Ite missa est

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 09/08/2023)

A missa terminou, ide em paz que não se passou nada.

Vinum et musica laetificant cor (o vinho e a música alegram o coração) Eclesiastes


Durante a Jornada Mundial da Juventude realizada em Lisboa, a hierarquia da Igreja Católica quis passar e conseguiu-o com notável eficácia e com a cumplicidade da comunicação social e dos poderes políticos uma mensagem de normalidade, de tudo está bem e como do antecedente, vejam como os jovens estão alegres e felizes, cobrindo assim com tinta impermeável a herética proposta do papa Francisco de uma religião sem dogmas nem interditos.

Extraordinário: um chefe religioso propõe uma religião sem dogmas e os crentes de missa dominical, confissão, comunhão e genuflexão, jejum e abstinência nos dias santos e guardados batem palmas como se nada de radical o papa tivesse dito em Lisboa, reiterando o que tem vindo a dizer desde o início do seu pontificado!

Revelador do absurdo e da resiliência das estruturas seculares da Igreja Católica, romanas e locais — e prova da surdez dos crentes — é o seu papa atual dizer que não há nenhum interdito que proíba comer carne em certos dias, ou de comer o quer que seja a qualquer hora, que o sexo é uma prática abençoada, que os corpos de homens mulheres são obra do Criador e logo observáveis e gozáveis, que os sacramentos do batismo, do casamento e até da extrema-unção são meras formalidades que se cumprem se houver oportunidade e desejo, que os judeus, os cristãos e os muçulmanos, além dos sem qualquer Deus não estão condenados a arder eternamente numa fogueira por procurar e sentir prazer e o aparelho burocrático do Vaticano, as congregações e prelaturas acenarem com a cabeça e, porventura, murmurarem: sancta simplicitas, como terá dito um velho juiz da inquisição à ingénua mulher que atirou um pau para a fogueira onde ardia um herege. Isto é, este papa afirma que não há outro inferno além da vida terrena e que o paraíso não é garantido e a comunidade católica apresenta-se-lhe, como se apresentou, com um cardeal derreado sob o peso de uma monumental cruz de madeira, que é o símbolo destas jornadas! E ninguém procurou saber da incongruência entre as palavras do papa e a imagem de um grupo de crentes de cruz às costas para ganhar o céu!

Os pensadores e pregadores de absurdos convenientes e instalados como dogmas não consideram extraordinário que um cristão, investido no cargo de chefe da igreja católica, que o considera infalível em questões de fé, renegue o pecado original, a queda do Homem na humanidade pela ousadia da desobediência e que a sua salvação seja unicamente possível à custa dos sacrifícios e da dor da vida terrena. O desajustamento entre a mensagem do papa e a dos hierarcas tradicionais ficou expresso no esforço dos organizadores da JMJ ao construir uma feira popular com barraquinhas para confissões e vem o papa e garante que está tudo confessado e perdoado! Por obra deste papa, restou o ridículo do dito campo do arrependimento.

Sendo um discurso de senso comum, a teologia do papa Francisco, repetida nos discursos durante a JMJ, está em conflito com as bases filosóficas do cristianismo na versão do Concílio Vaticano I (1869), do papa Pio IX, que confirmou o dogma dos sete sacramentos, decretou a versão da vulgata da Bíblia como autêntica, condenou o racionalismo, o naturalismo e o modernismo, reconheceu o primado do Papa e a sua infalibilidade e até com o concílio Vaticano II, de João XXIII, que livrou a teologia do Vaticano I de algumas das proposições mais desajustadas aos tempos, mas não tocou no essencial dos dogmas.

A teologia de Francisco nega os atributos do Cristo dos Evangelhos, o de ser a verdade e a salvação, pois o papa propõe que sejam os crentes a chegar à verdade e a salvarem-se através da prática do Bem e não da oração ou da fé — o que torna a vida monástica uma incongruência e dispensáveis as práticas religiosas da missa. A fé de Francisco é no ser humano e não a fé em Deus! Ninguém nos escritórios da Igreja Católica quer ouvir falar disso, o que interessa é que as JMJ correram muito bem, que foi muito bem organizada, que os jovens comeram e dormiram muito bem!

