A demissão do Primeiro-ministro

(José Manuel Correia Pinto, in Facebook, 07/11/2023)

Em que país vivemos nós?

Que país é este em que a Procuradoria-Geral da República emite um comunicado em que dá conta de que está em curso uma investigação incidindo sobre concessões de exploração de lítio, um projeto de uma central de energia a partir de hidrogénio, um projeto de construção de “data center” desenvolvido na Zona Industrial e Logística de Sines, e que ela envolve membros do governo e até o Primeiro-ministro? E em que, mais se dá conta, que tal investigação está sendo levada a cabo mediante a realização de buscas domiciliárias e não domiciliárias, nos espaços do chefe de gabinete do Primeiro-ministro, no Ministério do Ambiente e Acão Climática, no Ministério das Infraestruturas, por poderem estar em causa, designadamente factos suscetíveis de constituir crimes de prevaricação, corrupção ativa e passiva, de titular de cargo público e tráfico de influência, tendo, em consequência, sido emitidos mandados de detenção fora de flagrante delito, por perigo de fuga, continuação da atividade criminosa, perturbação do inquérito e perturbação da ordem e tranquilidade públicas, do chefe de gabinete do Primeiro-ministro, do Presidente da Câmara Municipal de Sines, de dois administradores da sociedade “Start Campus” e de um advogado consultor/contratado por esta sociedade; sendo ainda constituídos arguidos outros suspeitos da prática de factos investigados, designadamente o Ministro das Infraestruturas Presidente do Conselho Diretivo da Agência Portuguesa do Ambiente?

Se a ação discricionária ou mesmo arbitrária do Ministério Público neste género de casos e análogos é jurídica e politicamente condenável, quanto mais não fosse por um passado recheado de espetáculos de baixo nível que põem em causa a honra e a dignidade dos arguidos, desprezando valores fundamentais inscritos na nossa Constituição, como as decisões finais deste tipo de processos têm sobejamente demonstrado, imagine-se o que não se poderá dizer quando Ministério Público desce ao nível mais rasca de uma filial de uma estação de televisão de escândalos, ao terminar o seu comunicado, dizendo:

“No decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do Primeiro-Ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto suprarreferido. Tais referências serão autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, por ser esse o foro competente”.

O QUE É ISTO?

A invocação por suspeitos do nome e da autoridade do Primeiro-Ministro” – Mas o que é isto? Onde chegou a impudência do Ministério Público? Invocar publicamente o que dizem os seus detidos (mas o processo não está em segredo de justiça?), por via de uma qualquer referência ao Primeiro-ministro, cujo contexto ou mesmo a veracidade se desconhecem, para lançar a odiosa suspeita de que está envolvido em traficância política, corrupção e tudo o mais que constitui a ladainha habitual de uma extrema-direita reacionária, diariamente refletida nos noticiários de uma qualquer estação rasca de televisão de notícias, é algo com que até hoje nunca nos tínhamos deparado.

E o caso ainda é mais grave se, como me disseram, entre a primeira ida do PM ao PR e a segunda, o PR foi também visitado pela Procuradora Geral da República que não poderá deixar de lhe ter dito que o PM também estava “implicado”. O que significa que Marcelo, a ter acontecido este contacto, não pode igualmente deixar de estar implicado no modo soez como a notícia acabou por ser dada.

Como isto passou todas as medidas, tem de ter consequências. Se já é gravíssimo que o MP e os que com ele decidem possam invocar arbitrariamente legislação excecional para deter suspeitos, reconduzindo-nos assim a um tempo semelhante ao do “império da PIDE”, mais grave se torna ainda que o MP – na impossibilidade de o mesmo poder fazer relativamente ao Primeiro-ministro -, lance a suspeita própria de um político vulgar para alcançar os objetivos que efetivamente já alcançou!

Este texto, para que não haja dúvidas, não tem nada a ver com simpatias políticas, seja com o PS seja – ainda muito menos – com as políticas dos seus governos. E é exatamente neste contexto que a seguir se apontarão os principais responsáveis por esta e outras idênticas situações que permanentemente têm ficado impunes.

