenação da “agressão russa”.

Nesses tempos, a estratégia era clara. Estávamos em tempo de “isolamento da Rússia”, dos idos – e nunca cumpridos – “oil caps” (tetos de preço do petróleo) e da ilusão de uma “vitória rápida” que submetesse a Rússia de Putin. O tema “Ucrânia” era, à data, o único tema no Ocidente dominado pelos EUA. No Sul Global, este tema nunca esteve na ordem de prioridades. Nas pessoas do Sul Global com quem fui falando, a maioria mostrava um tom de perplexidade face à importância que o tema tinha no Ocidente e face ao que o Ocidente considerava ser a “rejeição internacional” da “agressão russa”. Ao contrário, o que me relatavam era, ou o desconhecimento, o desinteresse ou mesmo a simpatia com o desafio russo. Com excepção das populações ocidentais e “ocidentalizadas” (onde quer que estejam), todos perceberam o que se passava na Ucrânia, pois tratava-se de um déjà-vu em relação ao que viram acontecer, bastas vezes, na sua própria terra.

De lá para cá muito mudou. Enquanto a máquina de mistificação social decretava a vitória inequívoca das forças leais ao regime de Kiev, a Rússia continuou a cilindrar o exército contratado ao angariador de mão-de-obra forçada que é Zelinsky, nunca lhe faltando armas nem homens. Ao contrário, ao regime de Kiev começou a faltar tudo, chegando-se ao ponto de impedir a saída das mulheres do país, para que possam vestir a farda e irem morrer em nome de São Biden. A este respeito, importa falar de um anúncio nas Tv’s ucranianas, apelando ao “patriotismo”, mostrando “orgulhosas” mulheres eslavas a equipar-se, pegar em armas e combater, demonstrando que os homens entre os 15 e os 70 anos já não são suficientes.

Entretanto, ao longo de todo o processo, tornou-se evidente que a Rússia não iria cair, isolar-se ou colapsar. Ao contrário, a Rússia demonstrou que um país grande, medianamente desenvolvido e rico em recursos naturais, auto-suficiente do ponto de vista alimentar e com uma base industrial e de competências invejáveis, pode desafiar as sanções do “inferno”. Algo que não está ao alcance de Cuba, da Venezuela ou da Coreia Popular, sendo aqui que se enganaram também os “think tankers”, comentadores e outros vendedores de quimeras ao serviço da hegemonia.

O resultado agravou-se com a expansão dos BRICS, a eleição de Lula da Silva, a viragem da Arábia Saudita e o colapso da África francófona. O facto de terem de ser os bancos americanos e os fundos de pensões dos trabalhadores a comprar os títulos do tesouro, também fez tocar as campainhas. Os EUA estão tão cheios da sua própria dívida e a vontade alheia em comprá-la é tão grande ou pequena que, agora, estão a despejá-la na sua privilegiada colónia: a Europa. Em Portugal já existem casos de gerentes bancários a oferecerem aos clientes a compra de rentáveis “US Treasury Securities”. Querem tornar o Ocidente refém da dívida americana para que seja ainda mais difícil deixar cair o Hégemon. A situação é tal que se tornou normal, nos EUA, divulgar dados mensais do emprego acima das expectativas dos mercados, logo para os corrigir nos dois meses seguintes. Em Junho haviam anunciado a criação de 185.000 empregos, para corrigirem agora em Setembro, para uns escassos 80.000. Os dados económicos, do PIB ao emprego, todos são manipulados e trabalhados de forma a manter todos contentes, mas assente em falsidades.

Não contentes com o desastre das sanções russas, que resultaram num falhanço total, também a guerra dos semicondutores, decretada à China, como instrumento da política de “contenção” do desenvolvimento desse país (como é que tipos que se dizem democratas podem estar de acordo com isto?!) está a resultar num fracasso parecido. É a própria Bloomberg que vem escrever sobre o assunto e dizer que é a própria China que, ao longo da história, comprova não ser possível monopolizar e esconder o conhecimento. Os imperadores chineses já o haviam tentado com a pólvora, o papel, a seda, as armas de fogo, a porcelana e por aí fora… O resultado é conhecido.

