A REVOLUÇÃO DE OUTUBRO

(Entrevista a Fernando Rosas, in Expresso, 04/11/2017)

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O PATRIMÓNIO IDEOLÓGICO E CULTURAL DA REVOLUÇÃO DE OUTUBRO NÃO PERTENCE AOS RUSSOS MAS À HUMANIDADE QUE AQUELA QUIS EMANCIPAR


De que forma se olha cem anos depois para a Revolução de Outubro, dentro e fora da Rússia? Fernando Rosas, historiador, analisa a tentativa de criação de uma memória seletiva da revolução por parte do atual poder russo. Compara Estaline e Putin, mas sublinha que o património ideológico e cultural da revolução não pertence aos russos mas à humanidade. Se a esquerda que tomou o Palácio de Inverno acabou por se burocratizar e militarizar no decurso da guerra civil, a esquerda atual é plural e não acredita em verdades absolutas. Passado o período de refluxo subsequente à queda do Muro de Berlim abre-se a novos campos de luta, desde os direitos das mulheres à defesa do ambiente. Sem esquecer o combate à “desmemória” que quer fazer de outubro de 1917 um mero golpe de Estado dos bolcheviques e não um movimento social. Para Rosas, que esta tarde participa na Universidade Nova de Lisboa na última sessão do congresso “Cem Anos da Revolução de Outubro”, a pior negação da memória é fazer crer que, afinal, nada aconteceu há cem anos.

Na Rússia pouco se comemora este centenário… 

Não é bem assim. A comunidade académica tem total liberdade para se debruçar sobre o assunto. As autoridades, essas, têm diferentes sensibilidades, desde os que acham que a data é para esquecer, aos que ao mais alto nível reaproveitam o que lhes convém, desde a memória da II Guerra Mundial aos símbolos do Exército Vermelho. Criam uma memória seletiva e heroica para legitimar o papel internacional que a Rússia quer continuar a ter. Mas o património ideológico e cultural da revolução não pertence aos russos mas à humanidade. Mesmo após a degenerescência da revolução ficou uma mensagem de esperança que pertence às esquerdas europeias que se reveem nesse ideal, anunciado ainda que não cumprido.

Desde a anexação da Crimeia fala-se numa nova URSS e num novo Estaline. É assim? 

Estaline, que toma o poder após a morte de Lenine [1924], passa de obscuro secretário-geral a um novo czar que retoma em muitos aspetos a estratégia imperial. O Pacto Germano-Soviético [1939] pretendeu esconjurar os efeitos dos Acordos de Munique através dos quais as potências ocidentais tentavam empurrar Hitler para Leste. Tinha cláusulas secretas que previam a devolução à Rússia do leste da Polónia, dos estados bálticos e da Finlândia, ou seja, a anulação das perdas territoriais do Tratado de paz de Brest-Litovsk com os alemães [1917]. Durante a Guerra Fria a estratégia imperial estalinista vai fazer dos partidos comunistas nacionais meros apêndices da política externa da URSS. Bem longe da ideia de 1919 da Internacional Comunista e da revolução mundial. O socialismo num só país era inviável e só podia levar à autarcia. Putin, nos nossos dias representa a reação do nacionalismo russo à implosão da URSS e à perda de território e de peso internacional. Volta a querer estabelecer um espaço imperial de influência com criação de estados-tampão, neste caso junto à Ucrânia e Bielorrússia. A anexação da Crimeia é a sua grande vitória em termos de reconstrução da ideia de influência da Rússia. Do ponto de vista interno há uma condenação de Estaline, mas do ponto de vista externo há uma recuperação da sua imagem como marechal da Guerra Patriótica [II Guerra Mundial] que continua patente nos museus. Se há uma continuidade estratégica entre Estaline e Putin, a legitimação ideológica é que é diferente.

Porque degenerou a revolução? Uns dirão que foram as circunstâncias. Outros que era inevitável devido ao carácter autoritário e antidemocrático do pensamento marxista. Qual é a sua posição? 