Francisco está também em confronto doutrinário com a sua congregação de origem, a Companhia de Jesus, cujo lema — Ad majorem Dei Gloria (Para maior glória de Deus) — apela à cega obediência às estruturas de poder da Igreja e que fez dos jesuítas o pilar principal onde os papas se apoiaram desde a Contrarreforma para impor os seus princípios doutrinários e as suas opções políticas. Ora a mensagem de tolerância do papa Francisco é o oposto da intolerância jesuítica. Francisco propõe a interrogação e a responsabilidade das escolhas, o uso do livre-arbítrio, mas ninguém na ordem dos jesuítas se pronuncia sobre os choques causados pelos conceitos do discurso do seu irmão Jorge Bergoglio enquanto papa Francisco. Será uma avis rara?

Pelo seu lado, a atitude dos participantes nas JMJ e as respostas que deram a quem lhes fez perguntas está em consonância não com os desafios à ordem lançados por Francisco, mas com o lema de obediência da Companhia de Jesus. Estes jovens da JMJ que vimos e ouvimos estão de bem com a vida e esperam conseguir manter o seu status. Não se vislumbrou neles o mais leve sintoma de rebeldia, de crítica ou até de atenção ao que ouvem. A grande reunião de Lisboa dota-os, dotou-os, de confiança de que tudo vai bem e transmitiu-lhes a ilusão de força dos rebanhos e dos cardumes.

Desconhecemos, após intermináveis programas com comentadores de toda a sorte, leigos e clericais, qual o pensamento da hierarquia da Igreja e qual a estratégia que perfilham suas eminências os cardeais, os bispos, a cúria romana para a Igreja Católica sobreviver enquanto instituição: correr o risco da abertura ou a segurança do fechamento sobre si.

Este papa, embora adaptada à sua personalidade e ao presente, parece ter retomado a teologia da libertação que surgiu na América Latina nos anos setenta e oitenta do século passado e que foi execrada pelo papa João Paulo II a favor do conservadorismo e da estratégia dos Estados Unidos contra a União Soviética. Resta esperar a resposta da Igreja Católica no século XXI.

Historicamente pouco aberta a liberalidades, com as JMJ a hierarquia da Igreja Católica defendeu-se da mensagem do papa criando três ilusões: a de que existia uma consonância entre a mensagem de Francisco e a atitude dos participantes; a de que estes participantes representam uma parte significativa e com potencial de futura liderança da juventude europeia e ocidentalizada; e, por fim, a de que estes jovens irão ser o fermento de uma sociedade mundial mais justa.

Não existe nenhuma evidência de que estas centenas de milhares de jovens sejam um detonador de alterações sociais e políticas em qualquer parte do planeta, como o papa lhes solicitou que fossem. As JMJ não são um evento nascido entre os jovens para responder a um espirito do tempo e de uma geração, como foram o Maio de 68, Woodstock, as manifestações de Tiananmen, a marcha pelos direitos cívicos nos Estados Unidos, por exemplo. As JMJ foram e são uma organização da hierarquia da Igreja Católica destinada a congregar jovens em torno dos seus (da Igreja) objetivos. Estes jovens católicos irão integrar-se na ordem geral do modelo político e social dominante, o do capitalismo, o do lucro, o do sucesso individual, irão frequentar MBA em Catholic Business Schools, serão promotores financeiros em bancos e bolsas, médicos de clinicas privadas, advogados de grandes sociedades, jornalistas para reproduzir a ideologia do politicamente correto, como aqueles que os entrevistaram e nos martelaram a cabeça durante horas infindáveis da mais rasteira catequese.

Esta jornada da juventude católica é (foi) um evento de uma fação da juventude mundial, certamente da fação que teve mais sorte no lugar e na classe social onde nasceu e vive. Esta juventude quer manter os seus privilégios de nascimento, quer segurança no seu bem-estar e sente-se ameaçada pela concorrência dos evangélicos e pela juventude esquecida mesmo a seu lado, aquela que demonstra de forma violenta o resultado do seu desespero, o ódio à sociedade que gerou os jovens da JMJ.

