O papa é putinista?

(Pedro Tadeu, in Diário de Notícias, 06/07/2022)

No dia 25 de fevereiro, o dia seguinte ao início da invasão russa da Ucrânia, o Papa Francisco telefonou ao líder ucraniano, Volodymyr Zelensky, e deslocou-se à embaixada russa na Santa Sé. Numa entrevista, citada pela agência Ecclesia, dada ao jornal argentino La Nación, Francisco explicou-se desta maneira: “Fui sozinho, não quis que ninguém me acompanhasse. Foi uma responsabilidade pessoal, minha, uma decisão que tomei numa noite em branco, pensando na Ucrânia. É claro, para quem o quer ver, que estava a sinalizar o governo que pode pôr fim à guerra no instante seguinte”.

Num texto de balanço aos 100 dias de guerra, que a agência Ecclesia difundiu, focado na atividade do Papa decorrente do conflito, lembra-se toda uma série de outros episódios:

– A 25 de março, numa celebração que ligou o Vaticano ao Santuário de Fátima, o Papa consagrou a Ucrânia e a Rússia ao Imaculado Coração de Maria, perante a “ameaça nuclear”.

– A 6 de abril, Francisco beijou um bandeira ucraniana numa homenagem às vítimas do massacre de Bucha.

– A 14 de abril, quinta-feira de Páscoa, Francisco lançou o livro Contra a guerra. A coragem de construir a paz que apela ao diálogo e ao desarmamento, como uma escolha estratégica decisiva para os destinos da humanidade.

– A 15 de abril, Sexta-feira Santa, no final da Via Sacra, o Papa apelou à reconciliação entre adversários. Antes foi confrontado com um incidente: uma leitura que deveria ter sido feita, nessa cerimónia, em conjunto por uma russa e uma ucraniana foi cancelada por pressão da Ucrânia.

– No Domingo de Páscoa, Francisco voltou à carga e evocou as vítimas ucranianas, os milhões de refugiados, as famílias divididas, os idosos abandonados.

– A 3 de maio, o Papa explicou que, antes de ir a Kiev, estava a tentar ir a Moscovo. Numa entrevista publicada nesse dia pelo jornal Corriere della Sera, Francisco criticou as razões da guerra e o “comércio” de armas, que definiu como um “escândalo” a que poucos se opõem e falou de “uma raiva facilitada” pelo “ladrar da NATO à porta da Rússia” que levou o Kremlin a “reagir mal e a desencadear o conflito”. Também manifestou algumas dúvidas sobre o fornecimento de armas à Ucrânia, alertando que esse fornecimento iria levar a Rússia a testar armas mais destrutivas.

– A 12 de maio o Papa encontrou-se com duas esposas de militares ucranianos que se encontravam barricados em Mariupol.

– A 24 de maio Francisco enviou a Moscovo uma mensagem ao patriarca da Igreja Ortodoxa para rezarem pela vida humana.

– Na semana passada, no Vaticano, o líder da Igreja Católica, um dia depois de dirigir uma cerimónia religiosa que evocou as vítimas da guerra, apelou a que não se use a distribuição de cereais como arma de guerra, que irá vitimar, sobretudo, as populações dos países mais pobres.

– Quase todos os domingos, na cerimónia que costuma fazer para a Praça de São Pedro, Francisco, recorrentemente, fala da necessidade de paz na Ucrânia e recorda várias vezes outros conflitos no mundo: Congo, Sudão do Sul, Síria, Iémen, “o maior desastre humanitário do nosso tempo”, disse, rebelando-se contra a indiferença ocidental face a essa catástrofe.

– Esta semana, numa entrevista à agência Reuters, Francisco assinalou que a possibilidade de ir a Moscovo volta a estar em cima da mesa “se o presidente russo me conceder uma pequena janela para servir a causa da paz”.

– Noutra entrevista, anterior, o Papa fora questionado sobre o facto de nunca ter condenado explicitamente Vladimir Putin ou a Rússia. Respondeu assim: “Nunca nomeei um chefe de Estado e, muito menos, um país, que está acima do seu chefe de Estado”. Isto nunca impediu, porém, Francisco de condenar várias vezes e de forma veemente a invasão à Ucrânia.

– Neste domingo, novamente na Praça de São Pedro, o líder católico disse isto: “Devemos passar das estratégias de poder político, económico e militar para um projeto de paz global. Não para um mundo dividido entre potências em conflito; sim para um mundo unido entre povos e civilizações, que se respeitam mutuamente”.

Pelos critérios que têm prevalecido na fila de políticos, jornalistas e comentadores portugueses, de direita e de esquerda, que todos os dias passam pela televisão a tentar vencer no campeonato da corrida armamentista, do belicismo pro-NATO, da russofobia, da intolerância, da teoria da conspiração, da censura às notícias de guerra, da desumanidade disfarçada de caridade pelo povo ucraniano, este Papa, apesar de criticar a invasão russa, é, como todos os que procuram abrir um caminho que leve à paz, um putinista.

É ridículo, mas é onde estamos.

Jornalista


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Et maintenant, que vais je faire?