Deixemos Marx em paz, que não tem culpa do que se passou. A ideia da inevitabilidade da degenerescência posta nesses termos é um processo de intenções ideológico. Mas o socialismo num só país só podia dar no que deu. A questão é onde se começou a perder o pé. Diria que foi em 1918/22 com a guerra civil. Antes de novembro de 1917, Lenine chegou a admitir que, conquistando os bolcheviques a maioria nos sovietes, que eram democráticos, organizados de baixo para cima e armados pelos soldados da frente, seria possível pressionar o governo provisório e fazer uma transição pacífica. Mas isso não aconteceu. O poder só foi conquistado em Petrogrado e Moscovo, neste último caso com alguma dificuldade. Lenine aceitou a perda de território da paz de Brest-Litovsk com os alemães para salvar a revolução. Talvez não esperasse uma guerra civil, inclusivamente com intervenção militar aliada ao lado dos Brancos. Contra todas as expectativas não se repetiu o que se passara com outras revoluções feitas em nome da emancipação dos trabalhadores e posteriormente esmagadas, como as de 1848 [Primavera dos Povos] e 1871 [Comuna de Paris]. A revolução vence mas à custa de um preço terrível: militarização dos sindicatos e dos sovietes, ditadura do partido, economia de guerra, esmagamento da revolta dos marinheiros de Kronstadt, reaproveitamento de oficiais czaristas e até de instituições do império. Se tivessem podido ler Foucault teriam ficado a saber que as instituições reproduzem a ideologia…No verão de 1917, Lenine tinha escrito “O Estado e a Revolução” onde admitia a possibilidade de uma deliquescência da máquina do Estado através dos órgãos de vontade popular. Deu-se o contrário: militarismo, violência, autarcia. Ao estudar o período de 1918/22, que conhecia mal, verifiquei que Lenine tomou consciência dos efeitos dramáticos da guerra civil. As tendências num partido desde sempre marcado pelo aceso debate interno tinham sido proibidas, a questão das nacionalidades resolvida com brutalidade por Estaline e os revolucionários de Kronstadt esmagados. Então Lenine tentou garantir que não faltasse a comida através da aplicação da Nova Política Económica, com alguma economia de mercado fiscalizada pelo Estado, nomeadamente nos campos. Estaline destruí-la-á, mandando milhares de pessoas para os gulags. Ainda seria possível fazer marcha atrás? Já doente, Lenine escreve que o partido e os sovietes se tinham burocratizado de forma grotesca. Num momento de tensão dramática alerta para os perigos representados por Estaline mas era tarde. Nos anos 30 todo o comité central da Revolução de Outubro tinha desaparecido com as purgas e os processos de Moscovo. Ficaram os ideais que continuam a ser património da esquerda emancipatória, nas suas múltiplas variedades de hoje.

Mesmo depois da queda do Muro de Berlim? 

Depois da queda do Muro e da implosão da URSS vieram a TINA [Frase de Margaret Thatcher, “There is no alternative”/não há alternativa] e a teoria do fim da História com o triunfo do capitalismo. Iniciou-se um discurso de criminalização, não só desta revolução como da própria ideia de revolução. Outubro foi reduzido a um mero golpe de Estado, quando foi o resultado de um processo histórico. Os próprios sovietes existiam desde 1905. Entrou-se num processo a que chamaria de “desmemória”, ou seja, é como se não tivesse acontecido nada… Contudo, à medida que se assistia à falência das políticas neoliberais, voltava a olhar-se para as coisas de outra maneira. Ressurgiam as correntes marxistas. Digo “as” porque não há um marxismo mas vários e a esquerda tem de se adaptar à pluralidade. Conseguiu-se vencer o processo de desmemorização e daqui até São Petersburgo não haverá uma universidade onde não se tenha analisado Outubro.

O espaço tradicional da esquerda não começou a ser ocupado por populistas como Le Pen ou Trump? 

O final do século XX é marcado por um grande refluxo das esquerdas. Era quase preciso pedir desculpa para dizer que se era marxista. Era pouco menos do que ser um terrorista suspeito ou um lunático. O refluxo foi total, sociológico, político e é muito interessante estudá-lo. Houve um refúgio no individualismo. Houve medo, até porque coincidiu com a precarização das relações laborais, falências e despedimentos. As pessoas desindicalizavam-se e deixavam de acreditar no que quer que fosse. Mas os tempos da TINA passaram e as esquerdas recompuseram-se, ainda que de uma forma muito diferente. Passou-se das verdades absolutas à pluralidade e às diferentes aproximações ao ideal emancipatório. O campo das alienações a combater alargou-se. O próprio conceito de proletariado mudou. Um operário industrial pode ganhar mais do que alguém num call center ou até do que um engenheiro acabado de formar. Surgiram novas causas como a situação da mulher na sociedade ou o respeito pelas minorias sexuais. A emancipação é também isso. A causa dos animais também é uma causa ecológica e esta é cada vez mais importante. Entregue a si próprio o capitalismo manifesta uma tendência suicidária e não se autorregula. Veja-se Trump e os acordos de Paris. Estaline, no tempo dele, também devia pensar que os recursos naturais eram infinitos, mas não são.