Estas jornadas e estes jovens que vieram a Lisboa competem no mundo com os milagres dos evangélicos norte e sul-americanos, com as jornadas de desespero dos jovens palestinianos, com as jornadas de violência de guerra santa dos jovens radicais que fornecem os exércitos islâmicos do ISIS, da Alqaeda, dos talibans, com as jornadas trágicas dos jovens africanos migrantes e dos jovens asiáticos sujeitos ao trabalho escravo para produzir roupas e bens de luxo destinados aos jovens europeus. O busílis destas jornadas é que a Igreja Católica não os prepara para essa competição e este papa ainda lhes enfraquece as defesas.

É certo que as caras rosadas e sorridentes dos jovens católicos que vieram a Lisboa são mil vezes preferíveis aos rostos escuros e barbados que espumam ódio dos jovens e menos jovens islâmicos, ou dos famélicos africanos recolhidos no Mediterrâneo, mas os rostos dos seres criados em estufa que desfilaram perante as câmaras das nossas televisões com bandeiras, cânticos e mochilas dizem-nos que na luta pela vida serão vencidos sem apelo por aqueles que estão dispostos a fazer-se explodir. Os jovens da JMJ não parecem dispostos a morrer pelo quer que seja, nem pela sua fé, nem pelo seu hambúrguer com Coca-Cola. A JMJ confirmou que, com o futuro nas mãos destes jovens, a Igreja Católica é e será uma presa mansa. Esta conclusão não é uma boa notícia para quem ama a liberdade.

As propostas de Francisco assentam na sua crença na bondade inata dos seres da espécie humana. Eu não acredito nessa premissa. A história tem-na desmentido. A diferença da mensagem do papa Francisco para a dos papas tradicionalistas que o antecederam é a de que a dele é um novelo de contradições e a dos antecessores um poço sem fundo de mentiras e ilusões.

As grandes religiões, e não só o cristianismo, mas também o judaísmo e o islamismo, as religiões de um Deus único, totalitário, Criador e Juiz de Última Instância, colocam sempre o ser humano no dilema de morrer por Ele ou de matar por Ele. As grandes religiões colocam sempre os seus crentes entre o fogo e o óleo que o fogo faz ferver na frigideira e este dilema não se resolve com chefes religiosos mais ou menos simpáticos e individualmente bons seres humanos.

Quis, com estas reflexões, denegrir a realização das JMJ, os jovens católicos, a hierarquia da Igreja, o papel da Igreja Católica na História, e mesmo os políticos (em especial os que se prestaram a atitudes ridículas) que organizaram o evento, a boa vontade e a simpatia do papa? Não. Quis simplesmente contribuir para que não alimentemos falsas esperanças de alteração no pensamento e nas atitudes da Igreja Católica por causa quer do evento em si, quer pela mensagem do papa. Ite missa est


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Cujus regio, eius religio

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 08/08/2023)

Cujus regio, eius religio é uma frase latina que significa que a religião do príncipe é a religião dos súbditos, ou do país. Os governados seguem a religião do governante. Trata-se de um princípio estabelecido pelo imperador Constantino. Foi utlizado na reforma protestante, no tratado de Paz de Augsburgo, que estabeleceu um compromisso entre as forças luteranas e católicas na Alemanha. A população de um príncipe católico deveria ser católica e a do príncipe que aderisse à Reforma Protestante deveria fazer o mesmo. Ubi uns dominas Bibi una religio (onde há um só senhor que haja uma única religião).