(Carlos Matos Gomes, in Facebook 20/06/2022)

A perspetiva de uma França ingovernável é preocupante. É perigosa para os democratas e para os europeus em geral. Numa situação de guerra, e de várias ameaças à Europa democrática e autónoma vindas do seu próprio interior – e as piores ameaças são as dos inimigos internos, historicamente são as implosões, as fraquezas internas, as traições que destroem impérios e nações – um dos estados pilares da Europa entrar em convulsão é uma má notícia. A derrota (de facto) de ´Macron é uma má notícia. A força de Mélenchon e de Le Pen são más notícias. (1) Ver abaixo explicação do autor sobre esta última opinião.

Retirei do Le Monde os poderes de um presidente segundo a Constituição Francesa (devemos analisar com base em factos e não em palpites do parece-me que ):

Com ou sem maioria na Assembleia, quais são os poderes de um Presidente da República?

O que diz a Constituição

O governo “determina e conduz a política da nação” ; O Parlamento aprova leis e pode derrubar o governo. O presidente é um “árbitro” que assegura o “funcionamento regular do poder público” e “a continuidade do Estado”, bem como garante da “independência nacional, integridade territorial e cumprimento dos tratados” . Ele também é o chefe dos exércitos e o único detentor do “fogo nuclear” .

De acordo com a Constituição, portanto, não é o Presidente da República quem deve decidir sobre a política interna do país. Seus próprios poderes são, na realidade, enquadrados:

– é o fiel da Constituição e pode, portanto, recorrer ao Conselho Constitucional se considerar que uma lei viola os seus princípios (mas os parlamentares também podem fazê-lo desde 1974);

– nomeia o primeiro-ministro da sua escolha;

– nomeia três dos membros do Conselho Constitucional, incluindo o presidente;

– pode assumir poderes excepcionais em caso de ameaça “grave e imediata” às instituições, à independência da nação, à integridade do território ou ao cumprimento de compromissos internacionais;

– pode dissolver a Assembleia Nacional;

– pode, por proposta do Governo ou do Parlamento, submeter a referendo um projecto de lei com base no artigo 11.º ( sobre um número limitado de assuntos ).

-Todas as suas outras prerrogativas estão sujeitas à “referenda” (assinatura) do Primeiro-Ministro e, se for o caso, dos ministros responsáveis. No entanto, em caso de coabitação, eles não estão necessariamente do mesmo grupo político do presidente.

Concretamente, o que Macron pode fazer sem maioria?

Mesmo que isso nunca tenha sido feito, o novo presidente pode decidir ignorar a maioria parlamentar e nomear um governo do seu próprio grupo político. Mas isso provavelmente levaria a uma sucessão de derrubes de governos ou dissoluções da Assembleia. Ou seja, a uma forte paralisia das instituições.

E agora? Recordei a canção de Gilbert Bécaud: Et maintenant que vais je faire, que era utilizada na ação psicológica da formação dos Comandos. Espero e desejo que os franceses e os seus eleitos saibam o que vão fazer. Bonne chance!


  1. Explicando a opinião expressa no 1º parágrafo

É uma boa questão, mas as respostas dependem das premissas. A questão da esquerda e da direita: antes dela deve ser equacionada a viabilidade das propostas. Prometer o paraíso pode ser de Esquerda, mas não deixa de ser demagogia e criar condições para um desenlace calamitoso. A equiparação entre a extrema-esquerda e a extrema-direita assenta na utilização do mesmo instrumento da demagogia – do vale tudo – e que conduzirá aos mesmos resultados. O exemplo clássico desta coincidência de resultados de políticas e propostas oriundas de extremos opostos, é o da Alemanha pré II GM, da demagogia da esquerda social-democrata e dos comunistas (a extrema esquerda do momento) e do partido nazi… Quer os grupos reunidos à volta de Mélenchon, quer os de Le Pen prometem tudo, sem cuidar da viabilidade – da realidade. E a realidade é que a França `tem vivido, em boa parte, à custa da Alemanha, e esta não está agora em condições de pagar nem o modelo social de Macron, nem, muito menos as promessas de Mélenchon ou de Le Pen, que, lendo os programas nos capítulos de direitos sociais são muito idênticos; idade da reforma, pensões, serviços públicos., férias, licenças…


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A heresia do papa Francisco

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 14/06/2022)

Estava a ler textos sobre a “guerra da comunicação” em que estamos envolvidos, felizmente sem os custos em sangue e destruição da que ocorre na realidade do campo de batalha, na Ucrânia. Parti de um filósofo cujo pensamento conhecia um pouco, Paul Virílio, francês, autor de livros sobre as tecnologias da comunicação, e deste cheguei a um outro, desconhecido, Slajov Zizek, esloveno. Paul Virílio, com formação base em arquitetura, define a sociedade da informação como perigosa, já que a informática nos leva à perda da noção da realidade ao proporcionar uma quantidade gigantesca de dados.