Daí que, só um país infantil e inexperiente, mas ávido por poder, poderia cair em tal armadilha. Visando criar suspeição e insegurança nas “supply chains” (cadeias de distribuição) chinesas, os EUA impediram a venda de chips avançados, das máquinas litográficas que os imprimem e dos componentes necessários para a sua fabricação. Como a história demonstra, até em desfavor dos próprios chineses, eis que o impensável acontece e a China tornou-se capaz de produzir chips de 7 nanómetros, passando a ser possível fazer telemóveis premium só com material nacional. Os de 7 nanómetros sim, mas ainda não a última geração (o novo Iphone já irá incorporar semicondutores de 3 nanómetros), mas todos vemos o que acontecerá. Há dois anos apenas, a China não era capaz de produzir nem os de 14 nanómetros. Em dois anos recuperou de um atraso de várias gerações. Não espantará que, mais um ano e recupere totalmente. Escala, vontade e direcção não lhe faltam.

O facto é que a grande vantagem que os EUA julgavam ter – os semicondutores de última geração –, a qual usavam para criar disrupções nas cadeias de abastecimento de produtos tecnológicos importantíssimos, como computadores, telefones e tudo o resto, está-se a esvair. A importância disto, em termos militares, inteligência artificial e supercomputação, é fundamental. Comparável a isto só quando acordaram para a vida com a URSS armada com bombas nucleares. Assim, a loucura é tanta que foi aberta uma caça às bruxas, pois, segundo a administração Biden, tal só foi possível através do copianço…. Afinal, a tecnologia de fronteira só pode sair das brilhantes cabeças do Vale do Silício, certo? No fundo, dos chineses e indianos do Vale do Silício. Ouvir as bocas da reacção neoliberal e neoconservadora sobre as “cópias” e o “roubo” de propriedade industrial pela China, equivale a acreditar que foram os EUA que inventaram o hambúrguer, a pizza e o cachorro-quente, ou melhor ainda, a roda, o fogo e a alavanca.

Aos poucos, o mundo hegemónico saído do final da guerra fria começou a esboroar-se, e depressa. O G20 demonstra que conter a China e criar uma divisão de águas, obrigando à criação de dois pólos, em que um (o dos EUA) combaterá o outro, passou a ser a grande estratégia. Voltámos ao “dividir para reinar” da guerra fria. Tudo para que, no final, volte a sobrar apenas um, o dos EUA. A ver vamos se assim será! Não me parece que o G20 tenha importância para tanto!

Neste quadro, falhado o “Afeganistão” ucraniano (não são palavras minhas, são dos neocons e neoliberais), há que acertar a táctica. Estrategicamente, Biden disse que isto iria demorar 10 anos. Talvez nunca chegue, mas isso é outra conversa. O facto é que, a declaração conjunta do G20 é bem clara: dedicadorao conflito Atlântico-Russo, apenas um parágrafo existe e para dizer um conjunto de generalidades sobre a guerra, territórios, soberania e integridade nacional. O nome “Rússia” não surge uma única vez! E Blinken disse que “a declaração” estava “a contento dos EUA”. Nem Ucrânia como vítima, nem Rússia como agressora, nada!

Quem não deve ter ficado nada agradado com isto deve ter sido o único judeu no mundo que coopera com nazis, o Sr. Z (se calhar a operação “Z” visava….). Na declaração não se fala em armas, não fala em censurar, perseguir ou isolar o povo russo, não se fala em trazer a galiciana Ucrânia ao G20, nada! Esquecimento total, como se não existisse! O tio Sam, perante a necessidade, fez como faz sempre: plantou, regou, colheu, comeu, mastigou e cuspiu! Garantir a “liderança” americana, só porque sim, tornou-se o único objectivo e, nesse plano, tal como ralham os republicanos há tanto tempo, é da China que vem a grande ameaça.