A solução governativa portuguesa deve alguma coisa a uma nova leitura da Revolução de Outubro? 

Foi antes de mais uma resposta pragmática a um governo de direita que liquidou a economia e a sociedade portuguesa através de medidas brutais contra o trabalho, futuro dos jovens, etc. Havendo uma parte do PS que, contrariando a tendência do resto da Europa, queria combater o neoliberalismo e fazer alguma redistribuição de rendimentos, revogar as medidas mais agressivas da precariedade de trabalho, mesmo de forma limitada, seria suicídio não a apoiar. Se nos anos 30 os liberais conservadores abriram caminho ao fascismo, nos nossos dias a rendição da social-democracia ao liberalismo teve efeitos desastrosos em toda a Europa, veja-se o resultado das eleições na Alemanha, França ou Espanha. As críticas da direita a este Orçamento do Estado que nem sequer repõe a situação pré-troika mostram que não estão arrependidos da governação que fizeram. A nossa direita sempre viveu e explorou à sombra do Estado, mas quando este inverte um pouco que seja esta política gritam que vêm aí os Guardas Vermelhos como em 1917…

 

Para a nossa direita radical o Papa é do MRPP

(José Pacheco Pereira, in Público, 30/04/2016)

Autor

              Pacheco Pereira

É muito interessante ver aquilo que são os bas-fonds da nossa direita radical, entre comentários, blogues e twitter.


Peço desculpa ao Papa por usar o seu Santo nome em vão. Peço desculpa ao MRPP ao chamá-lo para estas coisas entre a santidade e asneira. Mas é muito interessante ver aquilo que são os bas-fonds da nossa direita radical, entre comentários, blogues e twitter.

Não, não estou a falar do PNR, estou a falar de apoiantes do PSD e do CDS, do extinto PAF, muitos “jotas”, mas também gente adulta que enfileirou nos últimos cinco anos do “ajustamento”, vindas de alguns think tanks e amadores da manipulação comunicacional que se formaram nestes anos. São também alguns colunistas no Observador, no Sol, no extinto Diário Económico e nos sites que estes jornais patrocinam com colaboração gratuita para formar uma rede de opinião que funciona para pressionar os órgãos de comunicação que, muitas vezes, de forma muito irresponsável, a ampliam em “informação” como oriunda das “redes sociais”. Não são um grupo muito numeroso, mas escrevem todos os dias e em quantidade, parecem estar de patrulha nas caixas de comentários e no twitter e são muito agressivos. Não se coíbem em usar citações falsas ou manipuladas, boatos, calúnias e insultos (Costa é o “monhé” e o “chamuça”, por exemplo). É na vida política portuguesa um fenómeno novo e não adianta dizer que o mesmo existe à esquerda, porque não é verdade.

Não estou a falar de um obscuro subproduto das proclamações mais comedidas de partidos como o PSD (embora raras) ou do CDS, mas de uma realidade mais profunda e espelhar visto que o tom e o mote são dados por colunistas e “pensadores” de direita mais elaborados. Para eles, Portugal é socialista desde o 25 de Abril, com excepção dos anos do governo Passos-Portas, e é governado por uma “oligarquia” de políticos e sindicatos ao serviço do tamanho do estado, como garantia dos seus proventos. Este conceito de oligarquia é interessante porque inclui os funcionários públicos, o aparelho sindical, todos os que fazem greve em empresas públicas, e todos os políticos que são apresentados como o braço armado dessa oligarquia. A oligarquia muito curiosamente não inclui os grandes empresários, os homens da finança, os lóbis junto do poder político, como os escritórios de advogados de negócios, e os donos dos offshores. Bagão Félix faz parte da oligarquia, junto com Carvalho da Silva, Boaventura Sousa Santos, e Ana Avoila, mas Eduardo Catroga, Carrapatoso, Ferraz da Costa, Bruno Bobone e Paulo Portas não.

