“Para não dizerem que não falei de flores”

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 31/03/2023)

Miguel Sousa Tavares

Antes de entrar no habitual cardápio de desgraças e indignações, deixem-me começar por um elogio: um elogio à ilha da Madeira. Desde antes da pandemia que não ia lá e, antes disso, passei quase uma vida inteira sem lá ir, cumprindo a promessa feita de não pôr lá os pés enquanto a Madeira fosse governada por um aprendiz de ditador que se divertia a insultar os “cubanos” do continente, a ameaçar com o separatismo e a desdenhar o esforço dos contribuintes para resgatar da miséria aquele pedaço de jardim atlântico. Posso achar muita graça a muitas graças dos políticos, mas não acho graça nenhuma aos que brincam com os meus impostos.

Mas, depois disso, desde que o dr. Jardim bolinou da Quinta da Vigia, em cada nova visita à Madeira constato que, afinal, ele — que certamente será uma excelente e engraçadíssima pessoa — não era nem indispensável nem insubstituível para o progresso da região. Porque a Madeira está cada vez melhor: mais arrumada, mais organizada, mais limpa, mais bonita, mais sedutora. E o Funchal está quase uma cidade modelo, agora que a parte velha foi recuperada e tem dezenas ou centenas de bares e restaurantes, nenhum com cadeiras ou guarda-sóis de plástico patrocinados por refrigerantes, mas todos decorados com brio e imaginação e onde a simpatia para com os turistas, portugueses incluídos, não se confunde com servilismo — ambas as coisas uma lição para o turismo do continente. Tudo está incrivelmente cuidado — ruas, praças, casas, jardins, canteiros, iluminação pública, indicações de trânsito — naquilo que só pode ser uma vontade colectiva e assumida de tornar a vida de locais e forasteiros mais agradável, sem cair num exibicionismo ostensivo e saloio. Num mundo que nos parece em acelerada decomposição e onde o turismo é quase sempre sinónimo de depravação, a Madeira surge como um oásis no meio do mar, dir-se-ia surreal de tão perfeito e tão frágil. Mas frágil, como todos os oásis. E esse é o seu desafio para o futuro: não quebrar essa fragilidade por excesso de ambição.

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ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

2 E vamos, então, às desgraças. Eu sou a favor de sociedades e países multiétnicos e multiculturais. Por todas as razões — e também, mas não principalmente, as económicas (que, todavia, desafiam a hipocrisia dos nossos supremacistas xenófobos) — entendo que Portugal só tem a ganhar com a imigração de diferentes grupos étnicos para cá. Desde que os tratemos como cidadãos de pleno direito e não como mão-de-obra escrava, como fazemos com tanta leviandade. Aliás, agora que o mais racista dos povos, o inglês, tem um primeiro-ministro da Inglaterra indiano e vai ter um paquistanês na Escócia, só mesmo uma franja de lusitano-trogloditas é que se pode lembrar de carpir pela pureza da cidadania. Acho curioso que estes cristãos de missa e mão no peito, como André Ventura, vejam o diabo à solta nas ruas porque um imigrante afegão, num gesto de loucura que qualquer português aqui nascido poderia ter cometido e comete, matou duas pessoas à facada, mas não vê pecado algum naqueles que os alojam em contentores e os fazem trabalhar 12 horas por dia, sem contratos nem qualquer protecção social. De cristãos destes está o Inferno cheio. Mas, a partir das miseráveis e obscenas declarações de André Ventura sobre o crime na comunidade ismaelita, pelo menos uma coisa ficou esclarecida: ele resolveu um dilema que Luís Montenegro não conseguia ultrapassar por si só.

A partir de agora, caída a última máscara de Ventura e dos seus seguidores do lúmpen social que albergamos, o presidente do PSD, um dos partidos fundadores do regime democrático em que vivemos, sabe que não pode continuar mais no seu jogo dúbio em relação ao Chega. Por mais que isso lhe custe, por mais que isso facilite a vida ao PS, Montenegro e o PSD sabem agora, de uma vez por todas, que este Chega não é frequentável. Há limites para a falta de decência: não queremos viver num país onde André Ventura e as suas ideias possam fazer parte de qualquer solução de governo. Porque eles não são solução, são problema.