A aliança da cruz e da espada não é um exclusivo do cristianismo, as três religiões cuja filosofia assenta no conflito do percurso da humanidade — paraíso inicial — queda na vida terrena de sacrifício — e redenção, a utilizaram, todos juntaram à espada um símbolo sagrado. O império otomano, que promoveu a conversão da maioria dos povos do Médio Oriente ao islamismo escolheu o Crescente e os judeus a estrela de David. O poder político nas vastíssimas regiões do planeta que os povos destas três religiões ocuparam e dominaram teve sempre necessidade de uma caução religiosa para os seus grupos mais agressivos imporem o seu domínio. O cristianismo, ainda assim, conseguiu separar, embora à custa de guerras sangrentas e prolongadas, a religião do Estado, pelos menos formalmente. O mesmo não fizeram nem o islamismo nem o judaísmo.

A maioria dos grandes conflitos do Ocidente desde a emergência do islamismo teve causas religiosas. As igrejas, entendidas como entidades organizadas para enquadrarem a sociedade tendo como norma um corpo filosófico que regula princípios morais e os impõe como lei, competem entre si para se colocarem no centro do poder de facto, para obterem o favor do príncipe e para, através deste, determinarem o modo de viver do povo, a distribuição da riqueza e dos privilégios.

A Igreja Católica é a igreja matriz de todas as igrejas europeias, é a igreja herdeira do império romano e do sacro império romano-germânico. É, de todas as igrejas cristãs europeias, a única que tem uma difusão planetária (um feito que se deve mais aos jesuítas portugueses e espanhóis do que aos pastores anglicanos).

A Jornada Mundial da Juventude que decorreu em Lisboa de 1 a 6 de Agosto de 2023, embora muito bem embrulhada em papéis de celofane, apesar das cantorias e dos eventos para multidões, das luzes e das bandeiras desfraldadas foi, exatamente pelo privilégio dado ao aparato em vez da substância, um revelador das dificuldades que a Igreja Católica atualmente atravessa, em consonância com a perda de influência e poder da Europa, o seu berço, resultantes do declínio como potência mundial no pós II Guerra, da descolonização que a arredou das regiões de domínio e lhe trouxe comunidades das antigas colónias que ela tem dificuldade em integrar e, por fim, do envelhecimento da população europeia.

Os papas do pós Segunda Guerra têm tentado cada um à sua maneira evitar que a Igreja Católica seja arrastada pela decadência da Europa e apresentá-la como uma entidade global e atuante nos novos tempos e nos novos espaços, como se nada tivesse a ver com a colonização e o colonialismo, com os poderes absolutos, o nazismo e o fascismo. Todos procuraram sair de Roma (da Europa) e fazerem-se à estrada, ao mundo, uns com mais sucesso — João Paulo II, outros com menos — Bento XVI e o mundo respondeu de acordo com os interesses dos poderes instalados, tratando os papas como personagens mediáticas de um live aid, que poderiam ser úteis como agentes integradores de grupos potencialmente conflituais numa dada ordem nacional ou regional. Contudo os papas e as suas entourages viram-se sempre a si como os herdeiros da única igreja imperial da história da humanidade, e por isso ocupando um lugar único entre as religiões e as igrejas do planeta.

O primeiro atributo carismático dos papas resultava da herança imperial e o segundo residia no mistério do poder contido no objeto simbólico que é o sacrário, um cofre-forte que, além da porta blindada, tem ainda uma cortina que esconde o que configura o divino. Todos os papas até este mantiveram a organização imperial da Igreja, baseada na hierarquia, no poder dos hierarcas, nos sacerdotes consagrados, nos dogmas da fé de castigo e recompensa, na disciplina dos fiéis. As representações do poder podiam ser adaptadas à personalidade de cada papa, mas o essencial do seu carisma era baseado na autoridade e manteve-se assim até este papa jesuíta, vindo dos confins do império que os católicos maioritariamente espanhóis e italianos criaram no fundo do hemisfério sul, na Argentina, estilhaçar o edifício milenar e as suas serventias.