Daí que o G20, de tão importante que foi para os EUA, tão pouco importante foi para os outros (talvez com excepção da Índia)! Para Rússia e China – sem representações ao mais alto nível – as discussões e declarações sobre multipolaridade, igualdade entre estados, desenvolvimento partilhado, mundo centrado no ser humano, respeito pelas culturas e características de cada um, necessidade de reforma do FMI, Banco Mundial e OMC, soam a vitória… A reunião lateral entre Brasil, India, África do Sul e EUA, visando acordar que todos estes 4 elegem o G20 como fórum para resolução de questões de interesse internacional… Tratando-se de 3 BRICS…. Soa a pressão, divisão e canto da sereia, certo? Todos disseram que sim, sabendo desde logo que não caberá ao G20 esse papel, estando tal papel reservado a outros fóruns sem interferência parasitária. Albardar o burro à vontade do dono…. Foi o que fizeram!

Facto novo e de enorme relevância: a unanimidade na aceitação da União Africana como membro do G20 é menos consensual do que pode parecer. Dependerá de África! Libertar-se-á, ou não? África é um continente em disputa e o vencedor será aquela facção que dominar a maior parte. Para já, parece que os EUA ainda podem estar em vantagem, mas não por muito, pois a visão que os povos africanos têm do Ocidente – e em especial da Europa – é muito negativa. O próprio momento escolhido, é interessante. Os EUA tencionam lançar a construção de vias de comunicação ferroviária entre o Lobito (Angola) e a República Democrática do Congo, numa tentativa de colocar o G7 no mesmo plano que a China, em matéria de investimento em Infra-estruturas. Ao contrário da China, cujo financiamento sai de bancos públicos de fomento, a ver vamos se o capital privado ocidental (que outro não existe) considera rentáveis este tipo de investimentos, em detrimento do fácil retorno bolsista.

Quem ganha com isto tudo é a India (Bahrat – nome tradicional do país cada vez mais assumido por Modi), que se vai afirmando também como potência a ter em conta, governada por quadros de elevadíssimo nível intelectual (não é o caso de Modi, aparentemente), o que nos falta, e muito, na Europa. A Índia consegue fazer um G20 em que todos parecem sair a ganhar. E sem falar da infecção neonazi da Galícia.

Se esta vitória da India – e a nomeação de um indiano por Biden para o Banco Mundial – pode ser vista como uma facada na China, retirando-lhe o foco e criando ao seu lado um competidor de peso pela instalação da base industrial mundial, também é verdade que ela representa, em si mesma, uma concessão enorme.

Neste G20, os EUA tiveram de engolir várias coisas: a propaganda dos EUA como fundamentais na liderança global é inexistente; a necessidade de aceitarem uma ideia de multipolaridade; o foco sobre a India e não sobre os EUA; a impossibilidade de determinarem toda a agenda (ainda lá vem o slogan “um planeta, uma família, um futuro”); a incapacidade para dividirem o grupo; etc…

Para a Europa este G20 trouxe aos cegos do burgo a possibilidade de, mesmo assim, experimentarem um vislumbre da sua total irrelevância geoestratégica. Sozinha não aparece, e quando aparece é acompanhada dos seus mestres. A UE apenas aparece para pagar os investimentos em ferrovia na África e Médio Oriente. A ver vamos se vão ser feitos… Que esta gente… não é de confiança!

O facto é que, deste G20, não sai uma única ideia europeia. Ouvir a empregada doméstica Úrsula a dizer “o mundo está a olhar para nós” … Só pode dar vontade de rir.

