Devemos entregar a presidência do Tribunal Constitucional à extrema-direita?

(Francisco Louçã, in Expresso, 17/05/2022)

O próximo presidente do Tribunal Constitucional pode vir a ser um jurista que recusa o direito ao aborto no caso de violação. Estamos condenados a seguir o trumpismo?


Deitando água na fervura, o Presidente veio a terreiro explicar que uma futura alteração da lei do aborto será inviável, pois o tema “deixou de existir como questão em Portugal”. O contexto não parece favorecer essa convicção tranquilizante: o Supremo Tribunal dos EUA está prestes a anunciar a anulação do acórdão de 1973 que aceitava a constitucionalidade do aborto e, como sempre na nossa era, é nesse país que se levanta a vaga que atravessa o mundo. E, mesmo no nosso recanto, a ministra da Saúde, que não é suspeita de transigência na matéria, meteu-se numa alhada sobre o assunto, chegando a misturar a dramatização dos efeitos do aborto, para explicar uma bizarra bonificação salarial aos médicos de família que o evitassem, e uma não menos estranha insensibilidade ao comparar o direito ao aborto ao direito a fumar.

Talvez por causa deste nevoeiro ameaçador, o Presidente escolheu discutir a sua memória pessoal e dar a entender, mesmo que por meias palavras, que, depois de uma longa resistência anteriormente bem sucedida, se tinha enganado ao votar no referendo contra a legalização do aborto, ou que as suas razões caducaram perante a realidade comprovada pela prática de uma medida elementar de saúde pública.

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Entretanto, o assunto mereceu este regresso ao passado por uma circunstância surpreendente: o Tribunal Constitucional estará a concluir, se não tiver concluído, o processo de cooptação de um novo juiz indicado pela ala direita da instituição, que poderá vir a ser a ser o seu próximo presidente, e o indicado, António Almeida Costa, seria o mais trumpista dos mandatários do Palácio Ratton, tendo-se destacado precisamente pela recusa do direito de escolha pela mulher.

Foi o DN que investigou o percurso do candidato, citando, entre outros, uma sua publicação de 1984 – que o autor, passadas quase três décadas, nem refuta nem corrige – em que apresenta a doutrina da proibição do aborto, a não ser na única exceção em que a vida da mãe esteja em risco e o feto seja inviável. No entanto, é quanto ao aborto em caso de violação que a sua teoria constitucional melhor se revela, e é um monumento com requintes explicativos que merecem um estudo de motivação.

Em primeiro lugar, diz Costa, citado pelo DN em detalhe, são “os casos de gravidez proveniente de violação muito raros”, pelo que “no plano jurídico, e dentro da boa técnica legislativa, tal circunstância afasta, desde logo, a indicação ética ou criminológica como fundamento para a legalização do aborto”. Esta noção da raridade do crime para justificar a ignorância das suas consequências é curiosa.

Mas mais curioso ainda é como Costa chega ao metódico cálculo da raridade da gravidez causada por violação. Escreve ele: “o próprio ciclo de fertilidade da mulher faz com que a concepção só se possa verificar durante um período de um ou dois dias e, mesmo aí, apenas com 10% de possibilidades”, ou seja, a probabilidade de o violador provocar uma gravidez poderia ser calculada entre 0,3 e 0,6%. E continua o nosso jurista: “depois, na larga maioria das violações não se verifica um coito completo”.

Suponho que ninguém lhe explicou como é a vida mas, na sua teoria das probabilidades, a “maioria” dos casos com coito incompleto deveria baixar as probabilidade para quanto? Ponhamos metade, 0,15 a 0,3%, para respeitar este pensamento original. Há mais: “em terceiro lugar, investigações médicas demonstraram que um forte choque emocional, como o que resulta da violação, altera o ciclo menstrual da mulher, impedindo ou interrompendo a ovulação – pelo que, mesmo que ocorra no período de fertilidade, a cópula tem poucas probabilidades de conduzir a uma gravidez”, ou seja, mesmo que haja ovulação e que o violador tenha acertado no dia, o milagre do medo anulará a gravidez.

E ainda mais: “finalmente, fatores ligados ao próprio violador diminuem ainda mais a possibilidade de aquela se vir efetivamente a verificar”, dado que “a experiência (Qual experiência? De quem? É melhor nem perguntar) demonstra que, muitas vezes, o violador é, ele próprio, estéril devido a outros comportamentos sexualmente aberrantes.”