Assim, o primeiro grande responsável é o Presidente da República, a quem cabe cumprir e fazer cumprir a Constituição, garantindo o regular funcionamento das instituições. Marcelo Rebelo de Sousa que transformou a Presidência da República num espaço de comentário político-social-futebolístico, etc., que a propósito e a despropósito em tudo se mete, mesmo correndo o risco de fazer tristes figuras, como ainda há dias aconteceu com um assunto muito sério, não tem manifestado, ao longo do seu mandato, a menor preocupação por este desvario funcional do Ministério Publico, desde as violações do segredo de justiça, passando sempre pelo aviltamento público dos visados e pelo penoso espetáculo do seu julgamento público, até à incompetência profissional e inconsequência das investigações realizadas. No presente caso agravadas pela cúmplice atuação com a PGR, quanto ao modo como a notícia é dada publicamente. Sobre este tema é que Marcelo deveria reunir o Conselho de Estado e buscar nele os pareceres que sua capacidade de ação política, pelos vistos, não alcança.

Em segundo lugar, o atual Primeiro-ministro, António Costa, tem igualmente a sua grande dose de responsabilidade por, a coberto do oco refrão “à Justiça o que é da Justiça”, ter permitido, com a sua inação política, sermos conduzidos a esta situação, previsível depois das múltiplas ocorrências semelhantes durante o seu mandato, apesar de Rui Rio lhe ter oferecido uma reforma séria e democrática do “Estatuto do Ministério Público”.

A Assembleia da República tem igualmente silenciado este assunto, o que é duplamente grave, pois esse silêncio significa que ela não passa de uma caixa-de-ressonância do Governo que teoricamente suporta, e que os deputados, individualmente considerados, não passam de funcionários dos partidos.

Finalmente, não se pode deixar de lamentar que os juristas das Faculdades de Direito não se insurjam contra o modo como vem sendo atuada a lei orgânica do Ministério Público, bem como a interpretação/aplicação que dela tem sido feita pelo Ministério Público relativamente a certo tipo de processos, assim como as normas aplicáveis do Código de Processo Penal.

Não, não podemos aceitar viver num país cujo Governo esteja à mercê do Ministério Público! Não, não podemos!


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O Escorpião

(Por André Lamas Leite, in Facebook, 12/03/2023)

Nunca votei em Marcelo Rebelo de Sousa, pelo simples facto de me parecer uma pessoa em quem não se pode confiar.

Deu-me algumas aulas na Faculdade de Direito do Porto, nas quais se limitava a contar estórias, sem qualquer conteúdo programático, fazendo gala em chegar como o grande sábio com direito a todas as mordomias.

Bastava estar minimamente atento ao seu percurso como comentador para perceber que foi sempre um cata-vento e que, não duvidando que se considere católico, existe uma clara falta de sintonia entre o que prega e o que faz e nunca se importou – pelo contrário – em capitalizar alguma simpatia apenas por via da religião que professa. Deste prisma, está muito longe de Guterres, esse sim, alguém que sabe separar as águas.

Marcelo não tem amigos e inimigos, mas peças de xadrez que vai movimentando consoante as suas conveniências de poder, de popularidade, outras que desconhecemos ou simplesmente porque se diverte imenso com conversas e jogadas palacianas. Ninguém se esquecerá de episódios como o da “vichyssoise” ou do “lelé da cuca”, dirigido a Balsemão e que lhe valeu um corte de relações deste último e um gatinhar de Marcelo atrás de Balsemão para o perdoar, pois certamente lhe interessava.

Ninguém conhece verdadeiramente Marcelo, nem ele próprio, pois que, como é já um lugar-comum, o que tem de inteligência, tem de maldade. Acha que se preocupa com os interesses dos portugueses, mas, na verdade, não consegue desligar-se da paixão narcísica que sente e pelo culto da auto-personalidade. Marcelo deve beijar frequentemente a sua imagem ao espelho e considerar todos os demais como seres menores em torno de um ser de luz. Uma espécie de Nossa Sra. de Fátima cercada pelos pastorinhos.

Tanto não o conhecemos – ou melhor, conhecemos a sua interesseira volatilidade – que, esta semana, desfez o Governo a que sempre “pôs a mão por baixo” (nas suas próprias palavras). Não me recordo de ver um Presidente da República (PR) fazer comentários tão diretos à atuação de um Governo. Talvez algo só comparável ao “Portugal, que futuro?” organizado por Mário Soares contra Cavaco.