Nesta disputa pela libertação do neocolonialismo hegemónico, à Europa vai caber o mesmo papel que coube à América Latina, na guerra fria. O pátio das traseiras do poder hegemónico. Hoje, a própria América Latina lá vai encontrando o seu caminho entre a luz da multipolaridade e as brumas das concessões aos EUA; a Ásia afirma-se como território âncora do crescimento mundial; África prepara-se para usar a sua reserva humana e mineral para beneficiar com a disputa entre colossos… A Europa paga e não bufa. Não está em disputa, por isso…

Eis como se passa do topo à irrelevância. A Europa passa de território da 1ª e 2ª guerra, de berço das ideologias que moldam o nosso presente e futuro, para a irrelevância geoestratégica. Prescindindo de papel independente no mundo, entregando-se aos EUA, a Europa não tem uma estratégia de desenvolvimento, contentando-se com a gestão corrente das várias tendências liberais, made in USA; a Europa prescindiu da sua experiência histórica, deixando dominar-se pelo barbarismo infantil americano; a Europa prescindiu da sua soberania e com ela, da liberdade dos seus povos – cada um deles – livres para seguirem o seu caminho.

Ver o presidente do meu país fazer a triste figura que fez, recentemente, na Ucrânia, aquando da tentativa de entrega da Ordem da Liberdade… Preferindo mentir (a si e a todos nós) a expor o neonazi Zelensky (como poderia ele, de um partido de extrema direita, receber a comenda de Abril, da Liberdade), o qual julgando-se superior (a Marcelo e a nós todos), recusou uma comenda nacional, Marcelo colocou-se de rastos, ao nível mais baixo que um ser rastejante se pode colocar.

Mal ou bem, Marcelo é presidente de um país com mil anos de história, com uma história mundial invejável; Marcelo é um professor catedrático, com milhares de páginas escritas; Marcelo é um político experiente, com uma carreira política invejável. Este mesmo Marcelo, que deveria valorizar-se a si próprio e ao país que representa, optou por branquear um farsante. Presidente de um país cujo súbito orgulho nacional foi implantado artificialmente e à pressão; um país que é governado por um regime saído de um golpe de estado neonazi; uma tal república das bananas que, no acto de constituição do executivo, em 2014, por ordem de Biden foi buscar ministros que nunca haviam estado na Ucrânia; um país presidido por um farsante que nunca foi político, que a única coisa que havia feito na vida tinha sido ser comediante sem graça de um programa chamado “o servo do povo”, criado pela CIA para mais tarde se transformar no partido que o elegeria, às mãos da campanha eleitoral mais fraudulenta e enviesada da história de qualquer eleição. Deveria ser este farsante quem deveria rastejar perante os pés de Marcelo e não o contrário… Ao invés, e dando razão a quem diz que estamos mesmo no buraco, foi Marcelo quem optou por rastejar. Quando alguém com mérito é obrigado a rastejar perante um charlatão… Está tudo dito sobre a meritocracia “liberal” que a IL defende!

E rastejou tanto que se agachou em relação a quem foi esmagado e tem todas as razões para se sentir amargo e frustrado com este G20. Não tendo eu pena alguma da elite neonazi que domina o regime de Kiev, a verdade é que, se alguém tinha dúvidas, de que viria o tempo em que EUA deixariam cair a Ucrânia para o precipício da história, o G20 deu-nos todas as respostas sobre as prioridades do momento.

Bem sabiam os russos que, apesar dos cães ladrarem muito, a caravana lá ia passando! A caravana já passou mas aqui ainda há quem ladre!

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A cor da fraternidade

(Hugo Dionísio, in Facebook, 06/09/2023)

Vim eu de férias…. Li as notícias sobre África… Falavam de uma intervenção militar no Níger… Uma intervenção rápida da ECCOWAS (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental) … Dizem que para repor a “normalidade constitucional”! Esperei encontrar uma cidade e vida urbana transformadas! Uma consciência antiguerra e anti “intervenções” militares, como nunca antes tinha sucedido!

Pensei eu: chegarei à cidade e verei as ruas de Lisboa carregadas de outdoors da Câmara de Lisboa, dizendo “Força Níger”, ou “estamos com o Níger”; anúncios dos hipermercados, das cadeias de fast food e detergentes, passam a ter em fundo as cores laranja, branca e verde, da bandeira do país; de Pedro Proença a António Costa, passando por Montenegro, Ventura e até o Cardeal patriarca, todos a exprimirem o seu apoio inequívoco ao Níger; o Conselho de Estado, ontem reunido, adicionando parágrafos à sua resolução para apoiar o Níger.