Portanto, baixa probabilidade, com a ovulação a desaparecer e o sexualmente aberrante violador a tender para estéril, zerou o crime. Isto é o que se pode chamar uma elaboração doutrinária de um grande jurista, fundamentando que, perante tão escassa probabilidade, a violação, a resultar numa rara gravidez, deve ser consumada pela obediência da mulher, que será punida em caso de aborto.

Se há algo de patético nesta argumentação tormentosa, convém considerar que os direitos da mulher passaram a ser uma das definições da democracia e que não é de racionalidade nem de Direito Constitucional que se trata nesta batalha, mas de convocar uma emoção politicamente arrasadora, a saudade da ordem que inferioriza a mulher. E há uma lição na persistência da extrema-direita, ao criar uma identidade em torno da violência contra a mulher: os seus dirigentes estão convencidos de que esse rasgão na sociedade, evocando os seus fantasmas, tem uma útil função identitária e é eleitoralmente mobilizadora a longo prazo.

É certo que, no imediato, os resultados são contraditórios, Trump perdeu graças aos votos das mulheres e o anunciado ataque pelo Supremo Tribunal parece fazer renascer as esperanças dos democratas para as eleições intercalares do outono. No entanto, em Espanha e Portugal o crescimento do Vox e do Chega estão associados a um voto predominantemente masculino e, no primeiro caso, a rejeição dos direitos das mulheres passou a ser um manifesto político, ao ponto de a anulação da lei contra a violência de género ter sido a primeira condição para o acordo da extrema-direita com o Partido Popular no governo de Castela e Leão – e a condição foi aceite.

A estratégia da polarização deste supremacismo macho, ou da “coutada do macho ibérico”, como escreveu um juiz português numa sentença a desculpabilizar uma violação, é vista pela extrema-direita como uma parte importante da afirmação dos seus valores reacionários. A sua estratégia é tentar levantar a seu favor a história da civilização que ignorou a democracia e que colocou a mulher no lugar da subalternidade.

O Washington Post publicou esta segunda-feira um estudo que mostra que já um em cada cinco dos deputados e eleitos estaduais republicanos faz parte de uma rede ou de uma milícia da extrema-direita. A identidade em torno da proibição do aborto é talvez o fator comum mais forte nesta mainstreamização republicana da extrema-direita e esta vaga chegará sempre a Portugal. Ou já desembarcou e só agora nos vamos apercebendo de onde quer colocar a sua bandeira. Se os juízes do Tribunal Constitucional cooptarem António Almeida Costa e eventualmente o elegerem presidente, daremos um passo de gigante neste sentido.


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Como tramar os jovens

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 08706/2021)

É um desastre geracional. Num mundo laboral de contratos experimentais e de trabalho à peça ou à jorna, ou de trabalhadores transformados em empresários em nome individual para efeito do não pagamento da segurança social pela entidade contratante, só pode haver uma corrida para o fundo da tabela salarial e para a desvalorização do trabalho qualificado.


Afinal era mesmo inconstitucional, diz o Tribunal, que chumbou a norma que permitiu a duplicação do período experimental para 180 dias, nos casos em que o trabalhador à procura de primeiro emprego já tenha tido um contrato a prazo de 90 ou mais dias. O Tribunal aceitou a opção daquela lei noutras matérias, como sobre a caducidade dos contratos coletivos ou mesmo sobre o período experimental para desempregados de longa duração. Mas a sua decisão, mesmo que somente sobre um dos pilares do ajustamento ao Código Laboral aplicado pelo anterior governo, então apoiado pelo PSD, tem um impacto profundo.

O facto é que esta duplicação do período experimental tem uma história perversa. O Governo estabelecera um acordo com a esquerda sobre alterações ao Código Laboral, incluindo a redução da sucessão de contratos a prazo e outras normas que foram apreciadas como protetoras dos direitos sociais. Festejado o sucesso da negociação ao final de uma tarde prometedora, soube-se no dia seguinte que, pela madrugada ou alvorada do dia, tinham sido acrescentadas algumas medidas negociadas à sorrelfa com as associações patronais, incluindo o nefando período experimental (e a curiosa extensão do tempo para os contratos verbais).

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A rutura com a esquerda foi amplificada pela perceção desta má fé negocial. Compreende-se assim porque é que a questão da revisão do Código Laboral, que já era um ponto fulcral das negociações entre o Governo e a esquerda, passou a ter este interdito atravessado: o PS nunca aceitou rever aquele acordo que negociou de madrugada com as associações patronais e alegou mesmo essa razão para recusar um acordo para a legislatura com o Bloco, como lhe foi proposto depois das últimas eleições. A engenharia do trabalho experimental, do trabalho temporário e da precarização tornou-se uma questão de honra para o Governo. Agora, o Tribunal Constitucional determinou que um dos pontos essenciais dessa mudança do Código é ilegal.