O PCP é o Diabo, e o seu anticomunismo é o da Guerra Fria em versão salazarista, embora sejam muito amáveis com Putin (como Trump, aliás), com os chineses e com subprodutos do comunismo de partido único como o MPLA. Gostam do Partido Comunista Chinês, dono da EDP e da REN e de muito mais coisas, e não gostam do PCP. O BE, para eles, é hoje quem governa Portugal junto com os comunistas e são uma “raparigada” esganiçada. O PS tornou-se um partido da esquerda radical e tudo o que não alinhe com o “ajustamento” e a sua ideologia, são perigosos esquerdistas e socialistas. Depois de mim, e de Manuela Ferreira Leite, soma-se agora, no PSD, José Eduardo Martins que, como todos sabem, é um perigoso esquerdista. São todos também “socratistas”. A julgar por aquilo que eles consideram esquerdista, radical, comunista, o nosso bom Papa Francisco é do MRPP. Pior ainda, está muito à esquerda do MRPP.

Por que razão os nomes dos que usam ou fazem offshores em Portugal não me surpreende…

… Nada. Quando surgiram as notícias dos “papéis do Panamá” eu fiz uma lista mental, que aliás enunciei a alguns amigos. Até agora está lá quase tudo, mas ainda faltam alguns. Não é preciso ter qualquer dote especial de adivinhação, basta saber que tipo de pessoas com dinheiro em Portugal “estão sempre em todas”. E a barragem de gente, advogados em particular, que encheu os ecrãs de televisão para nos explicar que os offshores e ter dinheiro em offshores é legal, o que faz, e sabem o que fazem, é protege-los. Mas não estão sozinhos, a comunicação social que adoptou o “economês” como linguagem (aquilo a que Teodora Cardoso chama “racionalidade económica”), que é capaz de se exaltar com mil e uma coisas pequenas, acaba por mostrar uma especial “neutralidade” no tratamento dos offshores. À quinta notícia, separada cirurgicamente de uma semana, o efeito é o da mirtridificação, ou seja, o veneno já não faz efeito, porque já estamos habituados. Nenhum dos grandes dos offshores, aqueles que não se lembram de os ter feito, como se fosse uma coisa trivial, vai perder um tostão daquilo que perderiam se tivessem que pagar impostos devidos. E todos os que gravitam no mundo empresarial-comunicacional-político, e são vários, vão continuar a ter todas as tribunas que tinham como se nada acontecesse, sem sequer haver quem lhes pergunte, com as perguntas tipo HardTalk da BBC, sobre o que fizeram. É por isso, que nada vai ser feito sobre os offshores e é por isso que há muita injustiça inscrita em sociedades como a nossa.

A lição de Fernando Rosas

Conheci o Fernando Rosas numa reunião clandestina num pinhal de Aveiro destinada a organizar a participação dos esquerdistas no Congresso da Oposição. O objectivo era impedir a tentativa de controlo que o PCP se preparava para fazer de várias secções do Congresso, em particular as que diziam respeito ao movimento estudantil. A coisa acabou por dar origem a uma cena de pancadaria, bastante comum nesses tempos, quando os comunistas, tendo à frente Lino de Carvalho, queriam votar uma moção de golpe numa sala com uma sólida maioria esquerdista.

Ficámos amigos desde sempre e recordo-me das nossas discussões por volta dos primeiros anos da década de oitenta sobre teoria política, sobre o marxismo, sobre o materialismo, numa época em que tinha lido Popper, Monod e Kolakowski e uma espécie de luto teórico pelo esquerdismo estava na ordem do dia. Essas discussões muito animadas seguiam-se às reuniões da revista Estudos sobre o Comunismo numa espécie de cave existencialista que havia em Campo de Ourique com música aos berros e uma daquelas luzes de discoteca que nos fazia brilhar no escuro. Estava então o Fernando a começar a sua brilhante carreira académica, que o tornou no mais influente estudioso do salazarismo e do Estado Novo e que fez como poucos o seu lugar como “professor” no verdadeiro sentido da palavra, com centenas de discípulos a passar pelas suas aulas, e quase todas as teses de mestrado e doutoramento relevantes para a história contemporânea a serem feitas com a sua orientação. O pior que fiz a mim próprio foi não ter sido também seu “doutorado” numa altura em que pensei formalizar o trabalho que estava a fazer fora da universidade.

Fernando Rosas foi sempre e é um militante político nas causas em que acreditou, e sabe o preço que se paga em Portugal por não ter feito o que é suposto fazer para receber o reconhecimento, muitas vezes hipócrita, que se presta ao mérito. Se tivesse seguido o trajecto acolchoado, prudente, recatado e muitas vezes protegido, que a academia propícia aos que não querem meter-se em sarilhos políticos públicos, principalmente do lado “errado”, Rosas teria recebido um muito maior reconhecimento público, teria prémios como o Pessoa, e outras comendas. Não é que ele as desejasse, porque não trocava nada do que fez e faz por essas honrarias, mas é porque as merecia.