Pensei em ruas transformadas e conscientes… Pela primeira vez na história, alertadas para a importância da paz, para o fim do neocolonialismo e do imperialismo. Imaginava que, ao entrar na cidade de carro veria, nas ruas, muitos transeuntes, principalmente aqueles de “classe média” (seja lá o que isso for), mais alta ou baixa, e muitos ricos, estrangeiros do norte da Europa e até alguns taxistas, todos carregados de bandeirinhas na lapela, com as cores do Níger.

Imaginava eu, já a correr pelas notícias na internet, no zapping das TVs: Nos jornais, nos telejornais, as Anas Gomes, os Rogeiros e os Milhazes, todos em coro anunciando, tão efusiva como mordazmente: “estamos com o Níger”! Estava certo de que, com tanta ou mais efusividade que a usada para com o regime de Kiev, também aqui a alma “solidária”, “fraterna”, “humanista” e “democrata”, não deixaria que um país pobre, o que tem menos qualidade de vida do mundo (último lugar do IDH da ONU em 2020), seja ameaçado pelas potências africanas ocidentais, para mais, quando estas estão a ser impulsionadas pela colonialista, chauvinista França, pelos imperialistas hegemónicos EUA e pelo seu apêndice geográfico, a UE.

Desta vez não falha! Pensei. A “guerra” da Ucrânia abriu os olhos do povo para a necessidade de se pararem as agressões a países que não as tenham provocado, COMO SE PASSA COM O NÍGER!

O choque com a realidade não se fez esperar. Afinal, do Conselho de Estado só veio apoio ao regime corrupto, cleptocrata e tirânico de Kiev. Nem os problemas do país – gravíssimos -, nem os problemas do Níger, nem os de África, Palestina, Síria, mereceram qualquer menção.

“Portugal é um país livre”, dizem-nos… “Portugal não é um país racista”, repetem. “Portugal está sempre ao lado da liberdade”, afirmam. “Portugal não apoia invasões e guerras de agressão”, transmitem, ininterruptamente a respeito do… Não! Do regime de Kiev.

O Níger, um país riquíssimo em minerais, um dos principais fornecedores de urânio para as centrais nucleares francesas, apesar disto tudo, é o país menos desenvolvido do mundo. Este país, este povo, farto da exploração e consciente de que o terrorismo que o acossa é fomentado pelas mesmas potências que o exploram, decidiu apoiar, de forma massiva, um golpe de estado, que retirou dos cargos os anteriores órgãos de soberania. Acto contínuo, à embaixada francesa decidiram, também, exigir a retirada das tropas aí estacionadas em bases militares.

A França, um país que continua a usar do poder económico e militar que possui, para controlar de forma neocolonial uma cadeia de países da África Central, designada por Sahel, suga toda a riqueza, apodera-se do valor acrescentado, através da manutenção de uma elite governamental corrupta, submissão aos poderes e interesses ocidentais, sujeitando o seu povo à mais inominável miséria. É esta potência europeia que, apoiada pelos EUA e todo o Ocidente, oprime com mão de ferro um país como o Níger, tudo fazendo para impedir a sua libertação.

Se, no Ocidente, servidores, serviçais e lacaios, cúmplices e ingénuos, desde a primeira hora, se colocaram ao lado do regime de Kiev, nascido de um golpe de estado em 2014, considerando legítimo esse acto usurpador… Já no caso do Níger, depressa calam, desconhecem ou condenam um golpe de estado o qual, ao contrário daquele que instituiu o regime neofascista de Kiev, não visou tomar o poder por parte de uma facção ou etnia, contra outra.