Em vez do mistério do silêncio e da distância, do dogma, do apelo à luta pela imposição de uma verdade e de um Deus totalitário, de uma atitude imperial, este papa apela à tolerância, à boa convivência, à paz, à generosidade, ao respeito pelos nossos semelhantes, pelos animais e pela natureza! O seu carisma assenta no facto de ele ser um ancião simpático, de expressar pensamentos de simples bom senso! Jorge Bergoglio, no papel de papa Francisco da Igreja Católica, é extraordinário porque atirou fora as portas dos sacrários, rasgou as cortinas e disse aos fiéis: Não há nada aqui dentro que não seja o que vocês forem capazes ou quiserem aqui colocar. Isto é apenas uma caixa e o bem e Deus não se encaixotam! E riu-se!

O extraordinário em Francisco — um facto que o aparelho mediático que o envolve procura cobrir com o silêncio — é que a sua mensagem doutrinal está mais próxima das filosofias orientais do que das do cristianismo e mais longe ainda do que tem sido a mensagem catolicismo romano desde as cruzadas e da contrarreforma. A mensagem de Francisco está próxima do budismo, onde o conceito de Deus único, ser supremo, divino, eterno, celestial, juiz todo-poderoso, criador de todas as coisas, é substituído pela atribuição dos eventos da Terra e da humanidade aos próprios humanos. Uma mensagem também em linha com o confucionismo, na busca do caminho em equilíbrio entre a vida mundana e a espiritual, entre o homem e a natureza. A mensagem deste papa não difere também da que os anciãos das civilizações ditas primitivas de África ou das Américas transmitem aos seus familiares ou às suas tribos. Podem ser encontradas nos livros de aforismos africanos, indianos, asiáticos. O extraordinário da mensagem do papa Francisco é que ele propõe retirar à Igreja Católica o seu poder de maior utilidade, o que a dota de um valor único, o poder de sacralizar, isto é, de justificar o poder dos reis e dos soberanos através da invocação do poder divino.

Este papa nega aos poderosos que digam aos seus povos que o são pela Graça de Deus e da Santíssima Virgem! Em última instância, Francisco não cauciona os juramentos dos homens poderosos feitos com a mão sobre a Bíblia ou com a invocação: assim Deus me ajude.

A mensagem deste papa representa um pontapé no vespeiro que o Vaticano, com as suas intrigas de corte, de facto é desde os primeiros concílios de Niceia. O Ocidente exerceu o seu domínio no mundo apoiado numa Igreja Católica organizada e disciplinada, dogmática, onde a autoridade não se discute, que castiga sem piedade os hereges e excomunga os que duvidavam. Francisco propõe, sem o dizer explicitamente, uma Igreja mais parecida com os movimentos filosóficos do que com uma guarda que cauciona o poder armado.

Recorrendo à história de Portugal e aos 50 anos do 25 de Abril. A Igreja Católica ou segue o caminho da abertura a povo que Francisco lhe propõe, como se fosse Otelo, ou realiza o seu 25 de Novembro e, na melhor das hipóteses encontra um papa tradicionalista moderado que cumpra o seu ministério como Eanes, trazendo a igreja de volta aos templos e aos conventos.

Mas, esquecendo estes pormenores, a organização das Jornadas foi um êxito, os jovens passearam por Lisboa de graça, comeram a custos moderados, dormiram em casas amigas, os espetáculos foram bem encenados, o som impecável, as autoridades civis e eclesiásticas sorriram e saudaram-se mutuamente. Portugal pode exibir a taça!


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A entrada da Ucrânia na NATO vale quantas vidas humanas?

(Pedro Tadeu, in Diário de Notícias, 27/07/2022)

A guerra na Ucrânia matou, segundo um relatório da ONU de há um mês, pelo menos, no mínimo dos mínimos, 4731 civis. O número de soldados mortos é, também no mínimo dos mínimos, de 10 a 11 mil pessoas.

Esta tragédia começou porquê?… Não, não vou falar do Euromaidan, do golpe de Estado de 2014, da guerra civil no Donbass, pois, se o fizer, dizem logo que sou putinista, que qualquer contextualização histórica do conflito serve os interesses do governo russo, que não se pode relativizar a invasão, que o que interessa é o começo da guerra.

