Tanta verdade junta mereceu publicação – take XXVI

(Carlos Marques, in Estátua de Sal, 03/01/2023)


(Este texto resulta de um comentário a um artigo que publicámos de António Garcia Pereira ver aqui. Perante tanta verdade junta, resolvi dar-lhe o destaque que, penso, merece.

Estátua de Sal, 03/01/2022)


Excelentíssimo texto.

Imagino um governo de Portugal com gente do calibre de Garcia Pereira, Mariana Mortágua, e João Ferreira, a cumprir a Constituição, a governar para o povo, e a fazer uma limpeza das “elites”, a encerrar offshores, a acabar com injustiças, e a colocar fim ao centrão da negociata e, por breves momentos, quase me parece possível Portugal ter futuro…

Mas mais de 90% pensam de forma diferente da minha. Querem mais do mesmo, ou já desistiram e são abstenção.
Se na questão do Euro é uma morte lenta, na questão da política interna é um suicídio colectivo.

Nunca os portugueses estiveram tão satisfeitos com a governação como na primeira Geringonça. Nunca os portugueses estiveram tão desiludidos com A. Costa como agora na “maioria” (de 41%).
Mesmo assim, há quem não perceba o que (quem e que partidos) é que fez a diferença…

Insanidade é fazer a mesma coisa uma e outra vez e esperar resultados diferentes – Einstein.

Mas, se calhar, uma parte da população, bem remediada e sem empatia pelos miseráveis, a tal de classe média, não espera resultados diferentes. Sobrepõe-se o seu egoísmo e medo (neste caso irracional) de perder o pouco que tem caso alguma coisa mude realmente.

Marx previu isto. A forma como a certo momento do capitalismo, é a própria pequena-burguesia (já satisfeita com as poucas benesses que o sistema lhe deu) quem impede o sistema de funcionar melhor e de ter as alterações que o possam levar a melhorar a vida de todos.

No caso de outros países, sem partidos dominantes e com parlamentos mais fragmentados (e isso é uma coisa boa, e só anti-democratas dizem o contrário), ainda se vai mudando algo e impedindo a criação de uma máfia de um partido só. Mas em Portugal, como nos EUA, juntam-se os dois grandes males da “democracia liberal” (aka ditadura da burguesia, por oposição à ditadura do proletariado): o comodismo da classe média e a máfia do(s) partido(s) dominante(s).

Não foi para isto que se criou o conceito de DEMOcracia. Ela foi criada para representar o povo, e para permitir mudanças quando a governação vai contra os interesses do povo.
Em Portugal, para além da esmagadora maioria não fazer ideia dos direitos que a Constituição lhes dá, e nem sequer saberem como funciona a lei eleitoral (da batota do PS+PSD), não sabem sequer o que é realmente a Democracia.

Alie-se a isto a impreparação das gerações mais velhas, a superficialidade das gerações mais novas, e a total lavagem cerebral feita pela totalmente corrupta e mentirosa, manipulativa e mal intencionada comunicação social mainstream (em que impreparados e superficiais acreditam como se fosse a aparição de Fátima dos tempos modernos), e temos todas as premissas que me fizeram chegar a uma conclusão definitiva: este país não é para quem quer ter futuro.

É só para os que se governam a si próprios com o dinheiro dos outros, para os da “meritocracia” com a herança dos papás, e para uma classe média que só alheada da realidade se contenta com o país que tem.

Com 554€/mês se estabelecia em 2020 o limiar da pobreza, segundo a Pordata. Com tal valor o número de pobres era de 1.9 milhões após apoios sociais e de 4.5 milhões antes desses apoios. Agora imaginem se esse limiar fosse de facto um valor decente…

Ora, que eu saiba, uma mãe solteira em Lisboa com um só filho tem dificuldade em, simultaneamente, pagar a renda, as contas da eletricidade, gás e internet, as despesas do filho, roupa, etc, e ainda fazer todas as refeições até ao fim do mês mesmo tendo um salário mínimo de 760€/mês.

Ah, e tem de trabalhar 40 ou mais horas semanais para os receber, pois o P”S” votou ao lado da direita fascista contra a proposta da esquerda das 35h no sector privado. E as horas extraordinárias são pagas pela metade, e são quando o patrão quiser. E se for despedida, vai com uma mão à frente e outra atrás.

Não lhe sobra sequer dinheiro para se poder sindicalizar. Nem sequer viver a vida. É todos os dias uma escrava das contas e da máquina de calcular. A “liberdade” é algo de que ouviu falar, mas nunca pode realmente usufruir.

E diz-nos o Eco que em média o poder de compra dos salários em 2023 estará ao nível de 2014. Sendo que o de 2014 estava pouco ou nada acima do que era no último ano do escudo.

É só a mim que isto causa um tremendo nojo e uma vontade de fazer cair o regime? Uma indignação que até faz comichão, e vontade de correr aqueles 3 milhões de eleitores rosa/laranja e €uropeístas à chapada?