No caso da “intervenção” Russa, tal exército ruminante e serviçal, depressa e veementemente condenou o Kremlin pela sua actuação, num acto inaudito, nunca presenciado, impensável e hipócrita de condenação de uma intervenção militar… Tal como no caso do Iraque, Afeganistão, Jugoslávia, Sérvia, Palestina, Síria ou Iémen, também quanto ao Níger, este exército de zombies cerebrais, passou a ignorar, calar ou desconhecer as ameaças que as potências ocidentais estão a levar a cabo para obrigar a ECCOWAS a encetar uma “intervenção militar” em seu nome. Uma vez mais, a “opinião pública” ocidental convive bem como as maquinações que o Ocidente colectivo desenvolve, no sentido de colocar africanos contra africanos, exigindo a potências regionais, como a Nigéria, que façam o trabalho sujo, que o bloco imperialista e hegemónico não quer fazer.

Mas não acaba aqui a hipocrisia, o cinismo e o criminoso sacudimento da “água do capote” de cada um. Se tal “opinião pública” apoiou, aceitou ou se conformou com as sanções unilaterais à Rússia, “porque era um estado agressor”, disseram… Desta feita, os mesmos que as apoiaram contra a Rússia “porque era agressor”, agora apoiam-nas contra o Níger, que é a vítima da planeada agressão.

Daí que eu pergunte: que cor precisam de ter as pessoas para que a “opinião pública” seja com elas solidária? Que língua precisam de falar? De que região ou de que país precisam de ser? O quão ricos têm de ser? Por quem é que têm de se sentir agredidos? E quem é que decide quem é o agressor e quem é a vítima?

Assim, sem descortinar qualquer contradição, esta “opinião pública”, cuja consciência crítica há-de ser uma coisa pavorosa, admite que Joseph Borrel, espanhol de origem e quadro da União Europeia (da Europa, certo?), ordene a uma organização africana que aplique sanções e intervenha militarmente contra outra! Todas as teorias de um Kremlin “imperialista”, “colonialista” e “militarista” que os afligem, logo vão por água abaixo quando o agressor, o imperialista e o colonialista passa a ser, precisamente uma potência ocidental.

O mesmo ódio que sentem por Putin, quando vêem o presidente russo exigir à Ucrânia que se renda, logo se transforma em silêncio, aceitação e complacência, quando quem exige são os EUA, ou quando Macron surge que nem um louco nas TV’s a exigir que seja reposta uma “normalidade constitucional” que apenas à França interessa e que apenas a ela enriquece. E esta “opinião pública” vê fazer isto relativamente a um país que não é o seu, de um continente que não é o seu. E nunca estranham quando, as mesmas TV’s que o transmitem, são as mesmas que nos dizem que a África é livre, que o colonialismo é russo e o chinês, que nós não somos racistas e respeitamos os direitos humanos.

Tudo se torna ainda mais hediondo e contraditório quando, mais recentemente, o Gabão sofreu também um golpe de estado militar e… Surpresa das Surpresas… Não existem ameaças de Macron, exigências de Borrel, sanções, “intervenções”, nada!

Mas, que raio! No caso do Níger…. É a ferro e fogo! No caso do Gabão… Silêncio!

A explicação é tão simples e previsível que até chateia. No caso do Níger, as forças golpistas são de esquerda, de raiz popular, simpatizantes da URSS e agora estão com a Rússia. No caso do Gabão, as forças são de direita, com pouco respaldo popular e manipuladas pela CIA. O facto é que, vendo a CIA que os africanos estão com a França pelos cabelos, sendo mais tolerantes aos EUA, logo se apressou a tomar o movimento subversivo nas suas mãos, antes que fossem as forças populares, anti-imperialistas e anticoloniais a fazê-lo, passando o Gabão a figurar entre os países da África central (a seguir ao Mali, Burkina Faso e República Centro Africana) que o bloco imperialista ocidental já não controla. Trata-se, assim, de uma tentativa de estancar um movimento de libertação imparável.

Se esta dualidade comportamental tudo revela sobre a natureza absolutamente vergonhosa, desumana e imoral do poder ocidental, para a tal “opinião pública” nada se passa. Afinal, ninguém a mandou colocar a bandeirinha na lapela.

Enquanto África se liberta desta desumana indiferença, uma vez mais, pergunto: para essa “opinião pública”, que cor precisam de ter os povos para que sejam dignos da sua fraternidade?

Eu estou com o Níger! Eu estou com África!

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