O episódio tem uma leitura política e constitucional, mas tem também outra dimensão maior, estratégica, que responde à seguinte questão: é a precarização a forma adequada para garantir emprego aos jovens ou, pelo menos, ser-lhes-ia prejudicial mexer nestas regras? Se bem percebo o argumento de Ricardo Costa, na última edição do Expresso, a sua resposta é que não se deve alterar esta lei, que teria servido a criação de emprego, ideia retomada por muitos comentadores e decisores. Escreve ele que “a generalização da precariedade nos serviços e a uberização do trabalho são mudanças brutais mas que só podem ser combatidas com inteligência e um forte crescimento económico. Quem acha que altera isso numa lei está enganado. Mais grave: pode prejudicar os jovens, que foram os mais castigados nesta crise”. Pergunta por isso, de modo retórico, “se a recuperação do emprego a partir de 2014 se fez com esta legislação, qual é o sentido de a mudar agora?”. O argumento é óbvio, não mexam nas leis do trabalho.

O problema é que os factos não parecem conviver bem com qualquer proposta situacionista. É evidente que, sendo a uberização e plataformização uma mudança violenta, somente o crescimento económico cria emprego. Só que, se o trabalho continuar a ser precarizado, esse caminho trama os jovens. Os dados publicados na semana passada pela Fundação José Neves demonstram esse perigo. Estudando os anos desde a crise da dívida soberana, incluindo portanto cinco anos de recuperação económica até 2019, os resultados são constrangedores: os jovens qualificados, com ensino superior, perderam 17% de salário. E, depois de tanto crescimento de emprego, foram postos de lado: têm agora uma taxa de desemprego de 19,4%, o triplo do desemprego médio nacional. A “recuperação do emprego a partir de 2014, com esta legislação” não lhes serviu. Acresce que 15% dos jovens licenciados estão a trabalhar abaixo das suas qualificações. Para as mulheres, pior ainda, o fosso salarial agravou-se com o progresso da sua formação: o desnível salarial entre homens e mulheres é, segundo a Fundação, de 21%, mas chega a 32% no caso das mulheres com mestrado.

É um desastre geracional. E é um processo consolidado pela precarização: num mundo laboral de contratos experimentais e de trabalho à peça ou à jorna, ou de trabalhadores transformados em empresários em nome individual para efeito do não pagamento da segurança social pela entidade contratante, só pode haver uma corrida para o fundo da tabela salarial e para a desvalorização do trabalho qualificado. Os empresários que esfregam as mãos de alegria pelas margens de curto prazo geradas por esta devastação social, ou o Governo que apregoe este sucesso, não compreendem o vazio que estão a criar. Ou compreendem bem demais.


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Um dramalhão em três atos serve o país?

(Francisco Louçã, in Expresso, 30/03/2021)

Houve um momento enternecedor quando, esta segunda-feira, alguns jornalistas perguntaram ao primeiro-ministro se iria desencadear uma crise política em resposta à promulgação pelo presidente das três leis sobre apoios sociais. Costa deu a resposta que se esperaria, depois da pergunta que era inevitável – naquele jogo toda a gente sabia o seu papel, tantas vezes foi o cântaro à fonte e ainda não é desta que lá deixa a sua asa.

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De facto, não houve nenhuma ocasião relevante ao longo dos últimos anos em que o governo não mostrasse cogitar uma boa crise eleitoral: foi assim no último ano da geringonça, foi também o que o levou a exigir maioria absoluta nas eleições de 2019, foi assim mais uma vez nas vésperas deste último Orçamento, até pode ter acontecido noutros momentos. E se, de todas as vezes, a questão era absurda, neste momento seria grotesco criar essa tensão, como o primeiro-ministro bem sabe e, aliás, afirmou.

Para mais, todos os alvos estariam errados, provocar um confronto com o Presidente é impossível e menos ainda em nome de uma cruzada para recusar apoios sociais, depois de o governo ter dito que a sua única regra era “tudo o que for necessário”. Tanto a pergunta quanto a resposta de rotina sobre a crise política foram simplesmente uma cena de telenovela.