3 As opiniões dividem-se sobre o real alcance que terá a taxa zero de IVA sobre 44 produtos alimentares. A maior parte dos consumidores não acredita que ela venha servir para fazer baixar o preço dos bens incluídos: ou porque daqui até à sua entrada em vigor eles irão subir o suficiente para absorver a baixa ou porque, no final, a cadeia que fixa os preços encarregar-se-á de fazer repercutir a seu favor o IVA zero e até ganhar com isso. Sinal dos tempos, essa maioria de consumidores atribui à distribuição (supermercados) a responsabilidade principal pelo aumento de 23% no preço dos produtos alimentares no último ano — um dos maiores da zona euro. E para isso contribuíram não apenas os lucros incríveis das principais cadeias de distribuição no último ano como também um raciocínio simples: se a produção não entrou em ruptura e o consumo não aumentou, uma inflação destas só pode dever-se a especulação na distribuição. E também concorreram coisas como a conferência de imprensa de Pedro Soares dos Santos, o patrão da Jerónimo Martins, ao anunciar lucros recordes de 590 milhões de euros. É extraordinário que uma empresa com a dimensão daquela não tenha ninguém que aconselhe o seu CEO a abster-se publicamente de se dirigir aos seus clientes e ao país no tom de arrogância e más maneiras como o que foi utilizado. Pela parte que me toca, o recado ficou entregue e digerido: não me verá mais nos seus supermercados. Com o que, aliás, só tenho a ganhar.

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4 Neste país facilmente se passa de bestial a besta. Bastou à CEO da TAP, Christine Ourmières-Widener, já oficialmente despedida com justa causa, apresentar postumamente lucros de 65 milhões no exercício de 2022 para que de esbanjadora passasse a heroí­na e até a candidata a um prémio milionário de gestão. Mas, salvo melhor opinião, parece-me difícil que ela ou o Rato Mickey não conseguissem apresentar lucros de gestão quando: a) Portugal registou uma brutal recuperação do turismo e todas as companhias aéreas tiveram idêntica recuperação de actividade; b) a TAP beneficiou de centenas de milhões de euros de isenções fiscais concedidas pelo Estado; c) poupou 100 milhões em cortes salariais que não poderão durar para sempre; d) praticou preços de usura nas linhas em que ainda mantém um monopólio de facto, como o Brasil e certos destinos nos EUA, que também não durarão para sempre; e) e poupou dinheiro degradando até um nível extremo o serviço de bordo aos passageiros. Ou seja, sem estas circunstân­cias ou ajudas anormais, a TAP teria dado prejuízo, como sempre. E, mesmo com elas, à razão de 65 milhões de lucro por ano, demoraria 35 anos, sem contar com a inflação, a devolver aos contribuintes os 3,2 mil milhões que lá pusemos. Felizmente que, ao contrário do anterior, o novo ministro da tutela já esclareceu que esse dinheiro, afinal, não é para devolver.

5 O défice das contas públicas em 2022 ficou em 0,4% do PIB, o que constitui uma proe­za muito além das previsões mais optimistas de toda a gente. Mas, atenção, tudo isto é enganador. O Estado não gastou menos nem gastou apenas 0,5% a mais. Em termos nominais gastou muito mais do que isso; o que aconteceu foi que as receitas subiram ainda mais, muito mais do que se esperava: 9000 milhões a mais de cobrança fiscal, à conta da inflação, sobretudo. Ou seja, enquanto os portugueses empobreciam, o Estado enriquecia. E as poupanças que fez na despesa não foram com as despesas correntes — com o funcionamento dos seus serviços e os seus funcionários — mas com as despesas de investimento, a despesa produtiva, como de costume. Temos assim um Estado rico num país pobre, que tributa alegremente a riqueza produzida, amealhando o dinheiro dos impostos para o gastar consigo próprio. Ver o défice público diminuir em percentagem do PIB não é má notícia. Mas melhor seria se essa descida resultasse da poupança do Estado, quer na sua despesa corrente, quer na carga fiscal cobrada, deixando margem para a economia fazer crescer o PIB de forma saudável.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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Desacatos, imigração e direita

(João Ramos de Almeida, in Blog Ladrões de Bicicletas, 22/01/2019)

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Atenção, cidadãos. Os órgãos de comunicação social portuguesa parecem querer arranjar rapidamente um caso semelhante aos vividos em países europeus onde a extrema-direita surge impante.

E nem é preciso ver isso num programa televisivo de informação – como foi o caso do programa SOS TVI – em que o pivot apresenta um líder convidado como Mário Machado dizendo algo como: “Dizem que a extrema-direita é xenófoba, racista e violenta. O que tem a responder a essas pessoas?” O convidado rebate a ideia, mas finaliza dizendo – sem que o pivot conteste – que, quando esteve na cadeia, quem lá estava em maioria era a raça negra e que isso se deve talvez porque “essa raça tem um problema com o crime”.