Isto já não é “só” insanidade, isto já é sado-masoquismo!


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Automutilação

(Manuel Loff, in Público, 18/10/2022)

Manuel Loff

Sem termos recuperado da contração da economia durante os confinamentos, entrámos agora numa crise inegavelmente induzida pela invasão russa da Ucrânia, mas sobretudo pela guerra económica que a UE abriu contra a Rússia e, afinal, contra ela própria e a sua economia.


Há dias, uma amiga mostrou-me fotos de alarmes instalados em embalagens de peixe congelado num dos grandes supermercados da área metropolitana de Lisboa. Claro que sei que isto se faz em lojas de todo o tipo de bens caros, mas com comida…? Nunca tinha visto. Lembrei-me logo do tribunal que condenou em 2012, em pleno Governo da troika, um sem abrigo que tinha roubado um champô e uma embalagem de polvo. Nem o facto de ter sido detetado por um segurança e ter devolvido tudo impediu o Pingo Doce de levar o processo a tribunal. Para dar o exemplo. “Existe em Portugal uma justiça para ricos e outra para pobres. O pobre, se rouba um pão, vai preso. Um rico, se rouba um milhão, sai ileso”, ironizou então o advogado de defesa (PÚBLICO, 31/1/2012).

Levamos vinte anos consecutivos de austeridade (mais orgulhosa e ideológica sob os governos da direita, mais encapotada e disfarçada sob os do PS). Metade deles foram a chamada “década perdida” (2001-10), a que se seguiu a crise da nacionalização da dívida privada que nos pôs a todos a pagar os buracos da banca; em 2015-19, curta pausa de reversão de cortes de salários e pensões acompanhada das famosas cativações, para logo a seguir entrarmos no “Grande Confinamento” de 2020-21 e numa contração súbita sem precedentes.

A pobreza, que só deixara de crescer nos quatro anos da “geringonça”, voltou em força. Há meses o INE revelou que ela se agravou significativamente em 2019-21, logo antes e durante a pandemia. Em 2020, mais de meio milhão de “trabalhadores com emprego estavam na situação de pobreza devido aos baixíssimos salários que auferiam. Também o desemprego é uma causa importante da pobreza. Em 2020, 46,5% dos desempregados viviam abaixo de limiar da pobreza.”

Em 2021, havia 2,3 milhões de portugueses em risco de pobreza ou exclusão social, 258 mil mais que em 2020. “E o número de vezes que o rendimento dos 10% da população mais rica é superior ao rendimento dos 10% mais pobres aumentou, entre 2019 e 2020, de 8,1 para 9,8 vezes mais.” (Eugénio Rosa, www.eugeniorosa.com, 6/1/2022 e 7/6/2022)

Pobreza. Fome. No último Expresso, Vera Lúcia Arreigoso escreveu sobre os “utentes que vão às urgências para receber comida, e não tratamento”. Eles “não são propriamente idosos, (…) e tendem a permanecer em observação até à distribuição de comida, seja almoço ou jantar. (…) Os profissionais estão atentos, pois a crise económica que se avizinha prenuncia um agravamento deste fenómeno.” Que se avizinha, não: que já cá está.

Sem termos recuperado da contração da economia durante os confinamentos, entrámos agora numa crise inegavelmente induzida pela invasão russa da Ucrânia, mas sobretudo pela guerra económica que a UE abriu contra a Rússia e, afinal, contra ela própria e a sua economia. “A resposta europeia à invasão russa da Ucrânia foi desmesurada, ignorou completamente interesses e fragilidades, curvando-se num servilismo acrítico perante Biden” (Viriato Soromenho Marques, DN, 1/10/2022).

Ela é tão despudoradamente parcial que adotou uma bateria de medidas que jamais Bruxelas e a NATO aplicaram ao cortejo de guerras ilegais do “Fim da História” – e para quê, se a maioria foi da responsabilidade dos EUA e/ou dos seus aliados. A tal ponto é a UE que paga o preço e os EUA que beneficiam que se pode falar de automutilação da economia europeia, desencadeando aquilo a que Ricardo Cabral tem chamado “uma tempestade perfeita”: a subida e o racionamento do preço do gás destrói capacidade industrial, agrava défice comercial, desvaloriza o euro, aumenta a inflação (Ricardo Cabral, PÚBLICO, 3/10/2022).