Muito bem, aceitarei, derrotado pelo cansaço e mortinho para ir de férias, essa argumentação. Passo então a analisar o começo da guerra sem fazer qualquer enquadramento histórico.

Quando a guerra começou, li centenas de vezes nos melhores órgãos de comunicação social do mundo antiputinista, o governo da Ucrânia, na sua inocência, só queria poder fazer uma coisa: entrar na NATO. Foi esse o pretexto para a invasão ordenada por Putin, que exigia que essa entrada não acontecesse, para garantir um “tampão” no avanço de instalações militares da Aliança Atlântica junto à sua fronteira.

O presidente norte-americano e os líderes europeus juntaram-se ao presidente ucraniano e proclamaram: “A Ucrânia tem todo o direito de entrar na NATO e a Rússia não tem a nada a ver com isso”. O que, à luz da abstrata autodeterminação e independência dos Estados tem, sem dúvida, lógica.

Acontece que a defesa da concretização do direito da Ucrânia de pertencer à NATO vale, segundo essa lógica, o preço de todas as vidas, entretanto, perdidas, mais os 6,5 milhões de desalojados, os 10 milhões de refugiados, uma enorme devastação, a ameaça de uma guerra nuclear, o perigo do crescimento da fome no mundo, uma crise energética, a possibilidade da generalização da pobreza na Europa rica, a entrada da era da globalização numa era global de medo – tudo coisas previsíveis (e foram-no!) antes da guerra começar.

O lado moralmente certo da guerra na Ucrânia não é apoiar Zelensky contra Putin. É contestar os dois e é combater pela paz.

A lógica que levou a Ucrânia a não ceder na questão da sua entrada na NATO é, portanto, uma lógica assassina, tão assassina quanto a lógica apresentada pelo poder russo para justificar o começo da invasão do país vizinho.

Porém, ao fim de cinco meses de guerra, as razões do seu início são, para muita gente, irrelevantes, secundarizadas pela evolução das tropas no terreno, a avalanche de imagens de aflição e de morte, as denúncias de crimes de guerra, a corrida generalizada aos armamentos, os movimentos e confrontos diplomáticos por todo o mundo.

Para mim, porém, são relevantes. São as razões do começo da guerra que me levam a recusar o entrincheiramento que me exigem: “Ou és pro-Zelensky ou és um traidor”.

Além de o meu país não ser a NATO, não ser a União Europeia, nem ser a Ucrânia (é Portugal, e isso não é a mesma coisa), a condenação moral que se faz a todos os que não embarcam no navio do entusiasmo suicida em que navegam os dirigentes ocidentais e da Rússia é um lamentável exercício de hipocrisia.

Quem apoia incondicionalmente o governo da Ucrânia não apoia a proibição de partidos políticos no país, mesmo de insuspeitos de comunismo ou de apoio à Rússia? Não apoia o fim da liberdade de opinião? Não apoia as infiltrações nazis no Exército e no governo? Não apoia a mal explicada perseguição a 650 responsáveis ucranianos por suspeitas de conluio com os russos? Não apoia o despedimento da procuradora-geral ucraniana que investigava crimes de guerra? Não apoia a demissão sucessiva, desde o princípio da guerra, de governantes, de autarcas, de responsáveis militares, de segurança, da espionagem, de embaixadores, numa evidente, constante e autoritária operação de concentração de poder absoluto? Não apoia os crimes de guerra ucranianos que a ONU, a par dos crimes russos, já identificou? Não apoia a utilização ucraniana de armamento de destruição de alvos civis, tal como fazem os russos? Não apoia o torniquete informativo que nos cerca, tal como a Rússia faz?

É por isso, para reclamar pela paz, que, entre outras coisas, lá estou a ajudar a fazer a Festa do “Avante!” que, pelos vistos, não terá a visita de José Milhazes, o suposto democrata que na TV tentou lançar um anátema moral sobre artistas que lá vão trabalhar e que não pensam exatamente como ele – como se a sua admiração por Vladimir Zelensky não fosse, como o tempo está a comprovar, moralmente equivalente a uma admiração por Vladimir Putin.

Jornalista


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