Uma clara demonstração de propositado incumprimento das competências constitucionais do Chefe de Estado, que nunca conseguiu largar o fato de comentador e que, por isso, cada vez que fala, menos gente o ouve. Quando disser algo realmente importante, todos pensarão: “lá está o Marcelo com as suas coisas”. Nada de pior pode acontecer a um PR que perder o instrumento mais importante da sua magistratura de influência.

Bastante fragilizado, o Governo já não é uma carta segura para Marcelo que, por isso, diz que este foi um ano perdido, fala no executivo como de comida requentada se tratasse ou de um cavalo cansado. Definitivamente, os sinais que se tornaram ostensivos com o inadmissível puxão de orelhas a Ana Abrunhosa ou com o simulacro recente de sintonia à porta aberta entre Belém e São Bento, pelos vistos transformada em elevada tensão quando os jornalistas desapareceram, tudo devido à fraca execução do PRR, são agora fraturantes.

Já não compensa apoiar o Governo. Mas, sobretudo, já não importa o país, ainda que Marcelo tenha achado todos estes anos que devia viver em relação simbiótica com o executivo. E isto é assustador, por demonstrar uma total falta de projecto político para o país, que também cabe ao chefe de Estado. Marcelo sempre foi muito melhor comentador calculista que executor – na verdade, nunca executou nada, e talvez ainda bem. Faz lembrar os militares que elaboram milhares de cenários, escrevem sobre a guerra, participam em exercícios, mas nunca sequer dispararam uma arma. Marcelo é, nesse ponto, a personificação perfeita dos portugueses: um eterno treinador de bancada – e talvez isso explique a simpatia de que foi gozando com os seus “bitaites” da política ao futebol, passando pela religião e culinária.

Não discordando do diagnóstico do PR, estas coisas não se dizem em público, abrem crises desnecessárias e são até caricatas com o chefe de Estado a dizer que não dispensa o poder de dissolução parlamentar. Mas por que carga de água havia de o fazer? Não se encontra o mesmo constitucionalmente previsto? Ou terá sido um acto falhado em que Marcelo se traiu a si próprio ao admitir que a sua atuação nada mais é que uma navegação populista à vista?

Quando a extrema-direita tiver assento num futuro Governo, Marcelo será tido como um dos seus principais responsáveis. E a essa acusação sempre fugirá e argumentará, pois que o voto de silêncio não é o seu forte.

Se o católico Marcelo tivesse tomado tal voto, há muito teria deixado o hábito. Pena é que o hábito de não se saber nunca o que realmente pensa sobre nada, por ser capaz de defender tudo e o seu contrário, façam dele o personagem político que, nos futuros livros de História, mais difícil será de catalogar. Marcelo é Marcelo e as suas “marcelices”. E ele adora ser assim.

Quando o país mais precisava de um Presidente com espinha dorsal, temos este ser cuja coluna vertebral é mais flexível que a interpretação abjeta de vários bispos sobre as claras orientações de Francisco.

Citando o grande filósofo luso-descendente Baruch Espinoza, “o que Paulo afirma sobre Pedro diz-nos mais sobre Paulo do que acerca de Pedro”.


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Um presente envenenado

(Daniel Oliveira, in Expresso, 06/01/2023)

Daniel Oliveira

Esta maioria absoluta foi original. Aconteceu depois de seis anos no poder sem maioria. Surgiu no que parecia ser o fim de um ciclo, com um primeiro-ministro que se preparava para a gestão de uma saída que lhe permitisse dar um salto europeu. Nasceu cansada. Ela pode ter sido um presente envenenado para o PS e para o país. Apesar de garantir, teoricamente, mais estabilidade do que a ‘geringonça’, é muito mais instável. Porque a estabilidade política não depende de maiorias aritméticas, mas da estabilidade social que elas ofereçam. E de um propósito. Na ‘geringonça’, era reverter as imposições da troika. Na pandemia, era a emergência sanitária. Perante uma crise inflacionista e sem receitas diferentes da direita, qual é o propósito de António Costa?

Ao contrário do que acontecia na ‘geringonça’, de que era a alma, Pedro Nuno Santos era um corpo estranho neste Governo. Permanecer nele destruiria o seu caráter, porque Costa nunca desistiria de o fragilizar e humilhar. E destruiria o seu programa, porque corresponde a tudo o que se tem oposto. Não sai fortalecido e, longe do Governo, perde parte do poder que tem no PS. Se o Governo correr bem, estará longe e falhará a oportunidade. Mas tem 45 anos e muito tempo para regressar. Se correr mal, e há tanto por onde correr mal, será o mais bem colocado para assumir um caminho alternativo para os socialistas.