O passo seguinte já o conhecemos: mais austeridade. E mais pobreza. Entre nós, “ao defender aumentos salariais a taxas muito inferiores à taxa de inflação”, o Governo está a impor “um corte de talvez 4%-5% no rendimento real da generalidade das famílias” que “desestabiliza em vez de contribuir para estabilizar a economia.” (Ricardo Cabral, PÚBLICO, 10/10/2022)

Prosseguir a guerra e retórica inflamada a imitar Churchill. É o que temos. Dispense-se a ONU, os diplomatas, os negociadores, fale-se apenas de heroísmo, mísseis, mapas, Zelensky. E os pobres que aguentem. Não é o que eles sabem fazer?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico


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A visão distante de um mundo sem pobreza

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 30/07/2020)

Alexandre Abreu

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 As Nações Unidas criaram a figura de Relator Especial (Special Rapporteur) na década de 1980. Trata-se de um cargo temporário, atribuído a personalidades de reconhecida competência normalmente exteriores à organização, que confere o mandato de investigar, aconselhar e relatar acerca de um determinado aspeto ou dimensão dos direitos humanos. Existem Relatores Especiais dedicados a países especificos, como o Haiti ou a Palestina, e a temas diversos, como a Violência Contra as Mulheres ou as Execuções Extrajudiciais. A portuguesa Catarina de Albuquerque, por exemplo, foi Relatora Especial para o Direito à Água e Saneamento entre 2008 e 2014.

O mais recente Relator Especial para a Pobreza Extrema e Direitos Humanos, o jurista australiano Philip Alston, terminou recentemente o seu mandato de seis anos. Neste contexto, entregou no início deste mês o seu relatório final à Comissão dos Direitos Humanos, ao qual deu um título que podemos traduzir por algo como “O estado alarmante da erradicação da pobreza”. É um documento breve (19 páginas), mas notável pela frontalidade dos alertas que lança e das críticas a que procede. Em particular, o relatório de Alston inclui duas críticas especialmente iconoclastas: que a pobreza extrema não está realmente a ser erradicada; e que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) não são adequados para a erradicação da pobreza extrema global.

A ideia que a pobreza extrema não está realmente a ser erradicada assenta numa crítica à medição desta com base no limiar internacional de 1,90 dólares definido pelo Banco Mundial, que serve de referência para a maior parte dos estudos e análises. À luz deste critério, o número de pessoas em situação de pobreza extrema reduziu-se de 1,9 mil milhões em 1990 para menos de 750 milhões em 2015, o que constitui uma evolução notável e tem servido de justificação para muitas declarações congratulatórias acerca do progresso do desenvolvimento global. Porém, como assinala Alston, dois terços desta redução ocorreram num único pais, a China, sendo os progressos no resto do mundo muito menos relevantes. Para além disso, o rendimento diário de 1,90 dólares que serve como referência absoluta internacional não foi definido com referência a um qualquer cabaz de necessidades básicas e não permite um nivel de vida minimamente digno. Se procurarmos controlar estes dois efeitos, retirando por momentos a China da análise e utilizando por exemplo um limiar de rendimento um pouco maior (2,50 dólares), verificamos que o número de pessoas em situação de pobreza extrema praticamente não se alterou entre 1990 e 2015.

A segunda crítica – à adequação dos ODS e da Agenda 2030 – é igualmente iconoclasta, na medida em que estes constituem a meta-narrativa fundamental de valores e objetivos não só para as Nações Unidas como para muitos governos nacionais e para a generalidade dos atores bilaterais, multilaterais e não-governamentais do desenvolvimento global. Alston reconhece que os ODS têm tido um impacto positivo e importante ao nível da consciencialização e mobilização da opinião pública global. No que toca ao combate à pobreza, no entanto, a Agenda 2030 caracteriza-se por uma disjunção fundamental entre a ambição dos objetivos declarados (a erradicação) e a insuficiência dos recursos, estratégias e processos. O financiamento público é insuficiente, a estratégia de mobilização de financiamento privado é inadequada e há uma gritante falta de atenção às dimensões políticas da pobreza. Se quisermos realmente erradicar a pobreza extrema global, conclui o relatório – e trata-se realmente de uma escolha coletiva alcançável –, é necessário tomar opções políticas e de políticas consequentes com esse objetivo: reforçar a redistribuição, combater a desigualdade, promover maior justiça fiscal, generalizar os sistemas de proteção social, recentrar o combate à pobreza na ação dos governos em detrimento da filantropia privada e da mobilização de financiamento privado, e dar mais voz e poder às pessoas em situação de pobreza e exclusão.

Os alertas constantes deste relatório são especialmente prementes à luz do impacto previsível do Covid-19 e da crise climática sobre a deterioração da pobreza global, mas são também especialmente adequados na medida em que recolocam a discussão sobre a pobreza no plano dos direitos humanos.

Isso recupera o princípio importante e plenamente justificado de que os direitos económicos e sociais são direitos humanos com tanta dignidade e importância como os direitos civis e políticos – uma tradição que remonta às primeiras décadas de existência das Nações Unidas mas que foi em grande medida eclipsada pelas últimas décadas de predomínio do liberalismo, o qual privilegia injustificadamente os segundos e relega os primeiros para um segundo plano meramente complementar e aspiracional – não como um direito a ser exercido, mas como um resultado que desejavelmente será alcançado.

Na realidade, como afirma um outro especialista no tema, Michael Cichon, a persistência de uma proporção elevada da humanidade abaixo de um limiar de existência minimamente digno, num mundo em que bastaria reafectar uma pequena percentagem da riqueza global para que isso fosse evitado, é uma das mais graves violações de direitos humanos com que nos confrontamos.