Confinado ou desconfinado, o pobre lixa-se sempre

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 01/06/2020)

Daniel Oliveira

Não é possível, sem o trabalho de sociólogos, comparar o aumento da covid-19 com a condição social dos infetados. Mas desde o início de maio que sabemos, por trabalhos da Escola Nacional de Saúde Pública, que os concelhos com maiores taxas de desemprego e maiores desigualdades de rendimento eram os que tinham mais casos de covid-19. Olhando para o que está a acontecer em Lisboa, percebemos que são os mais pobres que estão a sofrer mais com o desconfinamento.

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Os concelhos que registam maiores aumentos na região de Lisboa e Vale do Tejo foram Loures, Barreiro, Amadora, Moita, Seixal e Montijo. E não é por acaso que esta é a região mais massacrada. A caricatura irritantemente instalada de uma região privilegiada trata-a como uniforme. Só que Lisboa sofre o preço alto do centralismo, com periferias onde se concentra pobreza, precariedade e desigualdade, sobretudo entre os trabalhadores.

Os surtos na plataforma logística da Azambuja e no bairro degradado da Jamaica – é interessante a abissal diferença de comportamento das autoridades nas duas situações – mostram como há um país que esteve sempre em risco e que, com a pressão do regresso generalizado ao trabalho, levou a primeira pancada. Parece que os centros comerciais vão manter-se fechados.

Não contesto, mas não deixo de achar graça que os momentos de lazer, e não as condições de trabalho e de transporte, sejam a única preocupação que sobra com os pobres. Assim como não deixa de ser revoltante haver quem julgue pessoas que vivem em barracas por não ficarem fechadas em “casa” ou ouvir a ministra da Saúde a responsabilizar os trabalhadores da plataforma logística pelo contágio.

Defendi o urgente regresso das atividades económicas porque também foram os mais pobres quem mais sofreu com o confinamento. O tal estudo do início de maio dizia-nos que um quarto das pessoas que ganham 650 euros mensais perdeu a totalidade do rendimento e isso só aconteceu a 6% dos que ganham mais de 2500 euros. Ao fim de um mês penso que a situação será muito mais dramática. E não é só o rendimento. São as crianças afastadas da escola e sem acesso a computadores e Internet ou casas sem condições para lá permanecer durante quase dois meses.

O confinamento foi uma tragédia para os mais pobres, por causa da economia; o desconfinamento está a ser uma tragédia para os mais pobres, por causa do vírus.

É por isso que tenho recusado o absurdo combate de trincheiras que opõe “desconfinadores” e “confinadores”, corajosos e responsáveis. De um lado e do outro, ouvi absurdas certezas científicas sobre um vírus de que tão pouco se sabia. De um lado e do outro, se falou em nome dos pobres massacrados pelo desemprego ou pela pandemia. Defender a ponderação dos dois fatores sempre foi o menos sexy. Nunca garantirá a ninguém o estatuto de visionário, que percebeu a verdade antes de todos os outros. Mas parece-me que foi e continua a ser a única posição intelectualmente séria.

Quanto à pobreza, a questão é tragicamente mais simples. E resume-se assim: os pobres lixam-se sempre. Lixam-se confinados, lixam-se desconfinados. E é por isso que o problema não é o vírus inesperado ou o desconfinamento inevitável. O problema é a desigualdade. E essa não tem nada de inevitável.

Se houver um terramoto quem se lixa mais são os mais pobres. E quando chega a reconstrução são os mais pobres que são expulsos da nova cidade. Numa sociedade desigual, a catástrofe lixa o mais pobre tanto como o lixa a solução. Porque o problema nunca é a tragédia que bate no pobre, é a pobreza que lhe tira todas as defesas para lidar com essa tragédia.

É por isso que defendo, desde o primeiro dia, que o critério do confinamento e do desconfinamento tinha de ser sanitário e social. E que enquanto continuarmos a ser uma das sociedades mais desiguais da Europa não seremos exemplo de nada. O que corra bem deixará sempre de fora demasiada gente. Os outros, o país que se trama, são os moradores do Bairro da Jamaica ou os trabalhadores da Plataforma Logística da Azambuja. E, para tornar tudo um pouco mais chocante, uns e outros ainda são apontados como responsáveis pelo seu próprio infortúnio.


9 pensamentos sobre “Confinado ou desconfinado, o pobre lixa-se sempre

  1. Na iluminada governação sempre tiveram a mania das grandezas.

    Puseram todo o país em quarentena mesmo que em 80 concelhos o corona nunca lá tenha aparecido.
    Nomeadamente, em quatro ilhas açorianas onde o vírus não apareceu e que, mesmo assim tiveram escolas fechadas e quarentenas. Ninguém informou a governação de que o corona não iria a nado

    Em 25 concelhos os atingidos foram 5 ou menos, o que permitiria uma abordagem mais dirigida às vítimas e seus familiares, em vez de fazerem o pleno do confinamento.