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Não há, nem haverá enquanto Costa tiver as rédeas do poder, contestação interna ao líder. Mas há cada vez menos entusiasmo na sua defesa. É o cansaço, é a arrogância, é o que quiserem. Mas também é a sensação de que o PS está a fazer o que criticou a Passos. É por isso que a ofensiva da direita se concentra em casos. E defender o partido de casos quando falta uma causa desgasta a moral das tropas. Não é a primeira vez que o PS se verga aos dogmas económicos da direita, mas agora fá-lo depois de um Governo popular, com apoio de toda a esquerda e em que se envolveu em alguns confrontos ideológicos, uns mais reais do que outros.

António Costa está fechado no seu núcleo cada vez mais apertado. Mais do que João Galamba e Marina Gonçalves serem ou não “pedronunistas”, estas escolhas foram determinadas pela impossibilidade de ir para lá do que já existe no Governo. Por culpas próprias e porque todos os potenciais convidados perceberam que ir para a política é ir para a forca. Fora da política ninguém quer lá entrar, dentro dela ninguém quer entrar num Governo que se desfaz.

Porque não há alternativa, porque as alternativas são demasiado assustadoras, porque o Presidente o segura, Costa até se pode manter no poder mais quatro anos. Duvido. Mas extinguiu-se a sua estrela, talvez logo depois de conquistar a maioria absoluta. Porque ela foi determinada por uma conjuntura, não por uma vontade: o resto da esquerda estava condenada a escolher entre apoiar um Governo onde já não mandava ou provocar uma crise política de que seria a principal vítima; Rui Rio estava amarrado ao fantasma de Ventura, depois do erro que cometeu nos Açores, e as sondagens apontavam para um empate depois da vitória de Carlos Moedas em Lisboa, traumatizante para a esquerda. Não foi o entusiasmo dos eleitores que nos trouxe aqui. Foi o medo. E, nas mãos de um primeiro-ministro exausto com uma pandemia seguida de uma guerra, esta maioria absoluta em plena crise internacional pode ser fatal para o PS. Depois de Cavaco, o PSD só esporadicamente voltou “ao pote”. Só que agora é mais perigoso do que isso. Os tempos, na Europa e no mundo, são outros.

Apesar da inflação, da obsessão de Medina pelo corte à bruta do défice e da instabilidade interna do Governo, o PSD tem dificuldade em ultrapassar a barreira dos 30%, mesmo nas sondagens que dão uma queda do PS. Os que fazem análises simplistas imaginaram que se viesse alguém conotado com Passos Coelho esvaziaria o campo à sua direita. Se isso pode acontecer com o IL — esta crise é péssima para a sua agenda —, não acontecerá com o Chega. O PSD vai sinalizando casos, a extrema-direita vai ganhando com eles. Ainda por cima Montenegro não tem perfil para dar “banhos de ética”. Quanto à crise económica e social, que era onde podia disputar os votos ao PS, tem pouco a dizer. Primeiro, porque quando um passista diz que não cortaria nas pensões reais ninguém acredita. Depois, porque Montenegro é um taticista puro. Está à espera que a crise bata mais forte para culpar as escolhas do PS e nunca dizer quais seriam as suas, achando que o poder lhe vai cair no colo. Só que esse tempo acabou. Quem fatura com os escândalos é a extrema-direita. Quanto mais o Chega cresce nas sondagens, mais o PSD fica seu refém e mais assusta o centro que precisa de conquistar.

Como ficou provado há um ano, a função corretiva de uma crise política depende da existência de uma alternativa. E ela depende de um líder convincente, da clareza na relação do PSD com a extrema-direita e da existência de um programa de Governo que o distinga. Sem alternativa, a crise social manifesta-se em pequenos ou grandes casos, distantes dos problemas das pessoas. Se houvesse uma crise política sem que estas condições estivessem satisfeitas, o mais provável é que se iniciasse um período de crises sucessivas, como outras democracias conheceram, atirando-nos para um impasse. Nos próximos anos, se o Governo se for autodestruindo sem que o PSD se consiga afirmar como alternativa, Portugal pode encaminhar-se para a desestruturação do seu sistema partidário, com um enfraquecimento dos dois principais campos políticos, como aconteceu em vários países europeus.


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