É sobre a relação entre a realidade e a imagem que dela nos é transmitida que se travam hoje os combates da informação, desinformação, manipulação que nos são apresentados pelos meios de comunicação, que pretendem camuflar a sua qualidade de armas, atrás de um colete com a palavra PRESS, de uma direção editorial, ou de pastores com a pele de comentadores.

Para Zizek, com formação em sociologia, professor nas universidades de Lubiana e de Londres, o “real” é um termo que corresponde a um conceito enigmático, e não deve ser equiparado com a realidade, uma vez que a nossa realidade está construída simbolicamente; o real, pelo contrário, é um núcleo que não pode ser simbolizado, isto é, expresso com palavras ou com imagens. Só existe como abstrato. Para Žižek, a realidade tem a estrutura de uma ficção. Ou seja, acaba sendo apenas uma espécie de interpretação da “coisa em si”. Há quem não se limite a interpretá-la, mas a fabrique.

Esta minha tentativa de separar o real da realidade, de tentar entender as intenções de quem escreve o enredo da realidade que me é apresentada nas TVs, em particular, como arma de artilharia pesada, surgiu depois de ler e de confirmar tanto quanto possível a opinião do Papa Francisco sobre a guerra, em que, segundo os meios de comunicação e contra o discurso ocidental, terá criticado a Rússia pela crueldade na Ucrânia, mas dito que a guerra pode ter sido provocada, uma opinião que os manipuladores das TV (os grandes meios) escamotearam.

Sou agnóstico, mas reconheço as qualidades de coragem, inteligência e a capacidade de análise de personalidades religiosas, dos que têm uma visão do mundo criado e regulado por um Ente metafísico, que também determina o comportamento dos seres homens, lhes estabelece uma moral que não se reduz à crença, aos que conjugam fé e razão.

É o caso do Papa Francisco, que preside a uma instituição milenar, com influência histórica na vida dos humanos, em todo o planeta e em particular na Europa, que dispõe de uma dos mais eficientes serviços de informação mundiais e a quem presto a mais proveitosa atenção, assim como leio com proveito Tomás de Aquino, Santo Agostinho, ou o Padre António Vieira, os clássicos politeístas gregos, o escuto Dalai Lama.

O Papa Francisco tocou na ferida da discussão sobre aquilo que vemos nos ecrãs sob a aparência de informação, e que é, de facto, a criação de espetáculos da autodestruição humana, através das formas sofisticadas encontradas pelos meios de comunicação — o cinema, a televisão e a Internet — que utilizam as técnicas perigosas a que se referia Paul Virílio para promover o confronto com o “real”, com o objetivo de impor a ideologia hegemónica.

Este processo de espetacularização da destruição com fins políticos, com o objetivo de assegurar um poder, que o Papa Francisco deixa mais do que subentendido — quem quiser percebe — apoia-se na ideia, que a Igreja Católica, como outras desenvolve e cultiva, de que a autoridade é conferida com mais facilidade aos que falam da posição de vítima.

O esloveno Slajov Zizek reparou que o establishment americano conservador utilizou todas as potencialidades desta a lógica da vitimização (mártires e heróis) com o ataque às Torres Gémeas em Nova Iorque para justificar sua atitude de domínio na política mundial a partir o início do terceiro milénio DC.

O governo americano, utilizou um fenómeno da realidade (provocado por quem? — deixa o Papa no ar a propósito da Ucrânia) para manipular e congregar as populações do seu império e levá-los a aceitar e a pagar uma outra realidade de violência, terror e intolerância, que, no caso das Torres Gémeas, teve a sua representação máxima no fundamentalismo islâmico, e justificou a invasão do Afeganistão, e o incêndio do Médio Oriente é agora trocado pela invocação da “brutalidade russa” na Ucrânia. A repetição do mesmo número com sucesso, que o papa ensombreceu.

Esse enfrentamento de realidades e ficções foi traduzido pelos meios de condicionamento da opinião na dicotomia pela oposição: “Eixo do Bem x Eixo do Mal” — “Ocidente x Oriente”. Esta contextualização maniqueísta foi amplamente difundida através dos termos ideologizados do Bem e do Mal absolutos que comprometem a interpretação dos factos.

Ambos os acontecimentos, o 11 de Setembro, a guerra na Ucrânia, mas também o ataque à Sérvia, ocorreram de maneira camuflada e justificada sem direito a contraditório, nem a critica, pelo princípio de que a sociedade ocidental é essencialmente democrática e permite a coexistência de diversas opiniões. Pelo que é essencialmente Boa e pratica o Bem. Se essa é a realidade, tudo o que a contrarie é antidemocrático e antiocidental, q.e.d.

A postura autoritária do governo norte-americano, a elevação a objeto de culto (sacralização) do atentado de 11 de setembro e agora de Zelenski só deixa uma alternativa ao público consumidor de mensagens visuais: pense, reflita, mas chegue à conclusão “certa”. Fora de nós não há salvação!

Slajov Zizek chamou a estes atos de manipulação “efeito espetacular do real”. O Papa Francisco veio tirar, mesmo que muito cautelosamente, o véu que cobria a caixa do truque do ilusionista Biden. Dali, do sacrário da Casa Branca, não vai sair uma pomba branca…


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