    Em contrapartida não tiveram músculo para fechar a logística da Sonae na Azambuja, com centenas de infetados mas foram duros com os cafés de bairro e pequenos negócios

    Na iluminada governação poderiam ter reparado que o concelho da Azambuja NÂO PERTENCE à AML.

    E que mesmo nos que pertencem à dita AML, os casos covid não têm uma particular relevância numa porção de concelhos periféricos – Alcochete (23) e Palmela ou Sesimbra (37, cada)

    Como gostam de mostrar a sua grandeza mandaram para layoff 1.5 M de trabalhadores e aprestaram-se a receber as reivindicações do tosco empresariato luso, logo de início, como então foi referido

    https://grazia-tanta.blogspot.com/2020/04/a-inspiracao-de-marcelo-depois-de-ver.html

    Preocupações para quê se o OIB vai descer 6.8% e o desemprego aumentar 9.7%? Tudo se resolve com confinamentos generalistas e repressivos

    VL

    • Eu daqui a um mês também lhe digo sem espinhas quem estava mais preparado para ganhar o campeonato e como era óbvio.
      Isso e nem o Costa manda em grandes decisões, nem a oposição ofereceu grandes alternativas.

      • Claro que o PS e o Costa estão uns pontos acima da concorrência. Com o Passos a desgraça teria sido maior, sem dúvida
        Claro, também, que os governos são executantes de interesses mais altos e que a oposição não existe. Costumo, há anos a referir-me ao pentapartido, numa alusão à Itália de décadas atrás
        Quanto ao empobrecimento relativo está garantido

    • Em parte tem razão, mas a razão de não se fecharem a plataformas logísticas é que é por elas que passa toda a nossa alimentação… Aquilo simplesmente não pode fechar.

      • As plataformas logísticas só estão na Azambuja? Alem da Sonae e do Pingo Doce há mais cadeias de supermercados, certamente com os seus canais próprios, não? Supermercados não faltam e, pelos vistos, as exigências sanitárias só se fazem à entrada e junto das caixas onde entra o dinheiro dos consumidores.

        E, nada disso justifica que se não tenha tido os cuidados necessários para proteger aquela gente; e de terem andado a circular em comboios com outras pessoas… até que toda a gente fugiu do comboio

        Muitos desses trabalhadores moram longe e, “naturalmente” levam o vírus acoplado para os locais onde moram e para as suas famílias

        Por outro lado, boa parte dos trabalhadores são asiáticos e brasileiros… com todas as condições para serem submissos, comer e calar. Se morrerem, que importa? Há novas fornadas de brasileiros, bengalis, etc. à espera

  2. O curioso é que apesar destas constatações mais que evidentes o sistema mantém-se porque uma elite burguesa habituada à satisfação de seus egocentrismos, porventura alguns de modo paternalista não prescindem de decidir em nome dos excluídos o futuro destes aliando-se consciente ou inconscientemente ao “arqui-inimigo” dos desfavorecidos para mais os explorarem.

  3. Em parte o Oliveira tem razão, as condições de transporte e trabalho e habitação penalizam os mais pobres.

    Mas por outro lado também não podemos ignorar as aglomerações em bares e as festas surrealistas em tempo de pandemia que vemos nos bairros populares.

    Mesmo á porta da minha casa, bairro semi-popular, tenho um bar onde se aglomeram todos os dias de 5 a 50 pessoas á porta, de manhã à noite.

    Não se pode desculpar tudo com o são “pobrezinhos” porque eu sou tão pobrezinho como eles e não faço essas coisas.

  4. E quem tem pouco mais de 1300€ de vencimento ilíquido (situação na qual me inclui)? Fica com pena dos pobres ou fica com pena de apenas pagar e nunca ser incluído nas grandes discussões deste país? A esquerda finge que não existimos (no fim até desejam isso) e o centro-direita encafua-nos no tal saco de gatos da chamada “classe média”, à qual infelizmente não pertencemos (dos 1300€ ao ordenado mínimo vai um deslize cada vez mais pequeno). Pois é, e nesta confusão toda da Covid-19 toda a gente muito bem pensante tem muita pena dos jamaicanos, dos presos, dos ciganos, mas a pobreza não desculpa tudo!

  5. Quando confinarem as leis de imigração a bem dos votos nos partidos, pode crer que esses bairros deixarão de existir pois o grande problema está aí. Façam como na Islândia ou mesmo na Polónia. Estou farta deste país sem lei.

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