Nem é preciso ir tão longe. Face aos “desacatos” – palavra muito repetida pelos jornalistas que estão a cobrir o que se passou nos últimos dias no bairro Jamaica, no centro da cidade de Lisboa, e esta noite em Odivelas – a SIC passou uma peça com excertos de uma entrevista ao presidente da Cáritas em que ele frisava que era preciso afastar este ambiente de criação de uma insegurança que levava a um esforço securitário porque, ao longo da História, se provou que não respondeu aos problemas. A nota de rodapé frisava: “Presidente da Cáritas diz que casos acabam por criar relutância à imigração”.

Ao arrepio desses cuidados e aproveitando os “desacatos”, a SIC Notícias decidiu escolher para tema de debate da manhã:

“Estamos ou não num momento particular de tensão entre as populações mais desfavorecidas e as forças de segurança? Olhamos também para a investigação SIC, revelada ontem, sobre a falta de meios na PSP e na GNR. Parece-lhe que fica em causa a capacidade de resposta das forças de segurança? Que medidas são necessárias para fazer face às necessidades tanto da PSP como da GNR?”

A primeira senhora que falou no fórum acabou por dizer: “Eu não era racista, mas agora sou. (…) Queremos uma polícia com a devida segurança“. A pivot rematou no final: “Esta senhora quer se sentir segura e reclama mais meios para a polícia”. Um condutor de meios de Loures disse: “O racismo não passa de um mito que estes senhores utilizam para se desculpar, é hábito neles usarem – julgam que são donos e senhores destes bairros e não respeitam ninguém, nem nada nem ninguém e quando as forças da ordem são chamadas por norma a intervir nestes bairros, facilmente acusam as autoridades de xonofobia, racismo, perseguição. Infelizmente, não passam de uns cobardes, escondem-se atrás de umas associações, pagas e ajudadas pelos contribuintes.” A pivot“É a opinião do António… a falar aqui dos problemas de racismo que existem no país”. A palavra passa para a Fátima em Genebra, que é porteira. A sua opinião é contra os políticos que “desrespeitam a polícia que combate os bandidos”. Outro cidadão disse: “Esses senhores da raça negra é que são racistas. Cometem o crime e depois culpam a polícia de certas situações”. A pivot“Vivemos de facto tempos específicos. Estamos num momento particular da discussão… Mas os números dizem que Portugal é um país seguro. Como se justifica? (…) O racismo é o principal problema da polícia?”

Mas o porta-voz da PSP, convidado e presente em estúdio, não se demarcou suficientemente.

Frisou que na maioria das vezes, a PSP “é confrontada com situações que nada têm a ver com racismo”. Palavras que, mesmo sem o desejar e porque não contestou as intervenções do fórum, acabaram por encaixar com o racismo demonstrado pelos cidadãos: “A PSP não é uma instituição racista (..) mas muitas vezes somos conotados com racismo quando intervimos (…) é uma capa, uma desculpa, para desvalorizar aquilo que é uma actuação da polícia”.

E a pivot mais nada disse. Pôs ponto final ao programa.

Há uma frase irónica que diz: “Errar é humano, repetir o erro é jornalismo”. Mas esta ideia diz pouco sobre os mecanismos comportamentais dos jornalistas que os levam a insistir no erro.

Por que razão, os jornalistas insistem em criar um ambiente de tensão entre “as populações mais desfavorecidas e as forças de segurança”?

Primeiro, poder-se-ia frisar as palavras usadas e o posto de visão em que o jornalista se coloca. O termo “classes mais desfavorecidas” pressupõe que o jornalista se coloca acima delas, e é verdade: Quem está à frente das câmaras, geralmente já não sabe o que é ser desfavorecido. E já nem se está a falar da palavra favorecida que merecia todo um comentário. Segundo, parece correr o pensamento de que, mais tarde ou mais cedo, a extrema-direita será dominante na Europa e que, por isso, o mesmo acontecerá em Portugal. E isso é notícia ou vai ser. E tudo o que possa cheirar a isso entronca no que vai ser notícia e torna-se notícia já hoje. Um movimento como os coletes amarelos foi promovido pelas televisões, com uma certa ajuda da PSP, apesar de ter sido um fracasso. Terceiro, existe o fenómeno de mimetismo: se todos fazem, eu vou fazer o mesmo, porque se não o fizer, o espectador muda para o concorrente. Quarto, sabe-se lá se os jornalistas não pensem mesmo que algo como a extrema-direita – anti-política, autoritária e anti-comunista – seja necessária em Portugal.

Tudo isto faz esperar o pior. Resta saber qual vai ser a força política que, aos olhos das televisões, assumirá essa forma.


Fonte aqui