Apesar dessa fantasia, que só o governo tem alimentado, tem sido sempre em modo dramalhão que a ameaça do recurso ao Tribunal Constitucional tem sido esgrimida. No Orçamento Suplementar de 2020, o governo ameaçou recorrer ao Tribunal contra medidas que não estavam previstas na proposta de lei, com o argumento esdrúxulo de que o governo poder propor ao parlamento a correção do Orçamento, mas que este teria que o aprovar de cruz e não poderia decidir nenhuma outra medida. Houve carta lacrada e doutrina a rodos para este efeito. O governo acabou por recuar e deixou o Tribunal em paz, ao constatar que uma das medidas cuja legitimidade queria contestar tinha sido proposta pelo seu próprio partido. Primeiro ato.

Veio depois o Orçamento 2021, em que o parlamento aprovou que sem auditoria à conta não haveria pagamento ao Novo Banco. Novo dramalhão, foi anunciado com ar de enterro de Estado que tinha rebentado uma “bomba atómica”, que o governo iria defender a honra da República no Supremo Tribunal Administrativo ou no Tribunal Constitucional, ou nos dois à vez. O crime era de monta, o parlamento tinha aprovado o critério que o próprio primeiro-ministro tinha anunciado uns meses antes. O resultado foi que a querela não chegou nem ao Supremo Tribunal nem ao Tribunal Constitucional, foram ambos poupados a esta inutilidade. Segundo ato.

Agora, antecipando-se à decisão do Presidente no caso destes três decretos sobre apoios sociais a que o parlamento introduziu alterações, o governo cometeu a imprudência de veladamente ameaçar Belém, tendo ainda disparado nos últimos dias uma campanha mediática: na sexta-feira, dizia que custarão 38 milhões por mês (ontem já tinha subido para um total de 250 milhões) e que já se pagou um ror de dinheiro em felizes apoios sociais. Nada que resista a uma observação minuciosa: os apoios agora promulgados são razoáveis para não excluir alguns pais em apoio aos filhos (mas as aulas estão a recomeçar e portanto o custo será diminuto), para defender os profissionais de saúde, e ainda para aplicar como regra dos apoios a referência a 2019 e não a 2020, quando já não havia rendimentos. Tanto que é assim que o PS, com o seu voto no parlamento, veio reconhecer que pelo menos uma das medidas era imperativa. No fim das contas, a despesa talvez venha a ficar mais próxima do que o governo indica para um mês do que de qualquer efabulação orçamental que agora usa para impressionar a opinião pública. E, claro está, veio a ameaça de ir ao Tribunal Constitucional. Terceiro ato.

Pode ser que também desta vez, como das anteriores, o governo encontre uma justificação para não mandar as leis para o Tribunal. Se o fizesse, seria inútil, a decisão viria depois das vacinas e não é de crer que o ministério pense em mandar paisanos para recuperarem os curtos apoios sociais um ano depois de terem sido pagos, abanando um acórdão na cara dos cidadãos espantados para lhes confiscar as carteiras. E, no curto prazo, o seu prejuízo político é imenso, mostraria uma mesquinhez e um calculismo para reduzir apoios tão escassos a gente tão necessitada, que é tudo menos o que o governo quer que seja a sua imagem.

Há ainda a razão institucional, sabendo que o Presidente fechou a porta à contestação constitucional, ao afirmar, com razão, que não há nenhuma violação da lei-travão, dado que a despesa prevista não será esgotada – no final do exercício orçamental, como no ano passado, o governo vai festejar ter poupado na conta. Hoje mesmo, o governo veio confirmar indiretamente este argumento do Presidente, explicando que poderia pagar ao Novo Banco mais de 400 milhões, mesmo que não estejam previstos no Orçamento, dado que tem poder legal para deslocar verbas de uma rubrica para outra, desde que não ultrapasse o total previsto.

Não sei se o governo se atreve a um debate público em que num prato da balança está o ajustamento entre rubricas para pagar 400 milhões a um banco com práticas tão suspeitas e, no outro prato da balança, a sua recusa soberba em ajustar as rubricas para dar a mais de cem mil vítimas da crise um pouco mais do que os 219 euros que agora são a sua sobrevivência mensal.

Assim sendo, pode ser que a S.Bento só venha a interessar salvar a face e manter a pose de conflito com o parlamento, fingindo ignorar o presidente, mas evitando meter-se por caminhos de disputa legal que, se ganhasse, seria em tempo inútil, sendo mais provável que perca de qualquer modo.

Fica uma lição, a de que o governo reagirá a futuros problemas deste tipo recorrendo ao seu instinto, que é o dramalhão. Resta saber se, quando o fizer pela enésima vez, os jornalistas ainda se lembrarão de lhe perguntar se desta vez é que é.